LUZ ESPÍRITA
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Sob as cinzas do tempo - Inácio Ferreira / Carlos A. Baccelli

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Sob as cinzas do tempo - Inácio Ferreira / Carlos A. Baccelli - Página 2 Empty Re: Sob as cinzas do tempo - Inácio Ferreira / Carlos A. Baccelli

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 18, 2014 11:11 pm

Quem rouba quem mente, enfim, quem foge dos padrões da normalidade poderá ser enquadrado como alguém com desvio de personalidade.
O sexo, Felizardo, é apenas um dos muitos dramas humanos e, a meu ver, não é o pior.

Deixando caneta e bloco de receituário de lado, aconselhei:
—Eu acho que você deveria tomar alguns passes, procurar orar com mais frequência, tendo o propósito de fortalecer a vontade...
Por que você não frequenta um centro espírita em Ribeirão?

Você é um homem rico:
o Espiritismo luta com muita dificuldade para manter as obras sociais que desenvolve...

Procure se sentir espiritualmente mais útil aos semelhantes.
Vou ser sincero com você: o seu caso não tem solução da noite para o dia, não vou interná-lo sem necessidade...

—Mas, e se eu não conseguir me afastar do Joaquim? - indagou-me como alguém que tivesse o visível propósito de não se afastar...
—Então - disse-lhe, contrariando talvez a opinião de muitos confrades puritanos (aliás, esqueci-me, linhas atrás, de falar também quanto sempre detestei a hipocrisia dos fariseus, dos modernos fariseus travestidos de espíritas), seria interessante que você se separasse de sua esposa...

Ela está jovem e quem sabe consiga refazer a vida.
A separação conjugal não anularia, diante dos filhos, a sua responsabilidade de pai amoroso.
Você adiaria a solução do problema para uma outra vida.
Tudo, menos o suicídio!...

—Confesso-lhe, Dr. Inácio - acrescentou Felizardo -, que a Rosa Maria, minha esposa, nunca me aceitou muito bem na cama - boa dona de casa, boa mãe, boa companheira, mas...

O adiantado da hora me fez apressar o término da consulta.
O relógio de bolso, que consultei sem cerimónia, assinalava quinze minutos depois das onze.

Eu precisava almoçar e ir para o Sanatório.
Outros dramas que se juntavam aos meus me esperavam - a mim, que em existências anteriores, segundo revelação mediúnica da qual não duvidava, havia sido nos salões parisienses, um bon-vivant.

À saída, abrindo pequena bolsa, o homem contou alguns dólares e colocou-os sobre a mesa; juntando-os com a mão esquerda, devolvi-os a ele com a mão direita.

—Eu não resolvi o seu problema, Felizardo - expliquei, com a preocupação de que ele não se ofendesse.
Não é justo que eu receba pela consulta...
Faça uma doação a uma entidade espírita de Ribeirão e estaremos quites.

Surpreso, percebi que aquele meu derradeiro argumento fora, sem dúvida, o mais convincente.

—Resolveu, sim, Dr. Inácio; em parte, o senhor resolveu...
E, tirando da mesma bolsa preta de couro um revólver de cabo de madrepérola, depositou-o sobre a escrivaninha, depois de, ante os meus olhos, esvaziar o tambor.

—Aceite, pelo menos, este presente meu – pediu com sinceridade.
Sei que o senhor não precisa de uma arma, mas doravante, nem eu.
O que eu pretendia fazer, ao sair daqui, é caso encerrado. Devo-lhe a minha vida!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 18, 2014 11:11 pm

Ele não me devia nada.
Não soube mais do Felizardo.
Mais tarde, um amigo de Ribeirão Preto me informou que um rico usineiro das cercanias se havia mudado para o Paraguai.

Enquanto almoçava, desabou forte temporal, praticamente inundando como sempre, as ruas e avenidas centrais da cidade, o que não me impediu de accionar o carro na garagem, tomando a direcção do Sanatório.

Na primeira ponte a cruzar, diminuí a velocidade e, abrindo parcialmente a janela do carro, o que foi o suficiente para molhar o meu jaleco branco de mangas compridas, joguei nas águas do córrego, que já começava a transbordar, o revólver de cabo de madrepérola que aquele homem me confiara.

Balbuciei algumas palavras censuráveis que se misturaram ao rebombar dos trovões e segui adiante.
Aquela tarde seria de muito trabalho para mim; deveria conferir todos os medicamentos que os pacientes estavam usando e realizar uma inspecção na limpeza do hospital, principalmente nos banheiros que os internos transformavam numa imundície.

Coloquei o estetoscópio no pescoço, apanhei a minha prancheta de parcas anotações e caminhei ao longo do corredor do pavilhão das mulheres.

Quase todas, ao me verem, vinham ao meu encontro, perguntando:
—Dr. Inácio, quando é que o senhor vai me dar alta?
Eu já estou completamente curada!...

Muitas estavam ali havia meses e, sinceramente, de minha parte não havia qualquer precisão de alta para elas.

Eu me penalizava com aquela situação.
Algumas haviam sido abandonadas pelos companheiros, outras, desde o berço, lutavam com as manifestações da esquizofrenia...

Em todas, observava claramente o componente obsessivo actuando, mas que fazer?

Aproximando-me de um leito, Lurdinha, que já estava connosco por quase um ano (fora completamente esquecida pelos familiares, que sequer mais a visitavam), mostrou-me pequena boneca de pano e, sorridente, falou:
—Veja Doutor, é minha filha...
Nasceu esta noite. Não é linda?...
Vou dar a ela o nome de Alice.
Que tal? O senhor gosta?

—Lindo nome, Lurdinha! Lindo nome para uma linda filha como a sua...
Chamei a enfermeira que me acompanhava e pedi que, na primeira oportunidade, Lurdinha tivesse os cabelos aparados e, se possível, as unhas esmaltadas.

A visão daquelas mulheres esquálidas era sempre o que mais me aborrecia.
A maioria não tinha iniciativa para ir ao pátio e tomar o sol da manhã.

De há muito, eu estava necessitando de colaboradores médicos eficientes no Sanatório, no entanto estava difícil encontrar profissionais abnegados que não pensassem apenas em me levar à justiça posteriormente, reclamando o que não tinham direito.

O caso de Lurdinha havia sido esclarecido em uma de nossas reuniões mediúnicas.
Por intermédio de dona Modesta, os Benfeitores Espirituais nos explicaram que, em vida anterior, a paciente havia praticado muitos abortos - começara trabalhando como parteira e, depois, enveredara por outro caminho.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 18, 2014 11:11 pm

Era comum que Lurdinha tivesse que ser sedada, pois, nas crises que se repetiam com frequência, escutava choro de crianças, gritando, desesperada:
— Tirem, tirem esse menino de dentro da parede!...
Ele está chorando e me estendendo os braços.

Algumas vezes, tínhamos necessidade de lhe imobilizar as mãos: as unhas quebravam-se, no seu afã de escavar a parede com as próprias mãos.

Na minha concepção de médico e de espírita, o aborto - a sua prática por alguém - era o pior dos crimes que o homem cometia contra a Vida; considerava-o, como ainda o considero, pior até que a prática do suicídio, porque, na maioria das vezes, o suicida está completamente fora de si e não atenta contra a existência de ninguém, a não ser a sua própria.

Lurdinha, com quase quarenta de idade, não demoraria muito a desencarnar.
Daí a quase seis meses, detectei-lhe um tumor na mama e encaminhei-a ao Hospital do Câncer, infelizmente, devido à sua debilidade física, o tumor já se havia espalhado por todo o organismo.

Pasmem os familiares não apareceram nem mesmo para os funerais, que correram às expensas do Sanatório.

E, de quando em quando, chegavam aos meus ouvidos rumores de que eu estaria ficando milionário...
Graças a Deus, a única propriedade que deixei sobre a Terra foi a casa em que residia na Avenida Dr. Fidélis Reis.

Em uma de nossas sessões mediúnicas, perguntei aos Espíritos Amigos pelo paradeiro da Lurdinha no Plano Espiritual:
— Continua em tratamento - informaram.
Algumas de suas visões não eram provocadas pelo remorso: eram reais, ou seja, os espíritos que não lhe perdoaram permaneciam imantados ao seu psiquismo...

Estão todos internados ainda.
O trabalho é longo.
Provavelmente, em futuro não tão próximo, nossa irmã renascerá com o compromisso de ser mãe de muitos filhos.

De quando em quando, pobre senhora, carregando um filho nos braços e puxando dois outros pela mão, aparecia no Sanatório pedindo uma sobra de comida.

Havia sido estuprada ainda menina e, após o parto do primeiro filho, ficara com certas sequelas mentais: os seus raciocínios não eram precisos.

Tinha entranhado amor pelas crianças - três lindas crianças e promessa de mais algumas, mas vivia ao relento, aceitando a companhia de qualquer andarilho.

Talvez, pensei, o futuro de Lurdinha seria aquele.
De facto, como é longo, meu Deus, o caminho da redenção!
A invigilância de um minuto pode dar origem a séculos de lutas.

Tendo, praticamente, consumido todo o tempo disponível daquela tarde, visitando o pavilhão das mulheres, adiei para a manhã do outro dia a visita ao pavilhão masculino.

O trabalho burocrático no Sanatório estava, aos poucos, fazendo diminuir o meu contacto com os pacientes - o que não deixava de ser lamentável.

O meu contacto pessoal com os doentes, ao longo dos meus mais de cinquenta anos de exercício da Medicina, valeram--me, em termos de experiência, por muitas encarnações.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 18, 2014 11:11 pm

Lastimo hoje não ter-me dedicado com maior cota de tempo e de paciência àquele - permitam-me dizer - incrível e farto material de aprendizagem espiritual que, sem dúvida, me teria auxiliado com mais ampla compreensão de mim mesmo e da Vida.

No outro dia, como de hábito, cheguei bem cedo ao Sanatório.
Os pacientes estavam tomando café e, como se adivinhasse o que estava para acontecer, chamei Manoel Roberto e pedi que tomassem maior cuidado com o bule de café, que fumegava à vontade sobre a mesa, ao alcance das mãos dos pacientes.
Só que não foi com o café: foi com o leite...

Paulinho tinha verdadeira obsessão por tudo que se relacionasse a fogo.
Antes que qualquer um de nós pudesse intervir, agarrou a grande leiteira, de onde o leite fervido estava sendo retirado com uma concha, e, com agilidade incrível a despejou sobre a mesa; o leite escorreu e queimou os braços e pernas de três outros internos...

A confusão se estabeleceu e tivemos que ser rápidos, providenciando curativos e suspendendo o café da manhã colectivo por quinze dias aos pacientes.

Individualmente, tomariam café no quarto.
Como os mais revoltados quisessem agredir o rapaz, novamente tivemos que remover Paulinho para o isolamento.

Eu não entendia como ele não queimara as mãos...
O caldeirão de leite havia acabado de sair do fogão a lenha e tinha sido fervido várias vezes.
Só mesmo a mediunidade de efeitos físicos para explicar...

Aos poucos, eu estava aprendendo a distinguir quando estava conversando com Paulinho ou com a entidade espiritual que parecia domiciliada em seu psiquismo.

Foi com o propósito de repreender a sua conduta no café da manhã que, acompanhado por Manoel Roberto, daí quase duas horas fui vê-lo na cela em que, a contragosto, era sempre obrigado a trancafiar os recalcitrantes.

Vocês me perdoem, mas eu preciso narrar o que vimos: quando eu e o Manoel Roberto adentramos o quarto cuidadosamente preparado, Paulinho estava se masturbando e, ao nos perceber, não interrompeu o acto.

Sinceramente, eu fiquei sem saber o que fazer.
Apenas tive presença de espírito para estender o braço e barrar Manoel Roberto, que, apesar de habituado com aquela prática libidinosa entre pacientes, tanto masculinos quanto femininos, ficara chocado, considerando o fato um desrespeito à minha presença no local.

Esperamos que o rapaz termine.
Não havia outra coisa a ser feita.
Abaixei a cabeça e fiquei imaginando o que Freud haveria de dizer daquilo tudo.

Aliás, Freud, se disse muito, muito mais ficou a dizer.
Quase todos os internos do Sanatório tinham problemas relacionados a sexo.

À noite, a vigilância carecia de ser redobrada.
Quando Paulinho terminou de se masturbar, tive a impressão de que ele saíra do transe...

Que espírito terrível seria aquele que vampirizava o garoto?
Eu estava abandonando o tratamento por electrochoque, em certos casos, admitia a sua eficácia, mas, a rigor, considerava--o muito mais nocivo que terapêutico.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Mar 18, 2014 11:12 pm

Tomando consciência da nossa presença, Paulinho levantou o calção e ficou sem nada entender.
Enquanto Manoel Roberto chamava um serviçal para limpar o piso, sentei-me na cama, ao lado do rapaz, e procurei me comportar com naturalidade.

Depois, para descontrair, perguntei:
—Pensando muito nas meninas do Capão-da-Onça, Paulinho?...

—Não, Doutor, não é isto - respondeu com timidez.
Eu não consigo me controlar.
Não quero me masturbar, mas, todo dia, é como se alguém me obrigasse...

—Paulinho - insisti no diálogo que precisava manter com ele -, você está consciente do que provocou hoje de manhã.
Dois dos três que se queimaram foram levados para o Hospital das Clínicas - queimaduras de segundo grau...

—Eu comecei a olhar aquele caldeirão de leite e uma voz me dizia com insistência:
— "Derrame, queime!..."
Não vi nada, Doutor, eu juro.

Sei que me senti bem em fazer o que aquela voz me ordenava...
Parece que é um homem que entra dentro de meu corpo.
Por vezes, eu tenho vontade de matar a minha mãe - não sei, tenho a impressão de que ela me traiu...

—Mas mãe é algo sagrado, meu filho...
Devemos respeito e consideração às nossas mães.
A minha está velhinha e eu a adoro...

—Eu sei Doutor, mas não está em mim - disse o rapaz, levando ambas as mãos aos ouvidos, como se estivesse na tentativa de não ouvir outra pessoa que, ao mesmo tempo, conversasse com ele.
Estou tentando me controlar, mas as minhas forças estão no fim...

—Você sabe o que é mediunidade, Paulinho?
Você é médium, não é você agindo, mas um espírito obsessor que está dominando você...

—Eu já o vi, Doutor - revelou, para minha surpresa.
Ele tem um semblante que me inspira medo...
Eu o vejo em sonhos.
Às vezes, eu o vejo até com os meus olhos abertos...

—E o que ele fala com você?
—Fala que eu pertenço a ele e que pretende matar a minha mãe; diz que o meu pai apenas foi cúmplice...
Cúmplice de quê, eu não sei.

—Como é que ele se chama?... - interroguei curioso.
—Tomás... Ele me disse que se chama Tomás.
Um frio, de alto a baixo, me percorreu a espinha.
Será que aquele espírito era quem eu estava pensando?

Não, não era possível.
Deveria ser um Tomás qualquer...
Os espíritos obsessores se prevaleciam da identidade de outros para melhor impressionarem suas vítimas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 19, 2014 9:13 pm

—Ele diz que gosta de mim, mas eu não acredito; diz que vai me defender me libertar - comentou Paulinho com ingenuidade, parecendo-me agora mais integrado em si mesmo.

—Você precisa nos ajudar, meu filho - argumentei prestes a sair e continuar a visita ao pavilhão masculino.
Hoje, você vai dormir aqui.
Os doentes estão alterados; será risco de vida levá-lo para dentro...
Os seus pais deverão aparecer neste final de semana.

Espero que você se comporte.
Fale com esse espírito, quando você tiver nova oportunidade de estar com ele, que tanto ódio assim não leva a nada.
"Quem com ferro fere, com ferro será ferido"...

Eu tinha certeza de que aquele Tomás - se de facto era este o seu nome - estava ali a me ouvir...

Os nossos dias no Sanatório assim se sucediam:
muito trabalho com os pacientes que alternavam os seus estados psicológicos, desafiando os conceitos que a Medicina houvera me ensinado, confesso-lhes que, desde muito, na lida com os internos, eu era muito mais um espírita médico do que um médico espírita...

Ultimávamos preparativos para as visitas do próximo final de semana, quando adentrando o meu consultório, onde verificava as fichas de alguns pacientes, o porteiro me disse:
—Dr. Inácio, o Chico está aí fora procurando pelo senhor...
—Chico? Que Chico?... - indaguei sem levantar os olhos das anotações que procurava colocar em ordem, coisa que, aliás, nunca consegui.
—O Chico Xavier!...

Quando ouvi o nome de Chico Xavier ser anunciado, confesso-lhes que não acreditei.
Se fosse verdade, seria a segunda ou terceira vez que o querido médium me pregava uma surpresa daquelas; a primeira foi um encontro inesquecível em que o recebi em minha própria casa, logo que transferiu residência para Uberaba...

—Ora, faça-o entrar; traga-o aqui... - respondi, deixando a papelada que, de hábito, me punha irritado, pois o excesso de burocracia estava começando a agir sobre o Sanatório.

Levantei-me, ajeitei o nó da gravata (não sei por que, usava gravata) e caminhei na direcção da porta, esperando com alegria, o visitante ilustre.
Com seus modos tão simples, Chico me cumprimentou e começamos a conversar.

—Dr. Inácio - disse-me -, o senhor me perdoe vir incomodá-lo, mas desde alguns dias tenho pensado muito no senhor, nas suas lutas aqui no Sanatório.
É uma pena que o trabalho na mediunidade nem sempre me permita aparecer para uma visita...

—Ora, Chico - redargui, oferecendo-lhe uma xícara de café -, você não precisa se explicar; eu sei muito bem o que é isto...
Eu também tenho pensado em lhe fazer uma visita, mas, você sabe, chega à noite, os compromissos de outra natureza acabam por embaraçar a gente...
Eu também tenho procurado aproveitar o tempo para escrever...

—Tenho lido os artigos do senhor a cerca do movimento espírita.
Estão excelentes as suas colocações em defesa da Doutrina...
—Não exagere Chico, não exagere...

—Não estou dizendo isto para agradar o senhor.
Apesar dos assuntos polémicos com a Igreja, percebo que os nossos irmãos católicos têm mudado o seu modo de ver a Doutrina...
É um trabalho a longo prazo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 19, 2014 9:13 pm

—Você, Chico, é que verdadeiramente tem cooperado para que o Espiritismo seja mais respeitado, a sua mudança para Uberaba foi um excelente reforço para nós...

—Sempre tive muitos bons amigos aqui: o Waldo, o Joaquim Cassiano, o José Thomaz, o Elias Barbosa...
Em Pedro Leopoldo, estava ficando difícil para a minha família.

Fazendo pequena pausa, com o propósito de mudar de assunto, ele me perguntou:
—E o Sanatório, Doutor?
Como têm passado os nossos irmãos e irmãs?...

—Naquela base, Chico - respondi um tanto desalentado.
O problema obsessivo é sério; as curas definitivas são raras...

—Não podemos desanimar - falou-me, como se o objectivo de sua visita naquela tarde fosse justamente aquele.
O Dr. Bezerra de Menezes apareceu-me dias atrás e me pediu que, quando possível, viesse vê-lo, afirmando que a pressão das Trevas sobre o Sanatório tem sido grande ultimamente...
—Ele tem razão, Chico, de facto, temos enfrentado muitos problemas...

E, lembrando-me de Paulinho, continuei:
—Nas sessões de desobsessão, dona Modesta tem sofrido muito...
Espíritos de antigos inquisidores parecem ter-se transferido para cá.
É pressão de todos os lados...

—Precisamos redobrar a vigilância e, em qualquer tempo, saber que estamos lidando com espíritos doentes...
—Temos tido até fenómenos de efeitos físicos.
Vez por outra, os funcionários têm que correr com baldes de água...

Eles dizem que os pacientes estão queimando as coisas com cigarro, mas eu não acredito, para mim, são os espíritos que têm provocado esses pequenos focos de incêndio...
A luta pela Verdade prossegue no Mundo Espiritual, pois a desencarnação não muda ninguém assim...

—Dr. Inácio, o nosso Dr. Bezerra me explicou que, em sua maioria, os espíritos reencarnados na região do Triângulo Mineiro procedem da Europa, principalmente da França e da Espanha...
Muitos companheiros e muitos opositores de Allan Kardec se transferiram para cá.

—É verdade, Chico - arrisquei a pergunta -, que o Bispo de Barcelona, aquele que ordenou a queima das obras de Allan Kardec, está reencarnado em Uberaba?
—Tenho a impressão que sim, Doutor, mas não nos convém especulações em torno do assunto.
Pelo que Emmanuel me disse, apesar de continuar vinculado à Igreja, ele agora é nosso companheiro...

—É, eu sei de quem estamos falando, sou muito amigo da família dele...
É gente muito boa.
Que coisa interessante:
reencarnou numa família espírita, foi ser padre de novo e é médium!...

Sorrimos juntos, das peças que a reencarnação nos prega, mas sabendo que o tempo de Chico era precioso demais, quis comentar com ele o assunto que não me saía da cabeça - embora, conscientemente, fugisse de abordá-lo com os companheiros.

—Chico, dias atrás, recebemos aqui um rapaz de Rufinópolis, antigo Capão-da-Onça...
O nome dele é Paulinho.
Você não gostaria de vê-lo?
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 19, 2014 9:13 pm

Tenho muita pena dele, parece-me até um caso de possessão...
Não sei o que fazer - tenho quebrado a cabeça.

—Se for uma visita rápida, Doutor...
Estou com um táxi me esperando aí fora.

—Não, Chico, mais cinco minutos e, depois, eu não vou deixar você pagar o táxi...
Eu é que deveria ir vê-lo, as suas ocupações são mais importantes que as minhas...
Dizem que eu sou médico, mas, sinceramente, eu me vejo mais como um carcereiro...

—Ora, Doutor, não diga isto - redarguiu o médium, com a intenção de me animar.
O senhor é uma bandeira do Espiritismo...
O Sanatório Espírita de Uberaba que o senhor dirige, é uma das instituições mais respeitadas no Brasil e no exterior.

Eram quase quatro da tarde.
Paulinho ainda estava retido no isolamento, os doentes mentais esqueciam depressa, mas o episódio com o leite fervendo me deixara com receio:
as autoridades policiais não nos poupariam, caso houvéssemos tido um incidente mais grave...

Coisa impressionante:
encontrando-nos com Manoel Roberto no corredor de acesso à cela onde Paulinho fora recolhido, pedi a ele que nos acompanhasse com as chaves para abri-la.

Perguntei:
—Como está o nosso menino?
—Calmo Dr. Inácio, ele está bem - pelo menos, aparentemente, está bem...

De facto, tudo parecia tranquilo, mas, quando Paulinho, ou as entidades que o manobravam, colocou os olhos no Chico, imediatamente caiu em transe...

Eu nunca vira uma transfiguração como aquela - o rapaz emagreceu, ficou maior, adquiriu um aspecto sombrio na face encovada e começou a falar, com voz rouquenha e ameaçadora, como se estivesse sendo reprimido em seus ímpetos de agressividade:
—Até que enfim, você veio...
Face a face com Chico Xavier, o chefe dos hereges!...
Eu nunca pude me aproximar tanto de você como agora, o culpado de tudo isto...

Eu já tinha ouvido a seu respeito...
Mas que os disfarce arranjaram para você!
Que corpo desengonçado o seu!...
Tenho informantes, eles me disseram que, na actualidade, você é o maior inimigo da Igreja...

Embora surpreso Chico se mantivesse calmo, sem abrir a boca ante o espírito, que continuava:
—Seu francês tolo!...
Você é que deveria ter ido para a fogueira!...
Pena que o meu braço não o tenha alcançado, eu queria ter tido você na Espanha!...

Quem é que pensa que é?
Que reencarnação que nada!...
Vocês estão nos impedindo acesso ao Céu...
Conspirando contra a Santa Madre Igreja!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 19, 2014 9:14 pm

Interessante que a entidade espiritual, apesar de extremamente agressiva na palavra, inclusive pronunciando baixarias que deixo de reproduzir, parecia imobilizada por invisível camisa-de-força, contorcia-se toda, mas dela não se libertava...

—Você sabe quem sou eu? - gritou, como se estivesse em crise epiléptica.
Sabe, eu sinto que você sabe...
Não pensem que, em prendendo aqui o meu instrumento, vocês me manterão preso por muito tempo...

Meu Deus! Aquelas palavras da entidade promoveram um clarão na minha cabeça:
aquele inquisidor desencarnado estava preso no Sanatório, vinculando-se tão estreitamente àquele menino, ele se encarcerara...

—Por enquanto - prosseguiu, sem que eu e Manoel Roberto soubéssemos que providências tomar -, eu não posso me libertar:
se eu forçar, ele morre, e não quero que ele morra antes que eu me vingue daquela cadela que o pariu...

Ela me envenenou. Eu sei que foi ela.
Fui traído... Eu a desejava, ela tinha um corpo lindo...
Ficou grávida de mim e deu o meu filho aos muçulmanos - ciganos muçulmanos...

O ódio do espírito não impediu que os seus olhos se enchessem de lágrimas, quando se referiu ao filho.

—Meu irmão - falou timidamente Chico Xavier, ante o silêncio da entidade que provocava no corpo de Paulinho estranhas convulsões -, não se prenda ao passado.

Esqueça... Somos filhos de Deus.
Todos temos caído sucessivas vezes, mas somente através do amor nos levantaremos...

Jesus não aprova a violência.
A Verdade está em toda parte, não somos os únicos a estar com a razão...
Não o consideramos na condição de inimigo, queremos tê-lo por companheiro de nossos ideais.

E esse dia ainda chegará!...
Vamos orar juntos, rogando perdão pelos nossos muitos erros.
Esta casa, que o hospeda com o seu filho de outras eras, pertence a Jesus Cristo!

Ele aqui está recebendo carinho...
Não nos queira mal.
Estamos aqui para lhe ser útil...

—Cale-se! Não quero ouvir - retrucou o espírito, prestes a interromper o transe.
São palavras ditas ao vento...
Se vocês me auxiliarem em meus propósitos de vingança, prometo ignorá-los.

Não quero mais nada: só quero a ela e... Meu filho.
Aquele outro sairá de cena com facilidade.
É um intruso. Não resistirá a um sopro meu...
Dizem que é meu irmão, mas eu não acredito.

E, deixando Paulinho estirado no chão, extremado como se tivesse recebido um injectável na veia, o obsessor, sem acrescentar palavra, se retirou.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 19, 2014 9:14 pm

Juntamo-nos os três, eu, Chico e Manoel Roberto, para colocá-lo na cama.
Efectuando pequena prece, estes companheiros lhe transmitiram um passe de refazimento.

Forte cheiro de éter como que ionizou o ambiente daquele quarto no porão...

Acompanhando Chico Xavier até a porta de saída do hospital, perguntei, estendendo-lhe a mão em despedida, enquanto o meu auxiliar acertava com o motorista do táxi:
—Quem você acha que é ele, Chico?

—Dr. Inácio - respondeu-me com discrição, a característica dos médiuns mais confiáveis -, esperemos que ele próprio se identifique, é um irmão nosso extremamente enfermo...
Acredito que ele esteja, sem perceber, ensaiando os primeiros passos no caminho da redenção.
O Dr. Bezerra de Menezes e Bettencourt Sampaio estarão atentos.

Façamos a nossa parte.
Apenas peço ao senhor que não deixe o menino ir embora, antes que tenhamos uma melhor solução para o caso.

Com repetidos acenos de mão em despedida, Chico adentrou o automóvel, alegando que estava esperando alguns amigos de São Paulo naquela noite, e partiu.

Sentindo o corpo moído, fui à cozinha e tomei um analgésico.
Acendendo um cigarro, resolvi descer e uma vez mais, olhar pela janela gradeada da cela, verificando a situação ao meu paciente do Capão-da-Onça.

Paulinho dormia profundamente, de semblante tranquilo.
O cheiro de éter ainda permanecia forte.

Subi as escadas que me haviam conduzido ao porão, verifiquei se tudo o mais estava em ordem e fui para casa, ávido por uma sopa quente que me reanimasse.

Daí a três dias, no domingo, receberíamos a visita dos pais de Paulinho que, para minha surpresa, trouxeram na sua companhia uma linda garota de dezasseis de idade, de nome Mariana, que também se fazia acompanhar por sua avó.

Mariana era uma jovem extremamente graciosa, cabelos castanho-claros e olhos amendoados trajava um vestido azul todo florido que lhe dava um pouco abaixo dos joelhos...

Assim que Paulinho a viu, o rapaz se transformou.
Adquiriu nova postura, alisou os cabelos com as mãos, ajeitou a camiseta no corpo e abriu um sorriso.

—Como vai, Paulinho? - indagou a moça, estendendo-lhe timidamente a mão.
Você está melhorando?
Os nossos amigos mandaram lembranças...

—Estou Mariana, devagar estou melhorando - respondeu o jovem, um tanto envergonhado.

—Você precisa ficar bom depressa para sair daqui - atalhou, com evidente desequilíbrio na voz, dona Maria das Dores.
Eu não suporto ver você aqui...

Não sei o que tem esta casa.
Para mim, ela abriga as almas penadas do Purgatório...
Fico toda arrepiada.
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Sob as cinzas do tempo - Inácio Ferreira / Carlos A. Baccelli - Página 2 Empty Re: Sob as cinzas do tempo - Inácio Ferreira / Carlos A. Baccelli

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 19, 2014 9:14 pm

—Ora, controle-se, das Dores! - interferiu o senhor Juliano.
Isto aqui é um hospital; o nosso filho está precisando de tratamento...
Não devemos ofender os médicos que estão cuidando dele.

Eles não nos fizeram nenhuma exigência...
Estou cansado de falar com você, mulher: os espíritas são gente boa...

—É mesmo, comadre - completou dona Josefina, avó de Mariana, que parecia ter vindo com o casal e com a neta para tentar amenizar as aflições da viagem.

Os espíritas nunca nos fizeram mal.
O Sr. João Urzedo ajudou muita gente no Capão-da-Onça...
Todo o mundo que chegasse com fome comia na casa dele.

—Mas eu não quero saber de Espiritismo; já ouvi muito padre dizer que isto é coisa do Demónio...

Vigilante, acompanhava o diálogo dos pais de Paulinho, sem, contudo, perder o meu paciente de vista.
Fiquei com receio de que, novamente na presença da mãe, ele se alterasse, o que, felizmente, não aconteceu.

A presença de Mariana estava sendo um tranquilizante eficaz.
Aproximei-me, cumprimentei o Sr. Juliano, dona Josefina e dona Maria das Dores, que se recusou a me estender à mão, virando o rosto com um muxoxo.

—Como é, Paulinho? - perguntei, procurando desfazer o mal-estar.
Recebendo a visita da namorada?

O rapaz corou na hora, sorrindo, sem coragem de me fitar.

—Como vai, minha filha? – cumprimentei Mariana, sentindo pela menina um carinho que nem eu poderia explicar; como nunca tivera filhos, encantava-me a figura de uma jovem como Mariana...

—Eu vou bem... E o senhor? - correspondeu, educadamente.
O senhor é o médico do Paulinho?
Ele vai ficar curado, não vai?...

—É claro que vai, Mariana! - disse com convicção, pousando a destra no ombro do rapaz.
O Paulinho não tem nada no cérebro, o problema dele é espiritual...
—Espiritual... - resmungou baixo, mas audível, dona das Dores, como contestação.

Sem dar muita importância à progenitora do meu paciente, a qual, na minha concepção, era quem deveria estar internada no lugar dele, prossegui conversando com Mariana:
—O seu namorado vem sendo assediado por um inimigo da família, trata-se de um espírito revoltado e de grande poder hipnótico...
No entanto acredito que ele vai acabar cedendo.

Já faz muito tempo - dezenas e dezenas de anos - que ele se encontra nesta situação.
Temos conversado com ele.
Acredito que tudo seria mais fácil, se dona Maria das Dores cooperasse um pouco mais...

—E eu tenho cooperado - redarguiu, fazendo por três vezes o sinal-da-cruz.
Rezo todos os dias a Santa Teresinha do Menino Jesus e entrego a ela a sorte do meu filho.
Tenho certeza de que, a qualquer momento, acontecerá um milagre...
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Sob as cinzas do tempo - Inácio Ferreira / Carlos A. Baccelli - Página 2 Empty Re: Sob as cinzas do tempo - Inácio Ferreira / Carlos A. Baccelli

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 19, 2014 9:14 pm

—Ela passa quase o dia todo de joelhos, Doutor - atalhou o marido, com descrença.

Querendo ganhar um pouco a confiança daquele atormentado espírito, comentei:
—A prece nunca é demais...
Precisamos nos unir.
O importante é que Paulinho sare logo e me convide para o casório...

Mariana e o rapaz se entreolharam, felizes.
A presença da garota, Paulinho, desde que chegara ao Sanatório, nunca estivera tão normal.

—Creio, Mariana - disse, brincando com os seus cabelos quase cacheados -, que você é melhor médico para ele do que eu, você deveria visitá-lo com maior frequência...

—Eles estão prometidos um para o outro, Dr. Inácio - comentou o Sr. Juliano.
A Mariana era filha de um grande amigo meu, que a cascavel picou, a mãe dela morreu quando estava grávida do segundo filho.

Desde pequena, Mariana é criada pela avó, que também é viúva...
Quando Mariana nasceu, o compadre Belmiro me disse que, um dia, os nossos filhos haveriam de se casar, o senhor não há de ver que os dois começaram a namorar, cresceram juntos e parece que a coisa vai dar certo, não é mesmo, comadre Josefina? - perguntou o sitiante à avó da menina, que me parecia uma senhora ponderada.

—É verdade, mas eles ainda precisam esperar um pouco mais - respondeu cautelosa.
Paulinho, primeiro, precisa ficar bom...
O senhor não concorda Doutor?

—Concordo com tudo o que vocês disserem - observei, torcendo para que, um dia, aquele namoro acabasse em casamento.
Aliás, eu não estou aqui para discordar de ninguém...

Digo-lhes apenas o seguinte: se eu estivesse doente e tivesse uma namorada como a Mariana, trataria de ficar bom depressa...
Se o Paulinho não casar com ela, eu vou acabar casando... - caçoei.

A minha brincadeira não conseguira arrancar o mais discreto sorriso de dona Maria das Dores.
De facto, a sua alienação psíquica era preocupante...

Convenci-me de que a salvação de Paulinho seria Mariana.
Embora inofensivo, o seu pai me parecia um homem sem maior determinação - um homem bom, mas sem iniciativa; talvez ele apenas soubesse cuidar da terra e do gado...

Antes de se despedir, Mariana abriu uma pequena bolsa que estava com dona Josefina, tirou de dentro dela um pequeno crucifixo preso a um cordão e o colocou em volta do pescoço de Paulinho.

Pensei no perigo que aquele barbante em torno do pescoço de um paciente psiquiátrico pudesse representar, mas logo desconsiderei a ideia: além de ser um cordão muito fino, o presente de Mariana para Paulinho era uma espécie de objecto que, em hipótese alguma, ele profanaria.

Quando estavam de saída, dona Josefina me indagou:
—Por quanto tempo, Doutor, Paulinho ainda precisará ficar internado?

—Não sei, minha irmã - respondi, procurando abaixar o tom de voz, para que o rapaz, que estava tendo alguns poucos minutos a sós com Mariana, sob os olhares vigilantes de Manoel Roberto, não ouvisse os meus prognósticos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 19, 2014 9:14 pm

Vai depender. Ainda precisamos trabalhar o espírito...
Dona Maria das Dores, pelo que vejo, não está em condições de nos ser mais útil.

Quando ele estiver melhor, mando avisar.
Tem gente do Capão-da-Onça toda semana em Uberaba.

O casal de namorados se despediu apenas com um aperto de mão mais demorado, Mariana encheu os olhos de lágrimas e Paulinho voltou chorando para o quarto...

Pelo menos, a visita daquele domingo servira para que os demais pacientes se esquecessem do episódio com o leite fervendo, que queimara três internos.

O jipe empoeirado arrancou e eu voltei para dentro, procurando dar alguma atenção a outros que ali haviam ido para uma visita rápida aos familiares.

Quando caminhava pelo corredor, com a cabeça povoada de pensamentos que me subtraíam o espírito, uma enfermeira me avisou:
—Dr. Inácio, o Sebastião está novamente com aquelas crises de depressão...

Sebastião era o nosso hóspede mais antigo; morava no Sanatório por mais de dez anos.
Quando se sentia melhor, varria o pátio, lavava o banheiro, mas a maior parte do tempo não fazia nada...

Ociosidade - o agravante dos males da alma!...

—Como é, Sebastião? - interroguei, sentando-me ao seu lado, sem inspiração alguma para conversar, as visitas de domingo também acabavam por me deprimir em relação à melhora dos pacientes, de um modo geral, os familiares se revelavam sem a mínima condição de cooperar com o tratamento que era efectuado no Sanatório...
Novamente pensando em morrer?...

—E de que, Dr. Inácio, está servindo a minha vida?...
Faz mais de dez anos, a cada domingo, espero pela visita de um familiar que nunca aparece.
Os meus filhos me esqueceram aqui...

Sebastião viera de uma cidade de Goiás, trazido por um filho que, prometendo voltar no próximo mês, nunca mais viera.

O endereço que fornecera na ficha estava equivocado.
Cansei-me de tentar entrar em contacto telefónico e telegrafar...

Com quase setenta anos, aquele senhor, que tinha sido alcoólatra havia dez anos atrás, chegara ao Sanatório quase desmemoriado; a sua ficha se perdera e o que ele dizia não era muito confiável...

Com grande abatimento, ele prosseguiu falando:
—Sou um peso para vocês, não posso pagar pela comida que me dão...
O melhor mesmo seria morrer.

Eu não acredito em vida depois da morte.
O senhor me perdoe Dr. Inácio, pois o senhor tem sido um pai para mim, mas eu não acredito na existência de vida depois da morte...

Vocês poderiam me aplicar uma injecção para que eu dormisse e nunca mais acordasse, não estou mais aguentando isto...
Dêem-me pelo menos uma corda para que eu me enforque...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 19, 2014 9:15 pm

—Sebastião - disse-lhe com certo cansaço na voz -, já conversamos diversas vezes sobre este assunto.
A vida é um dom de Deus, precisamos esperar, com paciência e resignação, pelo momento aprazado...
Você se casou, teve filhos, eu não me casei e não tive - e não foi por falta de tentativa!...

Eu também sou sozinho.
Tenho o meu trabalho nesta casa e mais nada.
Os meus familiares são vocês.

Não vamos discutir se existe ou não existe vida fora da matéria, quem sou eu para convencer alguém a respeito da verdade que ele prefere ignorar?...

—Doutor, mas eu não estou servindo para nada...
Eu quero morrer!
Se existe outra vida, como vocês dizem melhor morrer e começar tudo de novo...

Conviver com esta lembrança do passado é terrível...
Perdi a existência.
Não tenho a gratidão nem daquele que coloquei no mundo...

Eu era um bêbado.
Recordo-me apenas de que, de tanto sofrer, a minha esposa abandonou a casa; fugiu com um homem, nem sei para onde...
O José e o António foram criados por uma tia, eu vivia nas ruas, cambaleando...

A depressão é um mal terrível.
Os argumentos dos que se permitem dominar por semelhante estado de alma são quase irrefutáveis, eles se retratam como se sentem por dentro, mostrando-se completamente refractários a qualquer argumentação em contrário.

Estive para pedir à enfermeira que lhe desse uma carga maior de medicamentos, dispensando-me, uma vez mais, de tentar demovê-lo daquela ideia fixa de suicídio, para mim seria mais fácil, pois, naquele instante, eu não saberia qual de nós dois era o mais deprimido...

Todavia, lembrando-me da minha responsabilidade, mas não querendo levar aquela discussão filosófica que se esboçava adiante, convidei:
—Sebastião, levante-se da cama e venha comigo.
Vamos ao quintal...
Ganhei três galinhas poedeiras e um galo índio.
Eles não podem ficar soltos.

A experiência com os doentes do Sanatório me havia ensinado que uma das tácticas que funcionava bem era, por vezes, mostrar-me mais louco do que eles; com frequência, eu mudava de assunto: eles estavam falando de pau, eu começava a falar de pedra...

—Vamos, Sebastião, levante-se.
Neste hospital, até os bichos são loucos...
Vamos dar um jeito de fechar aquelas galinhas - existem muitos gambás por estes matos, são galinhas lindas, daquelas de barbela...
Você conhece galinha de barbela, Sebastião?...

—Conheço Dr. Inácio.
Lá em Goiás tem bastante delas.
Elas chocam que é uma beleza!...

—Convém que choquem, mesmo, pois se não chocarem, irão para a panela... - respondi com o propósito de espantar os demónios do corpo...
E você, Sebastião - disse, apontando-lhe o dedo em riste -, não fique pedindo corda para morrer não, porque uma hora eu mesmo acabo dependurando você...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Mar 19, 2014 9:15 pm

Onde é que já viu, um marmanjo desses, um velho enxuto como você!...
Vá namorar a lavadeira...
Você já viu a nossa nova lavadeira?
É uma morena daquelas e viúva!...

Aquela crise de depressão estava, pois, superada - a do Sebastião e a minha.
Ai de mim, se eu não trabalhasse o dia todo!...

Se fosse levar tudo a ferro e fogo, eu estaria perdido:
acabaria entrando numa daquelas celas, trancaria a porta e jogaria a chave fora.

O segredo para combater a depressão era não perder o senso de humor - eu galhofava o dia inteiro.
Curei muitos perturbados, mostrando-me mais perturbado do que eles.

E, no Sanatório mesmo, cansei de ver médicos excessivamente pragmáticos piores do que os pacientes...

Na segunda-feira, logo pela manhã, Manoel Roberto veio me avisar:
—Dr. Inácio, tem um pessoal de Veríssimo querendo falar com o senhor...
Pedi que entrassem e os atendi na saleta de recepção, uma espécie de saguão aberto, onde costumava fazer o primeiro contacto com os que me procuravam.

O caso era desesperador.
Um casal havia vindo da cidade de Veríssimo, trazendo a filha, uma moça solteira com os seus mais de trinta de idade, com evidentes sinais de distúrbios psíquicos.

A moça revelava o corpo coberto de úlceras descamativas, que sangravam...

—Doutor, temos pelejado com a nossa filha, há uns três anos, apareceu esta coceira no corpo dela.
Já fizemos de tudo:
passamos diversas pomadas, banhos com plantas medicinais, simpatias que nos ensinaram, e nada.

Ela só tem piorado...
Eu não sei se é da doença - explicava o progenitor, aflito -, mas, de alguns meses para cá, ela está meio perturbada, não fala coisa com coisa, enfia as unhas na pele como se estivesse querendo rasgar a própria carne...

Gostaríamos que o senhor tratasse da nossa Irene.
Coitada! Estava noiva, de casamento marcado, mas, agora, deste jeito...

Dermatologia nunca foi o meu forte em Medicina, no entanto aquele quadro era de diagnóstico inconfundível.

Detendo-me a examiná-la com maior cautela, questionei:
—Irene, coça muito?...

A moça, de olhos arregalados, perdidos em um ponto qualquer do horizonte, respondeu:
-Queima Doutor, queima e arde...
Sinto como se estivesse numa fogueira...

Não tive mais dúvida - era, de fato, pênfigo foliáceo, ou, em outras palavras, fogo-selvagem.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 20, 2014 10:18 pm

Enquanto Manoel Roberto providenciava um copo de água para Irene, chamei os seus pais à parte e esclareci:
—Não é um caso para mim...
A moça, em verdade, está um tanto prejudicada emocionalmente.

Creio até que existe um componente espiritual:
obsessão, mas o problema dela é uma doença popularmente chamada de fogo-selvagem...

A mãe começou a chorar, disfarçando as lágrimas de desespero.
Eram gente muito simples, haviam vindo de carroça e não tinham a quem apelar.

—Vamos ver o que nos será possível fazer - disse, tentando confortá-los.
Aqui, em Uberaba, existe um hospital que trata destes casos.
Vocês já ouviram falar de dona Aparecida, do Hospital do Pênfigo?

—Já, Dr. Inácio, mas não temos recursos para pagar o tratamento dela, conhecemos pouca gente em Uberaba...
Saímos de Veríssimo de noitão, pois não poderíamos viajar com sol:
no calor, a Irene fica quase louca!
Tempos atrás, ela saltou dentro do rio e quase morreu afogada...

Compadecido da situação da jovem, que, de facto não tínhamos como receber no Sanatório, deixando-a na companhia dos outros internos, comentei:
—Não se preocupem.
Dona Aparecida é uma mulher muito caridosa.
Costumamos mandar doentes um para o outro...

Vou só assinar uns papéis e dou uma chegada lá com vocês; aliás, vou pedir a alguém que os guie.
Daqui a pouco eu desço com o meu carro, o hospital não fica muito longe - é só descer um morro e subir outro...

Fiquei embaraçado por cerca de uma hora, prescrevendo, verificando fichas.
Quando cheguei ao Hospital do Pênfigo, dona Aparecida já estava conversando com o casal de Veríssimo e com Irene.

A me ver, foi logo abrindo o seu sorriso característico e caminhando ao meu encontro, com os longos braços balançando:
—O senhor está ficando bom nisto, Dr. Inácio... - comentou, confirmando meu diagnóstico.
Infelizmente é pênfigo mesmo e em estado adiantado...

Ela vai precisar ficar aqui, mas o senhor poderia dar a ela um remédio para a cabeça:
tenho medo de que a nossa paciente faça uma besteira.

O senhor sabe como é:
às vezes, precisamos amarrar o doente na cama...

Hoje estamos aqui com mais de quarenta, entre homens e mulheres e duas crianças.
Antigamente, o pênfigo não atacava as crianças...

—Aparecida, o passado é implacável, devemos ter feito muita coisa errada, nós dois:
eu, cuidando de doidos, e você, cuidando de penfigosos...
Agora vamos pensar no que esse pessoal deve ter feito...

—Segundo o Chico Xavier, que me visitou um dia destes - esclareceu a fundadora do nosocómio, o único num raio de muitos e muitos quilómetros -, quem reencarna com fogo-selvagem é porque ateou fogo no próprio corpo, cometendo o suicídio, ou então, queimou gente viva na fogueira...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 20, 2014 10:18 pm

Até aquele momento, eu não havia ligado uma coisa com outra:
os espíritos que, no passado, haviam lidado com fogo estavam me rodeando.

No Sanatório, enfrentávamos aquele problema com Paulinho e o espírito do inquisidor que não o deixava e, agora, aquela moça infeliz com fogo-selvagem...

Estávamos cercados de labaredas!...
Em rápidas palavras, comentei com Aparecida sobre o drama que estávamos vivenciando no Sanatório.

— Dr. Inácio, a maioria dos nossos internos não pode ver fósforo.
O Chico Xavier tem razão...
Eu só não entendo por que estes espíritos, como diz o senhor, dos inquisidores do passado, estão vindo para Uberaba...

—É a presença do Espiritismo aqui, Aparecida - respondi, sem, no entanto, conseguir as palavras certas para melhor me explicar.
Os que se arrependeram do que fizeram estão se redimindo; os que ainda não se arrependeram continuam combatendo o que rotulam de heresia...

—Eu sei que o senhor tem sofrido muitas perseguições da Igreja, Dr. Inácio, fiquei sabendo da procissão que o Bispo organizou e fez parar em frente à casa do senhor... - mostrou-se Aparecida mais bem informada do que eu supunha.

—Estamos sob fogo cruzado... - observei-lhe, exteriorizando certa ironia - o fogo dos inquisidores que estão no Além e o fogo dos que outra vez encarnaram de batina.
Se continuar assim, vamos acabar virando churrasco - principalmente eu:
esse povo tem uma gana em mim!

Irene permaneceria internada por três longos anos, ao fim dos quais, infelizmente, viria a desencarnar.
Tudo, no entanto, foi feito para amenizar os seus grandes padecimentos; pelo menos, antes de deixar o corpo, ela recobrou a lucidez e partiu com serenidade, inclusive dirigindo algumas palavras de consolo aos próprios pais.

Quando voltei ao Sanatório, dona Querubina estava me aguardando.

—Olá, Dr. Inácio!
Como vai o senhor? - saudou--me com efusiva manifestação de apreço.

Dona Querubina era uma senhora de mais de setenta, benzedeira, que tomava conta de dois pirralhos, seus netos.
De quando em quando, ela aparecia para dois dedos de prosa.
Bebíamos café e pitávamos, eu acendia o meu cigarro e ela o seu cachimbo...

—Como vai indo, minha velha? - interroguei, aliviado com a sua presença, que me deixava envolto em boas vibrações.
—Comigo tudo em paz, Doutor.
E com o senhor, como é que vai indo a luta?...

—Como à senhora já sabe:
"Se correr o bicho pega, se ficar, o bicho come"...

—Eu sei, eu sei... - observou, concordando literalmente.
Inclusive, Doutor, estou aqui por causa disto mesmo.
Temos sempre orado pelo senhor lá em casa, e ontem tivemos uma revelação...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 20, 2014 10:18 pm

—?!...
—O meu guia, o espírito de Pai Jacó, me falou da existência de uma legião de exus sobre o Sanatório.
Carece o senhor tomar muito cuidado...

—Exus?!... E ainda por cima em legião!...
Era só o que me faltava... - reflecti, sem saber ao certo como reagir.

—Pai Jacó me mostrou meu filho, e eu vi...
São dezenas, todos com tochas acesas na mão e longas roupas escuras e têm um chefe...
Não pude ver o rosto dele, mas me parece um espírito muito mau.
Os outros espíritos têm medo dele...

O que dona Querubina estava dizendo batia com tudo aquilo que vivenciávamos no Sanatório, ultimamente.
A mediunidade da benzedeira, que recebia lá os seus caboclos e preto-velhos, era fantástica!...

—Aumente a vigilância, meu filho! - prosseguiu a mãe-de-santo, que eu sentia imensa alegria em auxiliar, todas as vezes que me procurava.
Estão querendo a sua cabeça; querem fechar isto aqui de todo jeito!...
Pai Jacó prometeu não deixar que nada de mal aconteça a você, mas os exus têm gente deles aqui dentro...

—Agradeço o alerta, dona Querubina e não dispenso a protecção de Pai Jacó - emendei convicto.
Do jeito que as coisas andam, nós aqui estamos precisando de todo o mundo.
As rezas da senhora serão sempre bem-vindas.
Eu não tenho nenhum tipo de preconceito...

—Antes de me retirar, Doutor, eu queria saber se o senhor aceitaria uma benzição minha...

—É claro, minha irmã - respondi, convidando-a a discrição de uma sala onde ninguém nos interrompesse ou causasse estranheza ver aquela senhora cheia de colares de contas no pescoço me transmitindo um passe, segundo a sua crença.

Se a senhora não me oferecesse a benzição, eu já estava para pedir, sinto-me mesmo precisando de um descarrego da cabeça aos pés... - argumentei, com o propósito de deixá-la à vontade.
Sentei-me numa cadeira e não demorou mais que um minuto para que dona Querubina caísse em transe.

Pronunciando algumas palavras em dialecto africano, o espírito Pai Jacó, incorporado, segurando-me as mãos entre as suas, falou-me, respeitoso:
—Meu filho, sei que você conta com a protecção de elevados emissários do Cristo nesta casa.
Aqui estou conversando com você com a permissão deles...
Não se preocupe. O nosso propósito é o mesmo.

Você deve ter cautela...
Os exus estão revoltados, estão resistindo aos apelos da Lei para que retomem o corpo na Terra...

Amotinaram-se no Além.
Um dos líderes deles está aqui.
Querem combater o Espiritismo, investindo contra aqueles que o representam na comunidade.

Não basta morrer para aceitar a Verdade...
Nosso Senhor Jesus Cristo continua sendo crucificado por aqueles que justamente imaginam servi-lo...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 20, 2014 10:19 pm

Os alicerces da Igreja estão comprometidos:
não há mais como salvar essa instituição milenar!...
Os compromissos espirituais assumidos foram muito grandes, os verdadeiros pastores, com raríssimas excepções, desapareceram do Catolicismo...

Revelando uma condição intelectual superior à de dona Querubina, que lhe servia de intérprete, prosseguiu o iluminado guia, que se ocultava sob o pseudónimo de Pai Jacó:
—Exus, meu filho, são espíritos que se devotam ao Mal, são aqueles que, infelizmente, se fazem discípulos das Trevas!...

Não esmoreça em sua luta.
Auxiliemos o rapaz que aqui se encontra internado, trata-se de um espírito que é muito caro aos sentimentos do líder dos exus ao qual estamos nos referindo...

É a oportunidade de que ele reconheça os seus erros seculares, cometidos em nome da Fé.
Se conseguirmos fazer com que ele aceite a reencarnação, desarticularemos numerosa legião das sombras que resiste aos alvitres do Bem...
Estamos com você e com os demais companheiros encarnados que trabalham nesta casa.

Fazendo breve pausa, antes de me dirigir as suas palavras finais, Pai Jacó me abençoou com o passe que me deixou de alma mais aliviada, como se estivesse retirando com as mãos e dispersando na atmosfera o peso de muitas vibrações negativas.

—Agora, eu já me vou, meu filho.
Não se sinta enfraquecido...
Pai Jacó estará sempre por perto, se você precisar de mim, é só chamar...

Você me conhece com outro nome, mas eu sou o mesmo espírito.
Que Nosso Pai o proteja!...

Saindo do transe, dona Querubina pediu um copo de água, beijou as minhas mãos e ao se despedir, fiz com que aceitasse alguma ajuda para os meninos.

—Veio na hora certa, Doutor; eu estava mesmo precisando comprar material de escola para aqueles dois...
Desde que minha filha morreu e o pai os deixou comigo, tem sido dura a minha lida - redarguiu humilde, a velha benzedeira e mãe-de-santo.

Antes que se fosse de vez, a ialorixá tirou de uma sacola uma pequena imagem de Pai Jacó, presenteando-me com ela.
Olhei demoradamente, procurando, em seguida, um lugar discreto para colocá-la.

Durante algum tempo, a estatueta de Pai Jacó ficara ali, em cima de uma pequena estante, logo abaixo de um quadro do Dr. Bezerra de Menezes, todas às vezes, que eu a olhava, vinham à minha mente as suas enigmáticas palavras:
—"Você me conhece com outro nome, mas eu sou o mesmo espírito"!...

Naquela quarta-feira, em nossa reunião mediúnica – desobsessão -, assim que caiu em transe, dona Modesta começou a se contorcer, crispando as mãos sobre a mesa, com visível esforço para não permitir que a entidade manifestante a esmurrasse.

Súbito, uma gargalhada que, inclusive, deve ter sido ouvida na rua pelos transeuntes, certamente confundindo-a com um dos delírios dos nossos muitos internos, ecoou desafiadora...

—Tolos! - bradou o espírito com irónica entonação de voz...
Eu estou sabendo de tudo, vocês não me enganam:
estão tramando a minha volta ao corpo...
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Sob as cinzas do tempo - Inácio Ferreira / Carlos A. Baccelli - Página 2 Empty Re: Sob as cinzas do tempo - Inácio Ferreira / Carlos A. Baccelli

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 20, 2014 10:19 pm

Aquele velho, aquela velha...
Ela viu ontem do que sou capaz:
joguei-a no chão e lhe quebrei o pé...

Eu ainda não havia recebido a notícia de que dona Querubina escorregara próximo ao batedor de roupas de sua casa e no dia anterior, quebrara o pé...

Na quinta-feira pela manhã, eu e dona Modesta haveríamos de fazer-lhe uma visita cordial, dispondo-nos para o que se lhe fizesse indispensável à recuperação.

—Desistam!... - continuava a entidade, como se estivesse a dardejar vibrações.
Eu os reduzirei a cinzas!
Posso provocar um curto-circuito a qualquer instante e atear fogo nisto tudo aqui!

Não brinquem comigo...
Soltem o rapaz, soltem o meu menino, ele não tem culpa de nada - é aquela megera, foi ela que me traiu...

—Então, Paulinho foi seu filho?... - arrisquei, indagando.
—Cale-se!...
Você está querendo saber demais...
Eu o mato!...
Se você não o soltar, eu o destruo!...

—Mas, meu irmão...
—Que irmão, coisa nenhuma!...
Dobre a língua, quando ousar dirigir-se a mim.

Fui nomeado Inquisidor Geral pelo Papa...
Tenho amplos poderes, posso fazer e desfazer...
Vocês estão conspirando contra a Igreja - modernos fariseus, travestidos de cristãos!...

Deixem-nos em paz...
Vocês estão profanando os túmulos.
O poder da Igreja se estende para além desta vida miserável no corpo de carne...

—Vamos falar de Paulinho... - insisti, reconhecendo que aquele era o seu ponto vulnerável.
—Não o toquem...
Eu o quero de volta, eu o trarei de volta, mas somente depois que ele esganar aquela adúltera...
Ela me traía com todo o mundo.

Eu, que não tinha receio de homem algum, fui vencido por uma mulher...
Eu a amava loucamente...
Não sei que poder ela tinha sobre mim...

—Paulinho é um bom menino... - repetia, prevalecendo-me dos momentos em que a médium sentia necessidade de tomar fôlego.

—Atrevido!...
Vocês querem convertê-lo a essas heresias de vocês, não é? - gritava, custando conter-se a entidade do ex-inquisidor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 20, 2014 10:19 pm

—Não são heresias, você está se comunicando connosco.
É o seu espírito que está falando através de um médium...

—Que médium nada!...
São poucos os mortos com poder de falar com os vivos...
A Igreja está repleta de santos.
Vocês estão pretendendo nos substituir nos altares, não é?

Eu quase fui canonizado...
Eu posso vir quando quero.
O resto aqui é baboseira...
É tudo invenção da cabeça desta mulher...

—E Pai Jacó, meu irmão?...
Será também uma invenção?...

—Estamos precisando de uma inquisição por aqui, há muita gente que precisa morrer uma segunda vez na fogueira...
Esse Pai Jacó de vocês é inacessível, sempre que me aproximo dele, desaparece...

É um homem de mil disfarces...
Tem medo de enfrentar cara a cara...
—Eu gostaria de trazer Paulinho para conversar com você... - propus, num lampejo de inspiração.

—Nunca!...
Eu converso com ele quando quero.
Ele me escuta e me obedece...

—Você só fala, você precisa ouvir...
Não gostaria de ouvir a voz de seu filho soando aos seus ouvidos?...
Você se impõe ao Paulinho, mora dentro do corpo dele...
—Mentira, mentira!... - esbracejou, com a boca espumando.

Eu não poderia consentir que aquele transe se prolongasse por mais tempo.
Dona Modesta estava se desgastando além do que deveria suportar a pressão psíquica com o espírito do ex-inquisidor, a cefaleia renitente se apresentara...

Visando abreviar o assunto que, com certeza, se arrastaria noite adentro, argumentei:
—É a proposta que eu lhe faço:
você quer que eu libere o seu filho.
Pois bem, converse com ele e eu lhe dou a minha palavra...

—A sua palavra não vale coisa alguma para mim...
Quem você pensa que é para me fazer proposta?
Se eu quiser, tiro Paulinho daqui esta noite mesmo?...

—Como?!... - perguntei, cometendo o erro de denotar desafio a ele.

Sem nada responder, o espírito soltou um urro e deixou a médium desfalecida, completamente inerte, de rosto colado à mesa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 20, 2014 10:19 pm

Manoel Roberto trouxe, às pressas, um chumaço de algodão embebido em álcool.
Era o que, no momento, tínhamos ali mais próximo, que fizemos dona Modesta cheirar, e, massajando-lhe as têmporas, providenciamos que recobrasse os sentidos.

Quando pôde falar, a médium considerou:
—Inácio, esse espírito é dos piores que tenho visto em toda a minha vida...
Não convém desafiá-lo.
Tive que fazer um esforço muito grande para que ele não me obrigasse a saltar sobre você...

Nas reuniões seguintes, vamos retirar todos os objectos do recinto e, aí, vou pedir a você que me amarre na cadeira.
Se ele passar a mão num copo de vidro, ele o quebra e corta a garganta de um de vocês, é ágil como um felino...

Eu estava impressionado.
Dona Modesta nunca me fizera uma solicitação semelhante.

Enquanto esperávamos que a nossa irmã se restabelecesse de todo, Manoel Roberto foi à cozinha e, com o auxílio de uma das senhoras que participavam connosco da sessão mediúnica, mandou trazer um café, que tomamos como quem, aos poucos, se refazia de uma surra.

Após a sessão de quarta-feira, que sucintamente descrevi, as coisas se acalmaram no Sanatório.
Paulinho estava mais tranquilo, dando-me a impressão de que o espírito que o perseguia estivesse repensando a sua táctica obsessiva.

Na quinta-feira, dona Modesta estivera no Sanatório e, refeita do abalo da véspera, entramos a conversar descontraidamente.

—Inácio - disse-me ela - é lamentável a situação de certas entidades além da morte, eu não compreendo como não possam aceitar a Verdade, assim que se reconhecem, em definitivo, fora do corpo; como esses espíritos podem continuar afrontando o nome do Senhor, convictos de que estão certos - digo afrontando, porque é em nome do Evangelho que espalham a descrença...

—Você tem razão - comentei.
Eles não atendem nem mesmo os nossos Maiores...

A gente tem a impressão de que no Mundo Espiritual as opiniões estão mais divididas que na Terra - os espíritos não se entendem; os padres continuam defendendo os seus pontos de vista; os evangélicos prosseguem apegados às citações da Bíblia, os descrentes da existência de Deus perseveram em seus questionamentos infundados...

Morrer não adianta.
Para a maioria dos desencarnados, o tempo parece não passar...

—Na condição de médium, Inácio - dava sequência à devotada cooperadora -, experimento em contacto com os espíritos, muitas angústias, com excepção dos nossos Benfeitores, que me transmitem uma sensação de paz, por vezes retenho na alma as impressões que os espíritos sofredores não conseguem externar em seus diálogos connosco...

Fora do corpo, a maioria se revela desorientada, sem qualquer noção de rumo em seus novos caminhos, não conseguem ascender aos Planos Superiores, não se preparam para a realidade e não se mostram dispostos a admitir os seus equívocos...

—Você imagine Modesta, o espírito desse inquisidor que se apresenta tão endurecido...
Faz tanto tempo!...
Como é que há de ser?...

—Tenho a impressão que desde aquela época, ele não reencarnou - observou a médium, cujos apontamentos neste sentido eram semelhantes aos meus.
Quando ele se aproxima de mim, eu o vejo ainda naquela mesma condição:
a sua aura como que projecta à sua volta as imagens daquele tempo; ele se considera uma autoridade religiosa e são muitos os que caminham sob o seu comando...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 20, 2014 10:19 pm

—Deus não violenta consciência alguma.
A gente deve ter medo de viver tanto tempo assim na ilusão...
Quantas oportunidades desperdiçadas!

Somos todos os filhos de Deus; não sei por que nos opomos uns aos outros com tanta violência...
Será que queremos o Reino do Céu apenas para nós?
Não o queremos compartilhar com mais ninguém?...

Será que é pela primazia do amor de Deus que enlouquecemos?... - filosofei, sem nenhuma vocação para a arte que imortalizara Rousseau, o pensador de minha preferência.

—Inácio, estamos no Espiritismo e nos julgamos mais correctos que os outros não é?
Precisamos também estar com a mente sempre aberta...
O Espiritismo é fé raciocinada, mas tenho visto muitos espíritas fanatizados.

—O fanatismo é um mal terrível, mormente o fanatismo religioso. Tenho a impressão de que é um veneno inoculado directamente na alma...
Na chamada ideia fixa, o espírito promove a auto-obsessão, um dos exemplos mais clássicos que temos, neste sentido, é o de Paulo de Tarso.

Por acreditar-se com a razão, foi responsável pela morte de Estêvão e praticamente desencadeou a perseguição que os cristãos padeceram durante trezentos anos...

—Com este espírito que estamos lidando, creio que precisamos tentar sensibilizá-lo; inútil qualquer confronto teológico com ele, pois que se acredita correcto em suas atitudes de inquisidor que ainda imagina ser...

—Ninguém é essencialmente mau.
Ele pode, no passado, ter mandado muita gente para a fogueira, mas, no fundo, creio que esteja ansiando por uma nova oportunidade...

—Tudo se resume no perdão...
—Você tocou no âmago da questão, Inácio.
Vejamos:
a maioria dos nossos pacientes no Sanatório são almas que desconhecem o perdão - não perdoam e não se perdoam...

—E não são humildes o bastante para pedir perdão - complementei.
—De facto, todos temos esta dificuldade; a gente sempre se considera o ofendido e o prejudicado...

—Esquecemo-nos de assumir a nossa parcela de culpa e, então, surgem os problemas psicológicos que a ciência médica rotula com tantos nomes confusos... - emendei, lembrando a minha indisposição para guardar toda aquela nomenclatura, no Espiritismo, as coisas eram mais simples e a palavra obsessão resumia tudo.

—A falta de perdão pode levar à loucura...
—Correcto. Jesus, o Divino Médico, concentrou a sua doutrina no perdão - foi a sua derradeira lição na cruz!
A prática da caridade é importante, mas a caridade nos coloca em contacto com aqueles aos quais, normalmente, somos indiferentes, o perdão não: o perdão é específico, temos que perdoar aos adversários - perdoar e receber o perdão.

—A sua observação, Inácio, é interessante - disse a médium.
Realmente, a caridade é um sentimento que experimentamos por quem nos inspire compaixão, mas o perdão...

—O perdão é a suprema vitória do homem sobre si mesmo!...
Quem perdoa se liberta do passado.
É o ódio que nos mantém cativos...
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 20, 2014 10:20 pm

Esse espírito que tem se comunicado connosco e que tanto mal tem feito à família daquele rapaz do Capão-da-Onça não admite que tenha se enganado.

Ele tem amor ao Evangelho, mas é um amor louco, um amor que mandou milhares para a fogueira...
Insanidade pura. A imperfeição espiritual é uma doença grave.

—Conversamos, conversamos, mas praticamente não saímos do lugar, não é, Inácio?
—Não saímos da nossa necessidade básica, cara amiga: necessidade de sermos misericordiosos uns para com os outros.
Se não aprendermos a ser indulgentes, não adianta remédio, não adianta Sanatório, não adianta mediunidade.
Tudo será paliativo.

—Por isto, chegamos ao Plano Espiritual e continuamos na mesma...
—Então, você, na condição de médium, sente na alma a angústia e a aflição desses espíritos que, em essência, estão carecendo de exercer o perdão: eles rodeiam, rodeiam, não falam, mas o problema deles todos, e nosso também, é o perdão...
Quando tocamos no assunto, é como se estivéssemos colocando brasa viva em cima de uma ferida.

—Sempre combati a inactividade dos pacientes no Sanatório, a meu ver, o trabalho é dos melhores recursos terapêuticos contra a obsessão - ocupar a mente, cansando o corpo, significa despejar o inquilino indesejável, o espírito obsessor, que, aos poucos, não mais encontrando sintonia, se afasta...

Os doentes refractários à terapia ocupacional sofriam constantes recaídas - recebiam alta, iam para casa, mas, logo, infelizmente, eram trazidos de volta pelos seus familiares, aliás, o apoio da família na recuperação de um doente psiquiátrico deveria ser um capítulo à parte na Medicina...

Com quase quarenta dias no Sanatório, Paulinho estava muito ocioso; passava os dias praticamente sem fazer nada.
Às vezes, jogava uma partida de damas com os demais internos, mas nada, além disto.

Naquele dia, bem cedo, cheguei ao Sanatório com outros planos para Paulinho, resolvido a não lhe dar tréguas.
Eu estava adoptando aquele rapaz, tinha pena de seus pais, dele mesmo e principalmente de Mariana, a jovem que me cativara com a sua simplicidade.

Tirando o meu cliente da cama, esperei que tomasse café e juntos, fomos para o jardim.
—Paulinho - disse-lhe com determinação -, o jardim do hospital está precisando de alguns cuidados, você é do ramo, os seus pais são sitiantes, deve, portanto, saber manejar uma vassoura...

Observando a tiririca em meio à grama descuidada, Paulinho redarguiu:
—Dr. Inácio, sem uma enxada, vai ser difícil...
—Ora, meu filho - falei, abaixando-me e mostrando como deveria ser feito -, não podemos ter enxadas por aqui - por enquanto, não...

Arranque as touceiras de mato com as mãos, a terra está fofa...
Vamos dar um jeito nisto aqui.
O trabalho, Paulinho, é uma bênção.

Demonstrando boa vontade, o rapaz se curvou e começou, com relativa facilidade, a arrancar a tiririca - o joio que crescia ao lado do trigo, joio que ele deveria arrancar de dentro de sua própria alma...

Providenciei uma vassoura nova e um balde de lixo, para que ele recolhesse os tocos de cigarro (a maioria deveriam ser meus) e mandei que alguém fosse ao galinheiro trazer um pouco de estéreo para as roseiras mirradas...

De quando em quando, observava Paulinho através de pequeno vitrô.
O menino, de facto, havia nascido para cuidar de plantação.
Se conseguisse equilibrar-se, seria excelente auxiliar para o Sr. Juliano no sítio, no Capão-da-Onça.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Mar 20, 2014 10:20 pm

Em poucas horas de serviço, o jardim semi abandonado ganhara outro aspecto.

Na hora do almoço, com a camiseta toda suada, Paulinho comentou:
—Estou me sentindo bem melhor, tenho a impressão de que estou voltando aos meus melhores dias...
O senhor poderia Dr. Inácio, arranjar algumas mudas de margaridas.
Nesta época do ano, elas ficam lindas, são as flores preferidas de minha mãe e também de Mariana...

—Vou providenciar, Paulinho - respondi, imaginando onde iria conseguir tempo para ir à Flora Lempp, na Rua Afonso Ratto, mas por aquele menino tudo valia a pena.

O meu paciente comeu dois pratos derramando arroz soltinho, feijão, mandioca cozida quase desmanchando, quiabo, carne de porco e polenta...

Ainda agora, mesmo depois de morto, só de me recordar do cardápio, a boca me enche de água, por aqui na Vida Espiritual, uma de minhas principais queixas tem sido relacionada à alimentação - não tem consistência, a gente coloca na boca e não acha nada para mastigar...

Acredito que, no Além, os cozinheiros estejam todos desempregados!...

Lembro-me de que, assim que cheguei, caíram na bobagem de me perguntar:
—Irmão Inácio, você está com fome?...
—Muita! - respondi, sem cerimónia.
—O que é que você gostaria de comer, do que temos aqui para servir?...

Antes que me entregassem um folheto com interminável lista de caldos reconfortantes, pedi:
—Quero um copo de vinho do Porto, uma lata de atum de primeira, azeite português do bom, pão tostadinho da panificadora lá perto de casa...

Sorrindo, os Amigos Espirituais que cuidavam do meu restabelecimento disseram:
—Temos suco de essência de maçã, mingau de aveia quintessenciado, flocos de germe de trigo, salada de pétalas de flores...

Não me deixando vencer pelo argumento deles, complementei:
—Ah! E depois gostaria que vocês me trouxessem um cigarro...
Definitivamente, as coisas - quase todas elas - de que eu gostava haviam ficado sobre a Terra, o jeito era me conformar...

Recordei-me de certas palavras do Cristo que havia lido nas páginas do "Novo Testamento":
"O meu alimento é fazer a vontade de meu Pai...”.

Deixemos, no entanto, de lado estas considerações de espírito inferior, pois ao lê-las, é possível que alguém comente:
—O Inácio não se desprendeu: até hoje permanece vinculado aos desejos do homem mundano.
Foi espírita durante tanto tempo e não adiantou nada...

Querem saber da minha resposta a eles?
Mostro-lhes a língua, como fez Einstein, debochando dos cientistas presunçosos, daqueles que snobaram com a Teoria da Relatividade.

Eu não sou Einstein, mas, apesar de morto, ainda tenho língua.
Posso não ter outros implementos orgânicos (não pude verificar, detalhadamente, a minha anatomia), mas língua eu tenho.

À tarde, trouxe para Paulinho mudas de margaridas e alguns xaxins de violetas, para decorar as mesas do refeitório.

—Doravante - falei com o meu pupilo -, a responsabilidade do jardim é sua, o jardim, Paulinho, mostrará por fora como é que você está por dentro...
—Então - retrucou, revelando, pela primeira vez, algum senso de humor -, eu ainda vou ter que trabalhar muito...
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