LUZ ESPÍRITA
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REDENÇÃO - Victor Hugo / Zilda Gama

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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 20, 2018 9:39 am

— Eu, Heloísa?
Não desdenhes o meu pesar inconsolável!
Se fores primeiro que eu, não porei fim à existência, por temer a justiça divina; mas, meu coração, até que baixe ao túmulo, não terá outro afecto senão o que te consagro e ao nosso amado filhinho!
Meu luto jamais proscreverá.
— Obrigada, mas olha que te iludes.
O coração tem amplitude para conter muitos afectos puros, sem que os transborde nunca.
É uma gota divina, oculta em nosso seio, que poderá encerrar um oceano de afeições...
Poderás ser fiel à minha memória, amando outras criaturas.
Não te isoles dos nossos companheiros de trajectória terrena; antes, busca a sua convivência, coadjuva os desamparados, enxuga os prantos da miséria, acolhe as criancinhas infortunadas, rotas e famintas, nestes inúteis palácios que o destino nos confiou e que, servindo para acolher nossas almas desoladas, também poderão fazer ditosos outros seres.
Sê compassivo e útil à Humanidade.
Não é acumulando tesouros que enriquecemos, mas disseminando-os pelos pardieiros, transformando-os em pão e em vestes para os desventurados; transformando as moedas metálicas nas rosas odorantes da caridade, como as da Rainha Santa!
Ama as criancinhas como Jesus o fez.
Eu procurei imitá-lo, lembrando-me de René...
As fortunas mais estonteantes ficam circunscritas em cofres fortes, quando neles enfurnadas; valem tanto como calhaus a entupir um poço, não deixando se aproveite a linfa cristalina que nele borborinha; aumentam-se consideravelmente, esparsas nas mãos engelhadas de frio, pelas alfurjas dos desgraçados...
São sementes de ouro que só germinam e produzem flores e frutos opimos de diamantes gratos ao divino Pomicultor — que cultiva searas de estrelas! — quando atiradas no solo fértil dos corações desditosos, adubadas pelos prantos da miséria e da desventura...
Paupérrimo é o miliardário que deixa aos herdeiros arcas abarrotadas de cédulas e moedas valiosas; riquíssimo o pária que reparte o seu bocado, umas migalhas de pão, piedosamente, com os famintos...
Muitas vezes, os arquimilionários da Terra são mendigos do Espaço; e aqueles que, humilhados, não têm senão farrapos para cobrir-lhes o corpo enregelado, mas cuja alma está sem nódoas, conquistam, nas regiões etéreas, uma situação invejável de perene felicidade...
Sé bom e serás venturoso no Além.
Conquistarás, com o Bem disseminado pelos desditosos, os tesouros divinos...
Breve será, agora, a minha permanência na masmorra do sofrimento; verei, primeiro que tu, caro amigo, o nosso carinhoso filhinho.
A ventura, porém, não nos fará egoístas.
Ele te inspirará, como o tem feito a mim, nas horas de agonia.
Coragem e resignação.
Muitas vezes o vi em forma de arcanjo, a sorrir-me feliz, ao lado das criancinhas que eu protegia.
Nós esperamos, com ternura e saudade, que termines a tua trajectória terrena.
Ele virá, pressuroso, amparar-te, como fez à sua mãezinha, quando o peso da cruz me vergava os doridos ombros...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 20, 2018 9:39 am

CAPITULO III
Dusmenil, que ouvia emocionado os conselhos da enferma, tomando-lhe as mãos enfebrecidas, já quase imateriais, disse-lhe:
— Invejo-te a fé e a crença numa vida ideal após as procelas terrenas, e bem quisera permutar contigo minha improdutiva existência; mas Deus não poderá lesar-se trocando um diamante lúcido por um punhado de cinzas, que os vendavais dispersam e transformam em Nada eterno...
Prevejo meu isolamento e amargura inconsolável, se te fores...
— Recorda o que fiz, nestes últimos anos de desolação e bendita redenção:
recalca no íntimo os teus pesares; esquece e abençoa a própria dor, consolando os aflitos, os desiludidos, os náufragos das borrascas da vida...
Não te isoles egoisticamente da Humanidade: procura-a, alivia-lhe as chagas, ausculta os corações angustiados, protege os orfãozinhos, e Deus, que nos espreita através das ogivas estreladas do Firmamento, qual Argos do Infinito, saberá recompensar-te regiamente, subtilizará teu espírito, a fim de que, finda a jornada, coberto das bênçãos radiosas dos infortunados, te possas reunir aos que amas por todo o sempre...
Além, seres ditosos te esperam em bonançosos mundos, nos quais não têm guarida a traição, o ciúme, a calúnia, porque seus habitantes não têm a muralha da carne e dos ossos a lhes embotar os mais nobres sentimentos, que lhes transparecem até através das vestes, qual raio de sol num relicário de cristal.
Pressinto que estão consumadas, para mim, as vicissitudes deste planeta...
Dizem-no os que me amparam nas horas sombrias e magnas da existência!
Venturosa em mundos de repouso e harmonia, não me confinarei na egolatria.
Virei, com René e os amigos intangíveis, a estas regiões inolvidáveis, consolar-te e reanimar-te, bem como aos nossos humildes servos, nossos dedicados companheiros dos dias tétricos ou floridos, aqui na Terra.
Não destituas a desvelada Marta do cargo que lhe confiei, pois jamais esquecerei... que ela não me abandonou nos momentos mais acerbos.
E* uma alma fiel e compassiva, com a qual, certo, a minha amortizou um débito de honra e gratidão...
Alcei-a do abismo do adultério, onde já se precipitava, às serenas regiões da virtude. Confia-lhe, e ao esposo, o Solar de Argemont, para que cumpram, depois de minha partida, as determinações que já lhes transmiti.
A verdadeira felicidade não consiste no alheamento de nossos semelhantes.
Não devemos ser egoístas — insulados do Universo, enclausurados nos claustros, ou nos palácios inúteis, pseudo-criminosos que se tornam, realmente, porque, indiferentes à sociedade, à Pátria, à família, mas esforcemo-nos por ampliar nossas afeições amando os nossos irmãos em Jesus, auxiliando-os a sair do vórtice das paixões ou dos antros do vicio, onde se emboscam os celerados...
Já dispus em meu testamento do que me faculta a lei, para premiar os fâmulos, os operários, os camponeses que me foram mais dedicados.
Mas, não chores, Gastão, a minha próxima libertação:
aprestam-se as galeras siderais por colherem mais um argonauta que flutuou perdido nos mares da iniquidade e anseia retornar à Pátria azul do Senhor das Esferas, onde aportam os que já não têm a consciência cancerada.
Quero-te forte para que triunfes das provas ríspidas, mas remissoras, com as quais findarão, certamente, os teus avatares planetários.
Animo, até que possas zarpar para os oceanos etéreos!
— Não tenho ainda a tua coragem, nobreza e moral angélica, presumo que me faltará um apoio aqui na Terra, quando te fores, que tombarei qual cedro decepado, num sorvedouro de pesares infindos, agravados pela recordação do passado doloroso. ..
— E porque ainda não compreendeste o alvo sublime da vida terrena, caro amigo:
cumprir, sem lamentos nem revoltas, os a restos do Tribunal supremo, para saldar todos os crimes das eras presentes e passadas!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 20, 2018 9:39 am

É porque ainda não chamaste em teu auxílio o exército invencível das patrulhas siderais, dos soldados da Majestade universal, cujos braços intangíveis, mas resistentes de granito, nos amparam nos momentos das provas e não nos deixam rolar no resvaladouro das iniquidades, para depois elevar-nos, transformados em névoas veludosas, aos páramos constelados!
Escuta-me, ainda; um pouco.
Está. quase finda a nossa última palestra nesta existência. . .
Quando me levarem ao cemitério, não consintas que o façam com pompa, mas com discreta modéstia...
Não desejo ser enterrada como rainha e sim como serva humilde de Deus...
Quero os meus despojos encerrados no túmulo mais próximo do jazigo de meus pais.
Meu derradeiro pesar é saber que o meu sepulcro vai ficar distante do de René, mas, o essencial é que nossos espíritos, e não os corpos, fiquem eternamente reunidos...
Em singela e nívea lápide mandarás colocar um anjo marmóreo, modelado pelo retrato do nosso querubim, sustendo um coração trespassado por um gládio — o gládio que me golpeou outrora, quando nos separámos, como o da Mãe do Redentor, da qual compreendi todo o suplicio inominável e toda a resignação sublime, em horas de inaudita angústia!
— Oh! adorada Heloísa, disseste um coração apenas; e o meu, então?
Foi acaso menor que o teu, o meu martírio?
Quantas vezes o senti varado pelo punhal da Dor, em agonia indizível!...
Se houver de cumprir tua vontade; se Deus te chamar aos seus Paços luminosos antes de mim — talvez saudoso de um dos seus mais imaculados anjos — prometo que o teu túmulo, e meu também, há-de ser
junto ao do nosso inolvidável René!
Sobre ele. o idolatrado filhinho esculpido em mármore, segurando dois corações trespassados pelo mesmo golpe, simbolizará a nossa perpétua aliança, a completar-se no Céu, abençoada pelo Altíssimo...
Nossos corpos, encerrados na mesma campa, nossas almas reconciliadas, unidas pelo mesmo, puro e profundo Amor, jamais se apartarão!
Alguns dias depois desse diálogo no Solar de Argemont, imerso em desolação, o estado de Heloísa agravava-se de hora a hora.
A afonia e a dispneia atormentavam-na sem tréguas.
Ao crepúsculo de um dos mais belos dias da Primavera, de céu azul e ambiente morno e perfumado de magnólias em flor, a enferma despediu-se com estoicismo de todos os que lhe eram mais afeiçoados, dirigindo-lhes palavras de conforto e esperança.
Gastão, consternado, não cessava de a contemplar, lacrimoso, vendo-a como que aureolada de um fulgor estelar, como se lhe cingisse a fronte um diadema de diamantes líquidos.
Percebendo que já lhe faltava o alento vital, com os belos olhos já nevoados pelas brumas da Morte, ela o fixou e disse-lhe, tentando sorrir:
— Começo a divisar as fronteiras da Eternidade...
Adeus, Gastão...
Vou esperar-te além...
Indefinível desolação pairou, por muito tempo, sobre o castelo de Argemont, com o passamento da virtuosa senhora.
Gastão não cessava de velar o cadáver querido, que fez embalsamar e encerrar em ataúde de cristal.
Providenciou para que o enterro fosse efectuado em Arras, junto ao jazigo do filhinho inesquecível, o qual seria também seu.
Compacta multidão acompanhou, compungida, o féretro, em grande extensão do trajecto.
Inúmeros cavaleiros e muitas carruagens seguiam-no até finalizar o percurso.
Amigos e servos aguardavam o fúnebre cortejo, percebendo a ideia de Dusmenil: alanceado de remorso, tendo expulsado a dedicada esposa do lar, que ela santificara pelos mais nobres exemplos, quis, como pública demonstração de arrependimento, prestar-lhe todas as homenagens, em sinal de reparação do seu erro imperdoável .
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 20, 2018 9:39 am

Mudo, com os cabelos repentinamente encanecidos, seguia ele o préstito fúnebre, sentindo no íntimo inenarrável agonia — páginas sublimes de dor e compunção, que a alma retraça em prantos e jamais são patenteadas à Humanidade, como tesouros de um Monte-Cristo usurário, soterrados em rocha de granito indestrutível...
Às vezes, estremecia: na sombra da noite julgava divisar, dentro da móvel neblina que se tomava cintilante, uma multidão de entidades formosas, sobreposta
à que se movimentava na longa estrada, como se houvesse duas sendas paralelas, uma nos ares, outra no solo...
Surpreendiam-no, por vezes, acordes de filarmónica invisível, que, às primeiras vibrações, silenciava num eterno staccato...
Teve a impressão de haver vivido séculos, durante os dias que o afastaram de casa, até que a ela voltasse ao crepúsculo de merencória tarde.
O coche fúnebre, apenas ornado de cetim roxo e rendas prateadas — simbolizando a dor e a pureza da adorada extinta — entrou no pátio do solar de Dusmenil, seguido de incontáveis cavalheiros, damas e crianças, que depuseram sobre o féretro uma avalanche de flores.
Uma peça, artisticamente ornamentada de goivos e violetas, elevava-se no centro do mesmo salão donde se dera o rompimento do casal, e sobre ela colocaram o ataúde.
Pareceu a G as tão, ao penetrar naquele recinto familiar, que tudo — tecto, móveis, paredes — ainda repetia as palavras cruéis que ali proferira contra a morta querida.
Quis, então, perante os amigos e conhecidos, reabilitar por todo o sempre a memória de Heloísa.
Olhos nublados de pranto, voz emocionada mas vibrante, depois que o sacerdote terminou o ofício fúnebre, disse que todas as homenagens prestadas à morta querida ele as tributava à virtude e à lealdade da criatura que sacrificara a ventura e a vida pela honra de esposa e mãe; que implorava ao Criador do Universo perdão para a grave injustiça que lhe fizera, e para cujo resgate empenhava o resto dos seus dias aqui na Terra.
Acompanhou à Necrópole o féretro, inumado no mesmo jazigo de René, ouvindo-se os soluços da extremosa Marta, que também acompanhou à derradeira morada terrena aquela que tanto prezava, tal como o fizera na dolorosa romaria do seu exílio doméstico.
Só então, Dusmenil regressou à senhoril morada e deixou-se cair num leito, onde esteve delirante alguns dias.
Quando se ergueu, julgava-se outro ser, diverso do que fora até então:
não era mais o altivo castelão que fitava com sobranceria os humildes, intimidados à sua presença — agora, detinha-se para os interrogar sobre a sua sorte, para os aconselhar e confortar...
Aos poucos, o intenso pesar se foi lenindo, transformando-se em dúlcida saudade.
Contratou com afamado escultor o mausoléu da esposa, que seria também o dele.
Fê-lo o artista do mais puro Carrara.
Sobre rendilhada coluna bizantina, pousava um arcanjo, qual se descesse, no momento de ser plasmado, do Espaço imensurável, ainda em atitude de voo, asas espalmadas, feição merencória modelada pela do meigo René, e conchegando ao peito dois corações golpeados por um sabre de bronze dourado, que parecia ter sido brandido por impiedoso guerreiro.
Dir-se-ia que, vindo das paragens siderais, um formoso querubim ensaiava o surto supremo, conchegando ao seio dois infortunados corações dilacerados pelo punhal da desdita, e ainda palpitantes, para os arrebatar enlaçados, por todo o sempre, &s mansões divinas.
A melancólica fisionomia do pequenino enfermo eslava primorosamente modelada.
Gastão a contemplava diariamente, com os olhos nevoados pelo orvalho da saudade.
Uma roseira que ele próprio plantara, junto ao jazigo da esposa adorada, enastrara graciosamente a coluna, proporcionando sombra e vida à algidez e alvinitência do mármore, pois estremecia à mais branda aragem, como que bafejada por celestial anélito.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 20, 2018 9:40 am

CAPITULO IV
Começou para Dusmenil a existência de abnegação, que lhe fora inspirada por Heloísa e pelo filhinho estremecidos.
Deixou de trajar-se com apuro para o fazer com extrema singeleza.
Peregrinava pelos arredores de Arras, seguido de Fabrício, em modesta sege, observando as pessoas e as moradas.
Quando se lhe deparavam entes de rosto pálido, desfigurados pela vigília, pelas enfermidades e privações, interpelava-os, reanimava-os e, piedoso, às ocultas depunha-lhes nas mãos descarnadas moedas que lhes servissem para atenuar as agruras da existência torva ou desprovida de conforto.
Muitas vezes, viúvas e proletários entregavam-lhe, chorando, os raquíticos filhinhos, que eram recolhidos com carinho na sua principesca residência, e aos quais criava como pai dedicado, proporcionando-lhes profissões úteis à colectividade.
Era, pois, o semeador do Bem e do lenitivo em muitos corações desconsolados e desditosos.
 tarde, quando terminava o frugal repasto, dirigia-se ao mausoléu de Heloísa e René — iluminado à noite por um farol de cristal verde, em forma de calvário — e, fitando o formoso arcanjo que simbolizava o querido extinto, orava contrito.
Proferia, às vezes, lamentos e confidências que os favónios dispersavam, mas eram ouvidos pelos seres intangíveis, a que eram dirigidos.
Outras vezes, detinha-se a contemplar a roseira que orlava a nívea coluna do túmulo da esposa, em plena florescência, parecendo-lhe os rubros e perfumosos botões, desabrochados, minúsculos corações coralinos a contrastarem com os de mármore, sustidos pelo merencório querubim.
Seus pensamentos, naqueles instantes, elevavam-se às mansões fúlgidas, cintilantes no zimbório infinito.
Fazia mudas interrogações que, apenas mentalmente formuladas, julgava respondidas suavemente, segredadas em surdina por dedicados seres imponderáveis.
O desalento e a compunção, que o flagelavam quando se desprendeu o espírito radioso de Heloísa, deixaram de atormentá-lo.
Parecia-lhe que as nobres acções que ia praticando aligeiravam-lhe, dia a dia, o peso eril das suas dores.
Fez-se proprietário de valiosa fábrica de tecidos, só para dar trabalho a inúmeros operários de ambos os sexos, tratados com bondade paternal.
Na estação hibernal, compadecido dos sofrimentos que ao pobre acarretam os frios rigorosos, ordenava que os labores começassem mais tarde do que nos dias de verão, e distribuía agasalho aos operários e suas famílias.
Jornadeava em liteira, muitas vezes fustigado pelas nevascas, visitando os tugúrios desprovidos de lenha ou de pão, para socorrer os míseros que os habitavam.
As vezes, surpreendiam-no borrascas violentas, à noite, em paragens ermas e distantes.
Atónito observava, ao fulgor dos relâmpagos, a Natureza revolta, como que eriçada de baionetas alvas, que flutuassem nos ares, aprestada para uma batalha de espectros velozes, seguidos de ursos e lobos fantásticos, enraivecidos e ululantes, que, em correria desenfreada pelas planícies e cerros, iam arrancando as derradeiras folhas às árvores desgrenhadas, como que apavoradas e desejosas de lhes fugir à sanha, ou iminente perigo.
Mas, em vão, tentavam fazê-lo, porque se conservavam chumbados ao solo, como fieis sentinelas de Pompeia, amortalhadas em brancos sudários, bracejando cidantes ou carpindo soturnamente, avisando os que passavam pelos caminhos alcatifados de neve — para que retrocedessem e buscassem esconderijos seguros que os ocultassem da revanche dos invisíveis adversários, que atiravam pedradas de diamantes às frontes humanas ou aos vegetais...
Fabrício, atemorizado, contraia-se dentro do veiculo.
Uma noite agitada por contínuos e ríspidos vendavais, em que a liteira impossibilitada de prosseguir o itinerário foi recolhida a uma choça abandonada, Fabrício, tiritando, disse a Gastão:
— Senhor, sinto-me como que ameaçado de uma catástrofe sempre que observo uma noite como esta...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 20, 2018 9:40 am

Suponho que regressei à Sibéria e temo que se me depare o espectro sanguinário de Arieu
— Já te lembraste de orar por ele, Fabrício? — inquiriu Dusmenil estremecendo, pois também naquele instante se havia lembrado do mísero hindu.
— Que lhe valem as minhas orações, senhor?
O santo sacerdote, que me criou, costumava dizer que não rogava pelos perversos, porque as preces são aves divinas que procuram o Céu e não podem ir ao Inferno...
E é que ele deve estar, por todo o sempre!
— És muito supersticioso — tornou-lhe Gastão com doçura.
O Inferno está, não nas profundidades do globo terrestre ou de algum outro imaginário, mas em nossa própria alma, quando praticamos o Mal.
O Céu existe em nossos corações, quando somos bons e fieis cumpridores dos nossos deveres morais e sociais.
Na noite em que Ariel se suicidou, Fabrício, eu senti o coração devorado pelas hienas do desespero, calcinado pelas chamas do remorso e por uma dor inominável.
Julguei que as tenazes de Satã mo haviam arrancado e arrojado à fornalha ardente das Geenas!
Agora que, aconselhado pela querida Heloísa, despertei do orgulho e do egoísmo, a cada desditoso que socorro, a cada centavo que deponho em mãos mirradas, a cada criancinha que acolho, a cada lenitivo que proporciono a um infeliz, percebo que se vão aplacando as chamas do meu eu, que se vai amenizando o meu martírio e começo a entrever a paz e a serenidade dos justos ou justificados pelo sofrimento.
O Bem que pratico atenua meus dissabores, que eu supunha eternos!
Grande e indefinível é, pois. o "meu júbilo, quando amparo os desventurados, mormente os enfermos e os órfãos, pois estes são irmãozinhos de René, que o vêm substituir, enviados por Deus!
Aliei-me a S. Vicente de Paulo, Fabrício!
Minha família, que eu julgava extinta, aumenta dia a dia! São os esfarrapadinhos, os filhos da desventura, que Deus me envia para suavizar as saudades do meu ídolo já nos paramos divinos...
Quando os vejo folgando, sadios, contentes, suponho ver o meu René exultante, no Paraíso...
Há cinco anos que Heloísa alou-se ao Céu e só agora compreendo quanto a adorava.
E quanto lhe agradeço o ter-me inspirado o Bem e a protecção que me dispensa, em instantes de amargura e desalento!
Abençoo a fortuna que herdei, pelo consolo que me faculta levar aos lares desditosos, aos corações aflitos...
O ouro não é mau e sim o uso que os homens podem dar-lhe.
Assim, pode transformar-se em flores ou espinhos — em flores, quando o empregamos utilmente, em empresas meritórias; em espinhos, quando despendido em gozos nefastos e iniquidades!
Quem o possui é qual mordomo do Omnipotente — se está apto para gerir os haveres do Augusto amo, empregando-os licitamente, beneficiando os irmãos infortunados, esparsos pelo mundo.
Deve, porém, sempre, lembrar-se de que esses haveres lhe não pertencem e que, no porvir, terão de prestar estritas contas do que lhe foi confiado pelo Soberano do Universo.
Além das moedas sonantes que pode disseminar pelas mansardas escuras, deve também imitar o fúlgido Pegureiro das almas — que ofertava o pão radioso da Esperança e do lenitivo aos famintos de ventura, enregelados pelos invernos do infortúnio — e amparar os pequeninos e humildes, levar-lhes ao coração desalentado o refrigério das consolações perenes, que mitigam as dores e estancam as lágrimas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 20, 2018 9:40 am

CAPITULO V
Uma tarde, depois de exaustivos labores, Dusmenil recolheu-se ao seu quarto e orou longa e fervorosamente.
A tarde caia e os últimos raios solares davam à Natureza tonalidades de rubis lucificados, a desmaiarem lentamente, até transformar o ocaso em vasto cinzeiro — um Pompeia divina — qual se por ela houvesse lavrado incêndio voraz, ateado por legiões napoleónicas, desejosas de galopar livremente pela Moscou do Infinito, ébrias de glória, sedentas de conquistas até as regiões siderais...
Gastão orava, mãos enlaçadas, olhos semi-cerrados, alma genuflexa.
Parecia petrificado, imóvel, tal o seu desprendimento espiritual.
Súbito, percebeu o rufiar de asas etéreas perto da fronte, que ficou impregnada de um éter refrigerante. Estremeceu involuntariamente, como que abalado por magnética corrente.
Descerrou as pálpebras e, por instantes, lobrigou no ambiente penumbroso o vulto vestalino e lucilante de Heloísa, envolta em nívea túnica, que parecia feita de um fragmento do crepúsculo, mal ocultando no peito um coração de rubi incendiado...
Sentiu uns dedos diáfanos roçarem-lhe levemente os ombros e ouviu, extasiado, palavras que eram um cicio de auras galernas.
— Estou exultante, caro amigo: porque estás cumprindo austeramente a sentença divina!
Dispõe, futuramente, do que possuis, de modo a assegurar o pão e o tecto aos que são nossos filhos espirituais, aqui trazidos pela mãozinha do nosso René, débil na aparência, mas na verdade vigorosa, e que ai beijámos tantas vezes, nos momentos de ternura e de efémera felicidade!
Quando connosco transpuseres as barreiras do mundo, compreenderás o mérito que vais alcançando no desempenho de tua missão reparadora.
— Leva-me contigo, hoje, Heloísa! — murmurou Gastão emocionado e febrilento.
— Não, meu amigo, pois ainda não está preenchida a tarefa e, mesmo que eu quisesse fazê-lo, não o poderia.
Falta, agora, à tua actual existência o desfecho que eleva as almas submetidas ao crisol da dor, aos páramos constelados — o sacrifício, a abnegação, a piedade por todos os seres humanos, mesmo os que nos parecem repulsivos.
Já te sentes capaz de acolher e perdoar o desventurado Ariel, se o Senhor to enviar?
— Mas, como, se ignoro o seu paradeiro e o seu destino?
— Verás como os desígnios supremos são admiráveis...
O futuro é que te vai responder. O porvir é o sigilo de Deus.
Ele nos concede, deste infolio infinito — o Futuro — uma página em cada dia.
Contenta-te com o presente, migalha da Eternidade!
Adeus. Espero-te, radiante, porque segues meus alvitres, aliás inspirados por entidades superiores.
— Mais um instante de ventura, Heloísa. Porque não trouxeste o nosso amado René?
— Ele segue, invisível, todos os teus passos, todos os trâmites da tua existência, mas só o verás, à plena luz, na mansão dos redimidos.
Agora é mister que me vá... Adeus!
— Não me abandones nunca e perdoa, querida, o que te fiz padecer!
— Esquece o passado, já remido com lágrimas e tribulações. Animo! Não te abandonarei jamais, nossa aliança doravante será perpétua, indissolúvel!
*
*

Fora sonho ou visão?
Dusmenil, aturdido, não se convencia de que o episódio estivesse nos domínios da realidade.
Só então se lembrou de que, não tendo ainda mandado acender as lâmpadas da sala, esta se iluminara enquanto Heloísa falava.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 20, 2018 9:40 am

Nos dias subsequentes ao da formosa aparição, Dusmenil ordenou todos os seus negócios, fez disposições testamentárias, dotou todos os orfãozinhos que estava criando, destinou o rendimento de suas propriedades a obras pias, assegurou o futuro dos servos mais dedicados, estipulou cotas para aquisição de modestos enxovais para as operárias que contraíssem matrimónio, reservou somas consideráveis para socorrer os enfermos e proletários, nas invernias rigorosas.
Depois de assim proceder como se premeditasse um suicídio, aguardou espartanamente a hora da libertação.
Terminara o Outono.
Começava um Inverno ríspido e inclemente, que levava a penúria a muitos lares.
Gastão, acompanhado de Fabrício e outro dedicado servo, saiu em modesta liteira, em visita aos tugúrios e choupanas, para levar socorros aos desditosos que nelas se abrigavam.
A neve incessante, qual se a Natureza se houvesse transformado em açucenas de cristal, obstruía os caminhos coalhados de alfombras alvinitentes, como se fossem ornamentados de rendas ou filigranas radiosas, para dar passagem a um séquito maravilhoso de alabardeiros trajados de pelúcia branca — o uniforme de gala para núpcias reais...
Os corcéis, fustigados pelo açoite frígido dos vendavais, a custo venciam as distâncias, em marcha lenta.
— Senhor — disse Fabrício tiritando ruidosamente —, devemos compadecer-nos dos semelhantes...
Mas, não é justo sejamos impiedosos para nós mesmos!
Esta viagem pode ser fatal a algum de nós.
Ninguém se aventura por estas estradas hostis, que me fazem recordar com pavor a mortuária Sibéria.
— Bem-aventurados os que se esquecem de si próprios para só se lembrarem dos seus irmãos que padecem fome ou frio, Fabrício!
Se tombar algum de nós — soldados impávidos no cumprimento das ordena do General Supremo, certo será por Ele galardoado com uma insígnia de luz, ou com a ventura inigualável
que desfrutam os libertos do pecado em mansões floridas e ditosas, onde não há neve, mas suavíssimo Sol, confortante, balsâmico!
Nunca leste o Evangelho, Fabrício?
— Sim, meu senhor, pois fui sacristão e o sacerdote que me criou e educou (julgo que era meu próprio pai, pois nunca me disseram quem me dera o nome...) era muito versado nas Sagradas Escrituras.
Obrigou-me a estudá-las, mas eu o fazia sem interesse, maquinalmente, como se fosse m um romance banal, sem atractivos...
Quando ele morreu, deixando-me sem real, fiz-me servo e jamais li os Evangelhos, que, aliás, nunca soube interpretar.!.
— Pois bem, eu te aconselho a fazê-lo agora, pois já tens as faculdades intelectuais sazonadas e mais aptas a apreenderem os ensinamentos do sublime Rabi da Galileia.
Por mim, também só o fiz depois que Heloísa nos deixou.
As crianças só os podem ler como contos maravilhosos de fadas.
Só as almas afeitos às refregas do pensamento, agigantadas pelos séculos transcorridos, pelos conhecimentos acumulados, pelas virtudes conquistadas, sabem interpretá-los...
Jesus, Fabrício, raramente se lembrava de si; esquecia-se da sua individualidade luminosa para interessar-se, unicamente, pelas ovelhas desgarradas do aprisco da Majestade universal e, Pegureiro divino, as levava nos ombros até ao redil da Redenção... Imitemo-lo. Vamos—
O diálogo foi de súbito interrompido por um silvo estridente, que vibrou nos ares sinistramente:
— Que será? — perguntou Fabrício atemorizado.
Receio que Ariel nos siga e nos arme alguma cilada!
— A alma desse infeliz está sob o látego da Suprema Justiça...
Não o temamos jamais! vamos ver o que há.
A liteira parou por ordem de Dusmenil, que, acompanhado dos fâmulos munidos de lanternas, sondou os arredores.
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REDENÇÃO - Victor Hugo / Zilda Gama - Página 5 Empty Re: REDENÇÃO - Victor Hugo / Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Abr 20, 2018 9:41 am

Súbito, dentro da gaze de neve, destacaram negra mancha não distante do veículo.
O fidalgo aproximou-se e, penalizado, confuso, encontrou um recém-nascido envolto em sórdidos farrapos.
Quase inanimado, era hediondo, de lábios fendidos, sem braços, que se diriam decepados de um só golpe pelo alfange do Destino.
Dusmenil piedosamente aconchegou-o ao seio e ministrou-lhe, a custo, algumas gotas de falerno com água açucarada.
Atado ao pescocinho do misero, este bilhete escrito em caracteres desiguais e cheio de incorrecções léxicas:
“Não procureis descobrir quem abandonou este desgraçadinho ao acaso da sorte...
“E’ filho de boémios errantes, sem pátria, sem tecto, sem Deus, sem vintém!
Sua mãe, formosa ledora da buena dicha, lendo a sina de quantos o desejem, não pôde decifrar a deste monstro, pois nasceu sem mãos!
Parece que, tendo sido crucificado como os bandidos cruéis da Galileia, seu corpo caiu ao solo mutilado pela acerada adaga de algum insensível soldado romano...
Onde lhe ficaram os braços?
Em alguma cruz, por certo; mas... do céu ou do inferno?
Eis o mistério que não tentámos desvendar...
“Horrível burla nos pregou o destino!
Este monstrozinho nos causa terror...
Seria um vexame para seus pais a sua presença, pois todos o julgariam o produto de satânico sortilégio...
Se já estivesse criado, podia ser exibido em público, como resultado de algum alcouce e talvez nos auxiliasse a ganhar o pão; agora, porém, é impossível ocultar sua procedência...
“Vendo-o alguém, unido ao seio materno, fugiria apavorado, sua genitora não acharia mais serviço e morreríamos de fome...
“Vós que sois bom e opulento, acolhei-o ou matai-o.
Nossa gratidão será a mesma."
Lágrimas pungentes deslizaram pelo rosto de Dusmenil.
Por momentos, comparou a desigualdade de sentimentos e atitudes dos seres humanos:
há pais extremosos que se amofinam, se torturam e sucumbem de saudades vendo os filhinhos partirem para o Além, para as mansões serenas, para o Lar do Criador; há monstros que lhes dão o ser e logo após os atiram aos rigores das invernias, sem uma expressão de piedade! E suas mãos não tremem ao escrever uma invocação de morte para uma frágil, indefesa e desventurada criancinha.
Ele que se expunha às intempéries e borrascas de neve por amor ao filhinho que já não podia beijar, encontrou, quase inanimado e gélido, arrojado à estiada deserta, forrada de gelo, um pequenino ser enjeitado pelos próprios pais...
Há celerados que, gerando entes misérrimos, não deveriam receber a excelsa denominação de Paia, mas de reprodutores, como os brutos.
Pai é o protector da candura, da inocência, da fragilidade infantil e pode sê-lo espiritualmente, como Jesus, que não ligou sua existência a de outro ser pelo consórcio civil, mas vinculou-se a todos os seres deste orbe de acerbas provações, pelos elos da paternidade psíquica; é o representante do Omnipotente na Terra.
O arrimo das almas que, ainda turbadas com a queda do Espaço, como andorinhas ébrias de luz, buscam o ninho tépido e veludoso do seu amor, dos seus beijos, uma paragem hospitaleira onde possam acolher-se temporariamente sob as asas níveas da ternura dos que as atraíram, como magnetes, das alturas consteladas aos paúis do sofrimento.. .
Negar-lhes o apoio, o carinho, a afeição; recusar-lhes ósculos e afagos e dar-lhes bofetadas e doestos; não deter os inexperientes jovens no resvaladouro dos vícios e das paixões; atirá-los às enxovias ou aos prostíbulos — é ser monstro e não pai. Para esses infortunados, deveria existir no vocabulário humano, tão fértil em sinónimos, uma outra expressão.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 21, 2018 11:47 am

Renegar um filho é suprema ofensa às leis da Criação; é tomar-se inferior a alguns felinos sedentos de sangue, que devoram a prole ao nascer.
Quem assim procede, ofende o Altíssimo e a Humanidade:
ao Altíssimo porque cerra a porta do lar ao peregrino que lhe Ele enviou para proteger, educar, amar; à Humanidade
porque, em vez de ser útil à colectividade, com a sua desídia, com o abandono de criancinhas à mercê da sorte, atira-lhe meretrizes ou bandidos — que são feras bímanas, que só têm olhos de milhafre para sondar as trevas em que se acobertem para arrancar o ouro alheio; só tem mãos para brandir punhais, navalhas ou bacamartes; boca para proferir obscenidades e blasfémias!
Se é crime revoltante o que pratica o homem expulsando um filho do lar, imperdoável se toma quando perpetrado pela mulher.
Ser mãe é ser Nobre — petrificada de dor e colada ao cadáver do filho assassinado.
Dizer-se Mãe é dizer ternura, carinho, sacrifício, perdão, amparo, amor santificado.
Para a verdadeira mãe não há filhos monstruosos, mas desventurados; todos são belos porque vistos através do telescópio encantado do coração, do cristal dos olhos lucificados de lágrimas!
Mãe que repudia o fruto de suas entranhas, faz-se mais ínfima que os irracionais:
deixa que o pelicano a supere em carícia, sacrifício, afecto, quando arranca as próprias penas para aveludar o ninho dos filhotinhos!
Para ser mãe não basta ser fêmea — sim, sobretudo, anjo tutelar dos berços e da candura infantil; fanal das consciências ainda embrionárias, ósculo para enxugar as primeiras lágrimas; mãos para afagar e cerrar os olhos antes de adormecer ou de o levarem ao túmulo; boca para elevar preces ao Criador e hinos para acalentar o gentil romeiro que lhe envia o Céu... ou lhe vem dos báratros das paixões tenebrosas, para que lhe aponte os páramos azuis, e galgue, com ele, a escada da Redenção.
Os entezinhos que o Sempiterno confia à mulher são satélites do espirito materno, que ela deve enfeudar na Terra e no Espaço, qual o faz Ele às estrelas — prantos divinos, cristalizações de luz, filhas rutilantes que espalhou no Empíreo, para acolher os filhos das trevas, redimidos nos calabouços que são os planetas inferiores!
Ser mãe é ser arcanjo, cujas plumas alvinitentes — ocultas no estojo da carne — se expandem sempre junto ao berço dos seus encantos — redutos de todas as felicidades mundanas e divinas, ou à beira dos pequeninos sepulcros — onde soterram todas as venturas, ilusões, esperanças terrenas!
Ser mãe é reflectir a projecção luminosa e protectora do vulto açucenal de Maria de Nazaret — síntese de todas as excelsitudes, amarguras, glórias e martírios do coração materno, acompanhando o celestial Bambino, da gruta de Belém aos cimos do Gólgota, o qual, por isso, das alturas etéreas onde se acha, sorri às mães devotadas, estende-lhes os braços infinitos no amor e na piedade, enxuga-lhes o pranto, muitas vezes, nas dobras resplandecentes do seu manto de névoas douradas, constelado de todas as virtudes!
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 21, 2018 11:47 am

LIVRO V - Na via crucis

CAPITULO I

Dusmenil, na noite em que se lhe deparou o mísero enjeitado sobre a neve, houve de retroceder para o castelo, ali chegando muito tarde, pois o recém-nascido necessitava de alimento e cuidados médicos.
Fabrício, desde que o viu, sentiu-se atemorizado.
O aspecto sinistro daquela malfadada criança era-lhe intolerável!
Achou-a horripilante e repulsiva, parecia-lhe um desenterrado em começo de putrefacção, já sem os braços devorados pelos vermes, ou pelos cães famintos...
O rosto do pequenino mutilado apresentava equimoses e tumefacções, certo produzidas por alguma queda em arestas de gelo.
Os lábios eram fendidos como por uma adaga acerada.
Dir-se-ia grotesco boneco, moldado por escultor embriagado.
Não se podia averiguar se era claro ou trigueiro, pois estava violáceo e contundido.
Quando, alta noite, o entregou tiritante aos desvelos de Marta, esta, apavorada, disse-lhe:
— Parece que o arrancastes de algum sepulcro senhor!
É hediondo e aleijado...
Para que há-de viver?
— Quem o fez assim horrível, Marta?
Quem o enviou ao Vale de Lágrimas com este aspecto, não foi o Criador de todas as maravilhas?
Será Ele falível em qualquer de suas obras?
Porque somente o belo há-de merecer carinho e amor?
Quando amarmos todos os seres, Marta, formosos e hediondos, justos e pecadores, a Humanidade estará próxima do Reino do Senhor!
Olha: se René fosse como este desgraçadinho, tê-lo-ia amado ainda mais, se possível, por vê-lo desventurado!...
Eu o amei tanto, não por ser belo e meigo, mas doentinho e frágil.
Julgo que é ele quem traz ao meu tecto, onde há pão e luz, esses pequeninos desventurados para, protegendo-os, merecer o seu perdão e o seu carinho...
Muitas vezes supondo vê-lo — vulto de névoas e estrelas — conduzindo os desventurados a meus braços; quando penso poder estreitá-lo em meu seio... ele retorna ao firmamento...
*
Correram os anos.
O menino recolhido por Gastão manifestou, com intensidade, os arrebóis de uma inteligência invulgar.
Era trigueiro, de cabelos de ébano veludosos, olhos negros, grandes e expressivos.
Se não fosse m os lábios partidos e os dentes mal alinhados em maxilas defeituosas, seria belo.
Dusmenil, nos primeiros meses, experimentava por ele — embora não o manifestasse — instintiva aversão, mas porfiava em desvanecê-la.
Depois, habituara-se e uma piedade infinita substituirá o primeiro sentimento de enfado.
Às vezes, lembrando-se do pequenino desditoso, em horas de recolhimento, conjecturava:
— Teremos, realmente, como afirmou a querida Heloísa, diversas existências terrenas encadeadas como os elos sucessivos de férrea corrente, sendo nossos desvios e delitos reparados lentamente no transcurso dos séculos?
Não deve ser a solução plausível das semelhanças físicas morais de todos os indivíduos?
Serão os grandes pecadores, ou transviados das Leis divinas, assinalados por defeitos orgânicos, qual se o foram pelo ferrete do destino?
Porque nascem belos e venturosos uns, e, outros, imperfeitos e mutilados, que, párias misérrimos, necessitam do socorro alheio para viver, como este Núbio que encontrei, qual pedra inútil na estrada, exposto à voracidade dos lobos, com se fosse gerado das ervas daninhas ou do lodo das charnecas?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 21, 2018 11:47 am

Não será isso, porém, uma prova a mais da misericórdia d’Aquele que rege os mundos em sólio de estrelas, antes que da crueldade do destino — o executivo dos decretos divinos?
Quem nos dirá que esse infeliz enjeitado não perpetrou, em priscas eras, crimes nefandos e, por isso, foi estigmatizado como os sicários de outrora, a ferro candente?
Quem sabe se os braços decepados, que jazem alhures, seccionados pelo alfange da Justiça Suprema — já teriam infelicitado a Humanidade, ferido inocentes, destruído vidas preciosas?
Quem sabe se os lábios golpeados por invisível punhal não são os do falsário, blasfemo ou caluniador, como os de Ariel?
Suas ideias, sem que as pudesse sofrear, evocavam o passado, e, subitamente apavorando-se, lembrava-se de Hamed:
— Onde andaria ele?
Em que masmorra do Universo estaria cumprindo severa sentença?
Não mereceria pena igual à de Núbio?
Quem brandiu uma arma contra indefesa e virtuosa dama; contra um amigo e contra o próprio coração; quem destruiu um lar venturoso e a vida de dois entes nobilíssimos?
Quem manchou os lábios com o vírus da calúnia?
Quem sabe se Ariel e Núbio — dois corpos diversos e um só espírito sinistro não foi arrojado aos meus braços a fim de, pela compaixão, perdoá-lo e encaminhá-lo à luz redentora?
Não será essa a ressurreição da carne, de que faiam as Sagradas Escrituras?
A presença daquele infortunado trouxe-lhe dissabores.
As outras crianças temiam-no e não o queriam por companheiros de folguedos.
Os fâmulos, pela menor diabrura, ameaçavam espancá-lo na ausência de Dusmenil, que, inteirado, procurava punir os culpados.
Somente o seu benfeitor e Maria o tratavam com bondade e solicitude.
Sempre que o via chorar, Gastão comovia-se e perguntava:
— Que tens, Núbio?
— Bateram-me — confidenciava soluçando.
— Porquê?
— Porque o Cláudio disse que me encontrastes numa furna de lobos, que não tenho pai nem mãe, que sou filho de Satanás! Zanguei-me e dei-lhe pontapés e ele me espancou.
— Meu filho — disse Gastão acarinhando-o —, ouve lá:
é verdade que te encontrei, não num covil de lobos mas à beira de um caminho ermo...
Teus pais, desalmados boémios, abandonaram-te criminosamente, porque és aleijado.
Esta a realidade e precisas conformar-te.
Não te revoltes mais quando a ouvires.
Aqueles que, devendo amar-te, enjeitaram-te em noite hibernal, são delinquentes perante o Criador — o Pai de misericórdia, que não repudia um filho por mais desditoso que seja!
Sê bom e serás bonito e feliz.
Responde ao insulto com o silêncio, ou com a lágrima.
Adquirirás, assim, amigos e não desafectos.
Não podes ser filho de Satã, porque Satã não existe, é apenas o símbolo do Mal; e se existisse... seria nosso irmão, filho da Majestade suprema! Deus, unicamente, é o Pai extremoso de todas as criaturas...
— Não posso crer no que me dizeis, senhor...
— Porque duvidas das minhas palavras, Núbio?
— Porque... se Deus fosse meu Pai, e bom como dizeis, não me teria feito assim aleijado, para alvo do escárnio.
E no mínimo, se o fizesse, dar-me-ia braços vigorosos para punir os que me injuriam e me machucam!
— Justamente na privação dos braços é que se manifesta a sabedoria divina, pois com o teu génio impulsivo, se os possuísses serias vingativo, acabarias talvez num calabouço, ou na guilhotina...
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 21, 2018 11:47 am

Deus quer que sejas humilde e tolerante; que abrandes a fereza do teu génio; que não mais pratiques o mal.
A humildade e a paciência são as derradeiras virtudes que o espírito precisa adquirir, para poder forrar-se às provas terrenas e ascender às mansões luminosas!
Já foste cruel e orgulhoso.
— Como cruel e orgulhoso, se sou espezinhado por todos, menos pelo senhor e Marta, quando apenas conto nove anos de idade?
— Noutras existências, Núbio, cujas deploráveis consequências resgatamos com prantos e martírios...
Não há um corpo para cada alma, porém diversos corpos para uma só alma, assim como um só fio para um colar composto, às vezes, de centenas de contas...
É mister assim seja, para que haja tempo de remirmos todos os nossos crimes e conquistar todas as virtudes!
Ainda por momentos explanou as ideias que, a flux, lhe brotavam na mente iluminada, como os lírios em orvalhado vargedo, dando-lhe a conhecer a causa das desigualdades da sorte, a origem das deformidades físicas e intelectuais, por meio da transmigração dos espíritos, ou das vidas sucessivas.
A criança ouvia atentamente e, dai por diante, salutar mudança lhe foi notada:
não mais agredia os que se referiam à sua desdita; tomou-se refractário aos folguedos e entregou-se aos estudos que lhe ministravam hábeis professores,
revelando inteligência invulgar na sua idade.
Tornou-se humilde e reservado.
Quando o insultavam, sem que desse causa a provocações dos companheiros, deixava apenas lágrimas ardentes lhe humedecerem as faces.
Muitas vezes Marta o surpreendia fitando o horizonte, de olhos nevoados de pranto.
— Que procuras além? — indagava.
— Deus... Queria vê-lo.. .
— Para quê?
— Para pedir-lhe... a morte e que me concedesse outro corpo, perfeito, a fim de poder trabalhar e proteger as criancinhas abandonadas pelos caminhos, como pedras resvaladas das montanhas ao impulso das enxurradas.
Tinha surpreendente percepção e dir-se-ia que o seu olhar luminoso devassava as consciências e os mais secretos sentimentos.
Os professores elogiavam-no.
G as tão mostrava-se satisfeito e o acarinhava, dizendo-lhe, quando já adolescente:
— Vês, Núbio, como te tornaste querido desde que ficaste humilde e dedicado?
Ele baixou a cabeça enternecido e respondeu:
— Tendes sido de uma bondade ilimitada.
Substituístes, com vantagem, os pais desalmados que me negaram carinho e pão.
Bem vêdes que não tenho mãos para trabalhar... nem para pedir esmola!
Quero, agora, estudar o canto.
Não quero ser parasita inútil à sociedade, nem ganhar o pão amargurado dos mendigos.
Que será de mim no futuro, sem vosso apoio e afeição?
Somente vós me estimais, realmente.
Eu leio o pensamento dos que me cercam.
Sei que inspiro aversão aos que me vêem!
— Núbio, muito louvo as tuas nobres aspirações.
É dignificador o desejo de trabalhares para a tua própria manutenção, mas não te atormentes quanto ao porvir, pois não ficarás órfão do meu afecto, nem ao desamparo:
quando me for ao Além, continuarei a velar por ti, embora não me possas ver, e terás um pequeno pecúlio com que vivas modestamente, sem precisar de alheia esmola.
Mas, porque queres cultivar a voz?
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 21, 2018 11:48 am

— Porque sonhei que a possuía bela, com modulações de rouxinol.
— Pois fica tranquilo.
Logo virá o Sr. Mozzi para dar parecer sobre o assunto.
— Antes, porém, senhor, permiti vos beije as mãos generosas.
à tarde, compareceu perante Dusmenil o mais exímio maestro de Arras, sobraçando magnífico violino.
Quando encarou o adolescente pálido de emoção, voltou-se para Dusmenil e disse, sorrindo:
— Não vêdes que aqueles lábios partidos, forçosamente hão-de alterar-lhe a
voz? Como flauta rachada, eles só poderão emitir um som imperfeito, ou sem melodia. ..
Antes que o castelão lhe respondesse, Núbio, ofendido e humilhado, disse:
— Meus lábios são bifidos, sim, mas não a garganta, e esta, e não aqueles, é a flauta de que falais!
— Veremos, meu rapaz.!!
Acompanha a escala que vou tirar neste instrumento.
Afinando o violino, o maestro começou a timbrar uma gama sonora, acompanhada com precisão surpreendente, qual gorjeio de pássaro encantado, pela voz maviosa de Núbio.
O professor Mozzi ficou maravilhado e falou com entusiasmo:
— Há muito cultivo essa sublime arte e somente hoje me foi dado encontrar um violino humano, pois nunca ouvi uma voz mais pura e mais melodiosa que a deste jovem!
Em pouco tempo, Núbio estava senhor dos arcanos de Euterpe, vencendo com galhardia todas as suas dificuldades;
A voz — misto de contralto e barítono — possuía sonoridades dulcíssimas, aveludadas, como se houvesse oculta, naquela garganta, uma harpa maravilhosa.
Num festival católico, pela Páscoa, o Sr. Mozzi reservou-lhe um solo surpreendente de sentimento, de arte e beleza, e que, cantado por Núbio, emocionou até às lágrimas a numerosa assistência, num dos templos de Arras.
Dir-se-ia que aquela voz, ligeiramente trémula em algumas modulações, era um conjunto de citaras, flautas e violinos, um trinado de rouxinóis montenegrinos, um garganteio de sereias sedutoras, vibrado em alto e sereno mar, sob o céu constelado dos Trópicos...
Para que não lhe notassem os lábios deformados, cantou com o rosto velado, das têmporas ao mento, por um loupe de veludo negro.
Desde então, por todos que o ouviram e aplaudiram, foi cognominado o Rouxinol mascarado.
Dusmenil, comovido e lacrimoso, estreitou-o nos braços e, quando recolhido aos aposentos, considerou:
— Deus meu! como reconheço em tudo o vosso poder e clemência!
Como vos lembrais de todos os vossos filhos e a todos concedeis dons incomparáveis, que só podem ser outorgados por vossos decretos infalíveis!
Esse mísero aleijado, filho do anonimato, renegado pelos perversos que o conceberam, está apto para manter-se do próprio esforço e trabalho, com o metal da sua voz plena de magia!
Como se iludiram os que o atiraram a uma estrada deserta, qual seixo inútil!
A Providência divina lhes mandou nele, e com ele, um tesouro, e eles, loucamente, o arrojaram num abismo!
Queriam um vulgar mendicante e Deus lhes havia concedido uma cotovia admirável, cuja garganta valia diamantes!
Os que lêem o destino na palma das mãos alheias. .. esqueceram-se de observar os traços misteriosos das suas próprias, e cegos atiraram à lama um tesouro inestimável.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 21, 2018 11:48 am

CAPITULO II
0 dia primaveril amanheceu belíssimo.
Dir-se-ia que o Firmamento fora retocado por magistral artista, um Murilo divino, com pinceladas de turquesa diluída em ouro liquido...
0 arrebol, contemplado pelos campónios de Arras, tinha algo de fantástico, de apoteose celeste:
parecia haver uma fenda no solar do Soberano do Universo, o evento de sumptuoso festival, e de lá jorrado ondas de púrpura lúcida, quebrando lâmpadas de rubis e topázios, cujos reflexos se projectassem no Levante, incendiando-o silenciosamente, sem consumi-lo...
Em casa de Dusmenil, porém, a tristeza dos semblantes contrastava com o radiante esplendor da Natureza — reinava desolação em vez de júbilo, porque o fidalgo estava enfermo desde a véspera.
Núbio, o dedicado pupilo, alarmado, não o abandonava, mal contendo as lágrimas que lhe brotavam da alma compungida.
Gastão, reclinado em amplas almofadas, confundia o alabastro da face com a cor do linho que a circundava.
Na tarde antecedente, como de hábito, o castelão tinha ido orar junto ao túmulo de Heloísa e René.
Nunca lhe parecera tão expressivo o rosto marmóreo do adorado filhinho.
Pareceu-lhe animado, translúcido, a revelar doçura infinita, iluminado por um revérbero interior.
Orou longamente, fitando-o embevecido.
Súbito, ouviu o rufiar de asas que lhe adejassem junto à fronte, qual se houvesse por ali uma beija-flor invisível.
De repente, ocorreram-lhe estas palavras:
— Teus olhos materiais o contemplam pela última vez...
Sentiu-se um tanto aturdido, mas, murmurou com humildade, como se o fizesse a alguma Entidade presente, em sonho indelével:
— Pai, cumpram-se os vossos sacrossantos desígnios! O servo se encontra à vossa mercê!
Quis, depois, retirar-se, mas não pôde, tinha as pernas amortecidas e uma súbita algidez a invadir-lhe todo o corpo.
Núbio, que o vira sair em direcção à necrópole, fora-lhe no encalço, cantando em surdina, como costumava fazer, para adverti-lo da sua presença.
Entoava uma canção de indefinível suavidade e melancolia.
Dusmenil nunca se emocionara tanto, ouvindo-o e recordando os entes queridos pelos quais orava, com os olhos mareados de lágrimas.
— Onde me esperam eles — considerou.
Novo e estranho rumor despertou-lhe atenção.
Julgou que pássaros já aninhados, e subitamente despertos, adejassem ao redor do túmulo, onde havia rosas; mas não podia distingui-los, como se fosse m intangíveis ou encantados.
Sem poder dominar a algidez que o repletava, rolou por terra qual estátua tombada do pedestal.
Assim o encontrou, Inanimado, o adolescente cantor.
Uma padiola o conduziu ainda desfalecido para o castelo.
Os médicos declararam gravíssimo o seu estado, pois tratava-se de um colapso cardíaco.
Ele mal compreendeu o que se passava consigo, pois apenas teve alguns lampejos de lucidez, quais bruxuleios de lâmpada estalada, prestes a consumir a última gota de óleo.
Tudo estava aprestado para a partida, que de há muito pressagiava.
Ao dealbar de um formoso dia, rodeado de amigos e protegidos, exalou o derradeiro alento em amplo aposento, cujas janelas abertas deixavam entrever, como painel divino, o Levante esmaltado de rosas de ouro e rubi, semelhante a um vencedor dos jogos florais de outrora, na decantada Hélade ou na legendária Roma.
Por algumas horas esteve em completa inconsciência, aniquilado.
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REDENÇÃO - Victor Hugo / Zilda Gama - Página 5 Empty Re: REDENÇÃO - Victor Hugo / Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 21, 2018 11:48 am

Apenas lhe vagava no intimo a sensação de algo muito grave. Deixou de ver os entes queridos que o fitavam consternados; de sentir na destra os ósculos de Núbio — houve como que o descer de espesso reposteiro dentro de si mesmo, que tudo lhe ocultava e entenebrecia a mente.
As pálpebras tornaram-se de bronze, premidas por uma força incoercível.
Pressentiu, porém, que por todos os poros se lhe volatizara a alma, um momento dispersa, mas logo congregada, e começou a cindir um éter refrigerante, como gôndola de nuvens em pleno Espaço.
Supôs estar profundamente adormecido, com o cérebro em eclipse total.
O Universo como que desaparecera.
O pensamento deixou de fluir do cérebro, esgotado bruscamente por uma sucção potente de vampiro mágico.
Esqueceu a própria personalidade e as reminiscências, os secretos pesares e anseios de toda a sua dolorosa odisseia...
Ao cabo de algum tempo — de que não pôde precisar a duração — percebeu que se rompera o velário de trevas interiores e deu-se a eclosão de todas as lembranças da sua acidentada existência; e como se a memória — iluminada por um Sol divino — penetrasse e recuasse através das eras transcorridas, começou a assistir ao desenrolar de cenas que presenciara e lhe pareciam esquecidas, mas que foram focalizadas na objectiva de sua alma milenária, onde se estratificara a personalidade.
Os episódios mais secretos e emocionantes movimentaram-se no palco maravilhoso da própria mente, onde se arquivam e acumulam tesouros inesgotáveis.
Abismara-se nas eras pré-históricas:
viu-se ignorante e selvagem, habitando cavernas, os instintos animais sobrepujando os sentimentos afectivos; viu-se cruel e vingativo, empunhando armas primitivas, chacinando seres humanos em continuas campanhas bélicas; viu-se em frágeis bergantins, sulcando mares e lagos revoltos, lutando com as vagas embravecidas, sucumbindo num naufrágio...
Transportou-se, depois, a um pais que lhe pareceu a Pérsia — de grandes edifícios circulares e quadrangulares encimados, alguns, por gradis onde se debruçavam seus moradores para assistir ao desfile das tropas reais e das multidões.
Era ele, então, alto dignitário de uma nação europeia, representante de poderoso soberano.
Trajava, à feição dos antigos romanos, vestes de custosa seda e tinha ingresso no paço imperial, curvando-se perante um monarca de altura descomunal, trigueiro, de olhos negros e fuzilantes, revelando na fisionomia astúcia e ferocidade.
Ouvindo-lhe a voz, experimentara invulgar vibração.
Aquela voz ressoava-lhe no âmago do espírito, causando-lhe um mal-estar indefinível.
— Mandei chamar-vos — disse o monarca com energia — para saber o que resolveu vossa irmã sobre a minha pretensão.
Que resposta me trouxestes?
— Que reluta em aceitar-vos para esposo...
— Que dizeis? — replicou, erguendo-se com impetuosidade.
Ousa repelir tão honrosa proposta?
Elucidai a questão.
Vossa vida e a dela dependem da resposta.
Ele se acovardou.
A antevisão de uma morte infamante fê-lo ainda estremecer.
— Perdoai, majestade, eu vos direi o que há...
Flávia é noiva de um compatrício nosso...
— Quem é ele? — revidou com violência.
— Um guerreiro romano...
— Dizei-me o nome e onde se encontra.
Se não for encontrado, morrereis em seu lugar.
Estais sob a vigilância dos meus guardas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 21, 2018 11:48 am

Foi pronunciado um nome — o de Marcos Belegrandi.
Gastão foi abalado por um frémito de pavor.
Descortinou um ponto longínquo, um céu de safira translúcida.
Viu aproximar-se um guerreiro louro, esbelto, formoso, tipo de nobreza principesca.
Onde teria visto aquela fisionomia inconfundível?
Não seria a de René, se chegasse a adolescente?
Quis correr para ampará-lo, mas viu-o cambalear, levando a destra ao peito ferido por acerado punhal, brandido por um indivíduo de rosto bronzeado, trajado à otomana.
Dusmenil tentou gritar.
Quis erguer-se mas estava anquilosado num chão de bronze, ou perdido no Espaço, no vácuo incomensurável das regiões interplanetárias...
Ao menor movimento, seria arrojado a um precipício Insondável.
Dir-se-ia que a punhalada que se cravara no belo mancebo fora vibrada no seu próprio coração, perfurando-lhe também a consciência...
Indizível desespero o empolgou totalmente.
Tentou gritar, mas a voz se lhe extinguira na garganta, que pareceu estrangulada por mão de ferro.
Foi arrastado ao palácio real, onde assistiu aos festejos nupciais da irmã com o cruel potentado, que o dominava profundamente.
Viu-os, então, à plena luz.
Fisionomias inolvidáveis — estavam pirogravadas no seu próprio espírito!
Ela, deslumbrante de formosura, nívea de alabastro, de cabelos negros e ondeados, olhar luminoso, trajava escumilha branca, mas sobre a cabeça lhe pairava como que um coração golpeado, gotejando sangue sobre a sua fronte, como a de Jesus ao lhe cingirem a coroa de espinhos: ele, alto e robusto, aparatosamente vestido, tinha olhos de ofídio, coruscantes de alegria.
Horror! Horror!
Acabava de reconhecer nos régios esponsais Heloísa e Ariel!
Seria crivei permitisse Deus semelhante consórcio?
Fez inauditos esforços por separá-los de um só impulso, mas que podia ele fazer?
Estava inerte, chumbado ao solo, empedernido!
Só a alma vivia, movia-se, sofria, soluçava!
Viu seguindo-os, em pranto, o jovem militar com o tórax atravessado por pontiagudo punhal, dizendo à noiva dolorosamente:
— Traidora! Traidora!
Essa voz que atroava nos ares, angustiava-o.
Só ele a ouvia.
Quis ajoelhar-se e pedir-lhe perdão, apertá-lo nos braços com ternura, pois suas lindas feições não lhe eram desconhecidas e recordavam-lhe as do seu René bem-amado...
Súbito, uma pincelada de trevas lhe passou pela mente.
Eclipsaram-se as cenas.
Assistiu, depois, com a projecção de nova luz, à vitória de uma sedição popular contra o despótico monarca que infortunava aquele pais. Fora ele assassinado quando tentava evadir-se, e tombara de bruços nas escadas do palácio imperial, já alagadas de sangue...
Viu-se, depois, audaz flibusteiro.
Errou de terra em terra, semeando terrores, enriquecendo-se dos tesouros alheios que, em noite tétrica de borrasca, desapareceram nas profundezas do Indico, bem como o seu cadáver estraçalhado por peixes vorazes.
Todas as reminiscências pungentes lhe dilaceravam o intimo: tivera longas existências de opróbrio, de cativeiro, de humilhação, de sacrifícios, de remissão.
Enrijara-se-lhe o carácter na forja do dever e da virtude.
Foi, então, transportado ao Solar de Argemont e comoveu-se revendo lugares familiares e queridas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 21, 2018 11:48 am

Gozou, no intimo, um rosicler maravilhoso. Nenhum ponto negro nalma, que não fosse inundado de luz rósea e argentina.
Julgou, porém, fosse adormecer novamente, e, sentindo uma serenidade indizível, ouviu alguém dirigir-lhe a palavra, doce e carinhosamente:
— “Reconheceste, amigo bem-amado, nas tragédias de tuas transcorridas existências, os comparsas do ato que se consumou há pouco em Arras?
Sabes, agora, quem foi a pérfida rainha, o sanguinário déspota e o belo guerreiro.
Compreendes o elo indissolúvel que liga as vossas almas, na engrenagem incoercível do Destino?
Percebes, agora, porque Ariel se enamorou da pobre Heloísa, que passou por aspérrima prova para se remir de um dos seus mais execrandos delitos — o da traição?
Compreendes a repulsa que René sentia por seu verdugo de outrora, e que o foi novamente na última existência terrena?
Jaz no abismo de todas as almas um oceano de recordações.
A eclosão dos sentimentos que dormitam nas crateras psíquicas dá-se quando se reencontram os seres queridos ou odiados.
O bárbaro monarca, decaído de um trono ensanguentado e, depois de expiações cruciantes, humilhado como servo, não olvidou a esposa que idolatrara, mas que sempre por ele sentira instintivo enfado.
Ela jamais o amou. Desposou-o para satisfazer indómita vaidade.
Foi punida pelo remorso, com merecidas desventuras.
O destino, ao fluxo dos séculos, transformou-lhe a posição social, mas não os sentimentos.
Assim os opulentos e tiranos rolam do poderio ao pélago da penúria e das espezinhações redentoras!
Guardam, porém, latentes no espírito, os germes às vezes milenários da soberania e do despotismo, e, se lhes fosse m concedidas novamente a realeza e a opulência, perpetrariam outros crimes e vindictas execráveis...
Não é mister que te avive a tragédia angustiosa da tua última encarnação, da qual começas a despertar:
Tu a tens patente, indelével na retentiva...
Compreendes a paixão violenta de Hamed pela casta Heloísa e como esta apagou, dignamente, a mancha do passado, imolando sua ventura, sua vida e a do filhinho adorado, a fidelidade que te consagrava! Marcos, o formoso militar romano, o ludibriado que perdera a vida e a felicidade por denúncia tua, foi o meigo e frágil René, a quem amas, sacrificado duas vezes pelos mesmos algozes...
Ele, porém, espirito redimido e radioso, escolheu essa breve e dolorosa missão para vincular, por todo o sempre, as almas dos que foram seus progenitores, separados por mútuos ressentimentos.
Ao próprio Ariel, reconhecendo a sublimidade dos desígnios supremos, já perdoou e há-de auxiliá-lo a nortear-se para o Eterno...
Vê-los-ás, dentro em pouco, radiante de felicidade e beleza psíquica, por cumprir, embora com sacrifício inaudito, a sua curta missão terrena.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb Abr 21, 2018 11:49 am

CAPITULO III
— Recordemos ainda o desditoso Ariel... que já deves ter reconhecido no inspirado e mavioso Rouxinol Mascarado, mísero descendente de boémios, abandonado sobre a neve num caminho deserto...
Aquele que esfacelara corações de mães extremosas, em diversos avatares, roubando-lhes os tesouros inestimáveis que o Senhor lhes confiara, aniquilando
vidas preciosíssimas pra saciar vindictas e desejos, impuros, sem um ósculo dos que lhe deram o ser...
Porque veio ao mundo, mutilado nos lábios e sem braços?
Para jamais macular esses lábios com a calúnia, a blasfémia, o perjúrio, o homicídio, o suicídio...
A mão que empunhara armas ultrizes; que assinara sentenças iníquas; que destruíra venturas, foi decepada pelos executores das sentenças emanadas do Egrégio Tribunal divino, para que não reproduzisse os mesmos delitos das nocivas existências transcorridas em lodaçais de crimes nefandos...
O remate desta actual encarnação será pungentíssimo, pois seu Espirito, já propenso ao bem e à virtude, vai ser despojado de muitas nódoas que o denigrem e fá-lo-á remir, quase definitivamente, muitas iniquidades.
Terminará os dias encarcerado, em noite sem alvorada... como os rouxinóis do Montenegro!
Não contemplará os primores da Natureza, que ele deixou de ver, voluntariamente, cortando o fio da própria existência.
Os cegos são os galés divinos, calcetas punidos pelos decretos supremos; os que muito ofenderam o Criador e atormentaram a Humanidade; os que se despenharam das culminâncias sociais, e rolaram dos tronos ensanguentados. ..
Não há inferno em determinada região, mas na alma dos réprobos; ou antes, dos transgressores das Leis sublimes do Amor, do Dever, da Fraternidade e da Moral.
Não é impunemente que as criaturas contraem débitos com o boníssimo Soberano e Pai — Deus — que as cumula de benefícios e desvelos; que lhes dá um organismo portentoso, um mundo em miniatura, em sensações, em percepções, com faculdades admiráveis e maravilhosas; que lhes concede a imortalidade, que os faz herdeiros de todas as maravilhas do Universo e, por isso, é superlativa rebeldia o se insurgirem contra as redentoras expiações que lhes aplica para se corrigirem de crimes condenáveis, para se despojarem de defeitos e torpezas inqualificáveis...
Geralmente, o ambicioso aspira a atingir o ápice das regalias mundanas — ser monarca, dirigir povos, possuir erários, dominar, ter realce nas colectividades; no entanto, é nesse estado social que mais facilmente esquece os encargos humanos e celestes, deixa-se punçoar pela áspide do orgulho, da jactância, da arbitrariedade, do desforço, e tanto mais fragorosa é a queda quanto maior a altura atingida.
É justamente nas posições medíocres e humildes, em luta com a sorte adversa, com a escassez de conforto e de tranquilidade, espezinhado, infamado às vezes, vítima de injustiças e prepotências, que o ser humano retira da alma o lodo pútrido das paixões mal sãs, a retempera como em forja ardente qual o aço, que depois se torna tenaz e inquebrável!
Viste, irmão querido, o desditoso Núbio que acolheste em teu lar e a quem proporcionaste o carinho que todos lhe negam, e nele não reconheceste o impiedoso e bárbaro tirano do Oriente, sob as ordens do qual as hostes aguerridas se entrechocavam como tigres insaciáveis, tombando ao solo miríades de
paladinos, tomando desertos muitos lares profanados, de onde eram arrebatadas as mais belas esposas e donzelas, atiradas aos prostíbulos...
Ele tem tido diversas existências terrenas; tem sofrido dolorosas expiações, imprescindíveis ao cinzelamento do seu espírito, todas culminadas em tragédia.
Não ê a sua deformação física que inspira desagrado aos que o vêem e sim a alma, que, pólo magnético negativo, repele as outras criaturas a quem já infelicitou e que pressentem o monstro de outrora.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 22, 2018 10:47 am

Quando, na Sibéria, terminou dramaticamente aquela tempestuosa existência na qual o conheceste com o nome de Ariel e te salvou a vida, para, depois, arremessar-te a um báratro de tormentos inenarráveis, seu espirito foi proficuamente supliciado por mais de um lustro.
Não pôde ele, nesse lapso de tempo, desprender-se do local sinistro onde pôs termo á vida material; experimentou, imerso em trevas, a decomposição do próprio corpo, ao qual se achava imantado por um elo fluídico, torturando-se qual se não fora um cadáver, com o esfacelar dos membros triturados por vorazes animais aquáticos, sentindo-se sempre penetrado de algidez polar..
Enquanto o corpo não ficou reduzido ao arcabouço ósseo, não lhe foi permitido emergir do Lena, e, por uma força invencível, ficou acorrentado às suas margens, cego, sentindo a gelidez das avalanches a trespassarem-lhe o espírito, como adagas intoxicadas.
Seu sofrimento e desespero, por vezes, eram atrozes e indescritíveis!
Blasfemava, carpia, e, como se houvesse paralisado, o eco das eras pré-históricas respondia-lhe aos brados de revolta...
Gargalhadas, gemidos confusos, uivos de alcateias famulentas, convulsões de vendavais infrenes que o apavoravam e induziam a lutar com seres intangíveis, ou a vibrar punhaladas no próprio coração esfacelado, como se fosse possível aniquilar o que é imortal!
Mas sentia os braços carcomidos, inúteis, desarticulados!
Um dia, porém, rememorando todas as ignomínias, reconsiderou todas as iniquidades e foi assaltado de profunda compunção.
— Tudo o que padeço, um inferno de suplícios morais não passa da repercussão do que hei infligido aos meus desgraçados vassalos de outrora! — murmurou apavorado.
É o ricochete das desventuras que semeei na Terra o que ora me atinge a alma!
É a vibração das perversidades que fiz meus irmãos padecerem, o que agora me flagela.
Com a impetuosidade de um ciclone africano, repassou na memória, a pinceladas de fogo, todo o passado hediondo, e, quando as silhuetas angélicas de René e Heloísa nela se projectaram, estranha emoção lhe abalou todo o ser, como se lhe desencadeasse no íntimo um sintoma violento, e ondas de pranto — fragmentos d’alma — fluíram-lhe do âmago qual regato ininterrupto, por muitas horas.
— René, perdoa-me!,— bradou genuflexo.
Compadece-te do desgraçado Ariel, que muito tem padecido!
Reconheço, agora, a Justiça divina que me martiriza proficuamente, para que me compenetre do sofrimento das minhas vítimas de outrora... qual o foste por duas vezes!
És, porém, do Céu, René!
Sê compassivo e clemente para com o teu verdugo — aniquilado, vencido, esmagado pela clava do destino!
Aqui já não está o autocrata que fazia tremer milhares de corações feridos por sua crueldade — mas, um farrapo humano, um fragmento de trevas, um Nada imortal que chora, sofre, soluça, flagelarão pela vida eterna!
Tenho pavor do que hei sido, do mal derramado pelo mundo, que cobri de cadáveres e lágrimas, lembrando-me de todos os meus crimes e torpezas!
Parabram é justo e íntegro: um algoz do meu quilate deve sofrer os suplícios com que atormentou seus súbditos e indefesos prisioneiros, quando se considerava soberano invencível!.
Tu, porém, René, que és do Empíreo, vem em meu socorro, quero implorar, a ti e a tua mãe adorada, piedade e perdão!
Compadecei-vos, ela e tu, do monstro ignorado, perdido nas geleiras da Sibéria..! num desvão das Geenas!
Súbito e suavíssimo clarão penetrou-lhe os abismos da alma.
Desde que se suicidara, via-se sempre ofuscado por um eclipse espiritual, em cerrada penumbra; dos sentidos, apenas lhe ficaram os da sensação apurada e da audição, que se quintessenciaram para perceber os menores ruídos, o rumorejo do Lena, um rufiar de asas, um adejo de insecto, o próprio silêncio...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 22, 2018 10:48 am

Tinha, porém, ânsia de escutar uma voz humana, de sentir um aperto de mão, mas, se tentasse afastar-se daquele sitio, seria arrojado ao solo, manietado, vergastado por látegos de gelo, e devorado novamente por moreias famulentas...
Naquele instante em que vislumbrou róseo clarão, sentiu pela primeira vez amena serenidade invadir-lhe o espirito, afigurando-se-lhe que uma alvorada de nácar se projectara naquele recanto sombrio, como se do Firmamento houvessem cortado um fragmento e essa fita de crepúsculo tropical, estirada do Céu à Terra, parecia-lhe maravilhosa estrada por onde desceria formosa estrela cor de eloendros...
Prosternou-se, impelido por uma força imperiosa.
Pôde descerrar as pálpebras, que lhe pareciam eternamente vendadas por atilhos de trevas, e, então, distinguiu à sua frente duas entidades de beleza peregrina, de túnicas de prata eterizada, com o alvor e a pureza de açucenas radiosas.
Suas pulcras fisionomias revelavam tanta excelsa nobreza, tanta majestosa austeridade, que ele, aturdido, levou as mãos aos olhos, sentindo-se indigno de as fixar, temendo enodoá-las com a vista torva de precito execrado...
— Ariel — disse uma delas, aparentando um jovem gentilíssimo, abraçado à fúlgida companheira — chamaste-me. .. aqui me tens!
Não me temas, porém. Sou um humilde servo do Soberano do Universo.
Conheço o teu passado e todos os teus delitos.
Já te perdoei o que me fizeste padecer...
Com isso abreviaste minha partida para as regiões ditosas do Além,
acelerou-se o meu progresso espiritual.
Bendigo, pois, as dores acerbas que me causaste.
Eu mesmo escolhi a breve e penosa existência em que me conheceste débil e enfermo...
Ao aproximar-me de ti, porém, minhalma sofreu intensamente, pressentindo o seu cruel carrasco de outrora.
Tu me inspiravas aversão e asco!...
Mas, quanto maior sacrifício se faz no cumprimento de um dever, ou de uma missão terrena, maior é o mérito adquirido.
Triunfei nessa dolorosa prova, embora imolasse a própria vida planetária!
Já não te odeio Hamed.
Vejo-te, agora, arrependido dos teus inomináveis delitos.
Eu e aquela a quem tanto já supliciaste moralmente vimos estender-te mão fraterna, ajudar-te a elevares tua alma para o Ser Supremo, ao qual tantas vezes tens ofendido com as tuas iniquidades...
— Que ouço, ó Parabram? — exclamou arquejante, erguendo-se e recuando com as mãos velando a fronte.
É bem verdade o que escuto? estais presente senhora.
Volveste, enfim, o vosso olhar angélico para a víbora asquerosa que tantas vezes vos pungiu o coração, em vez de a esmagardes com os pés?
Já não me execrais, senhora?
— Não, desventurado Ariel — disse-lhe Heloísa comovida.
Podes fitar-me sem receio.
Hoje compreendo a trama do Destino, que urdiu todas as amarguras que me crucificaram... mas foram transmudadas em júbilos eternos!
Deus permitiu que, após tantas amarguras repassadas, meu querido Gastão velasse por mim no leito de agonia.
Morri serenamente, reabilitada, feliz, rodeada pelos que amparei e que me pareceram flores orvalhadas engrinaldando-me o leito mortuário...
Todos os tormentos do passado se esvaeceram, quais brumas de alvorada tropical.
Esperavam-me, no plano espiritual, entes idolatrados, companheiros dos prélios de dor, nas batalhas remissoras de diversos avatares...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 22, 2018 10:48 am

Há muito sabes que a criatura não desce à arena planetária uma só vez, mas incontável número de vezes — tantas quantas sejam necessárias ao aprimoramento psíquico.
Injusta seria a criação do Averno — um antro de perversidades para torturar inútil e incessantemente os réprobos, isto é, os transgressores das Leis divinas e sociais, os supliciados pelas chamas ardentes que se tornam incombustíveis, sem jamais alcançarem remissão!
Iludem-se os que assim pensam.
Aqui pecamos, aqui resgatamos os nossos delitos.
Aqueles que infelicitamos estão sempre conjugados às nossas existências, para que os façamos ditosos, possamos suavizar-lhes as torturas morais e físicas; outras vezes, para os arrancarmos ao sorvedouro do crime e das paixões nefandas, que, outrora, lhes suscitámos.
Eis porque, com a alma iluminada pelas sublimes verdades siderais, vimos estender-te as nossas mãos fraternas.
Nossos algozes de outrora tomam-se, às vezes, nossos protegidos, nossos amigos no porvir.
Lembra-te, Ariel, do teu passado milenário:
vê como tuas mãos ainda se acham enluvadas de sombras negras... ou tintas do sangue humano — vestígio patente das iniquidades que praticaste no apogeu da falsa glória real, no cimo de um trono conspurcado...
Foste, como sabes, cruel soberano.
Pudeste saciar todas as tuas fantasias.
Tuas ordens eram executadas com a rapidez do relâmpago, para que as cabeças tombassem no solo ensanguentado!
Arrojaste aos lupanares donzelas e esposas fieis; traíste, assassinaste, infortunaste inúmeras criaturas...
Foste carrasco impiedoso, em diversas encarnações.
Eis porque, Hamed, tua presença inspirava repulsa às tuas vitimas do passado!
Viveste só, sem afeições, temido, execrado, até à tua última existência. Porquê?
As almas, como as falenas de ouro e rosa, pressentem a podridão dos Espíritos reencarnados, dos quais fogem apavoradas e só buscam o néctar e o aroma dos vergéis floridos!
Um dia, porém, o Supremo Juiz fita os carrascos da Humanidade e murmura: “Basta!"
E não consente prossigam mais na trajectória tenebrosa.
São, desde então, escoltados pelos gendarmes celestes.
Eis porque, doravante, vais ser inutilizado para o crime.
Seguem-te patrulhas divinas.
Estás sob o Direito supremo.
Não prosseguirás na rota fatal, já foste humilhado e sê-lo-ás ainda mais.
A humildade é a lixívia dos seres orgulhosos e prepotentes .
Baqueaste do sólio nos tremedais do mundo, ao qual te achas acorrentado pelos grilhões da Justiça de excelsa Majestade.
Deixaste as culminâncias sociais para rastejar pelas alfurjas e tugúrios misérrimos.
Nunca inspiraste uma afeição sincera — teu aspecto ... não, a putrefacção de tua alma causava invencível aversão!
Nessa última existência, podias ter progredido com as faculdades psíquicas que já possuis, se pusesses em prática o ensino dos iógucs, se tivesses domínio sobre os próprios sentimentos; mas não o fizeste e foste novamente arrastado ao vórtice do crime e da vindicta...
No obscuro iniciado dos templos hindus dormitava a alma revel do tirano de Persépolis!
A todos os teus delitos sobrepuja, por sua hediondez, o que perpetraste contra um amigo leal, sua esposa e filho...
Recordá-lo, em tua situação dolorosa, seria crueldade ...
Apenas te direi que ainda sofro, ao relembrar os trágicos episódios de nossas existências, pirogravados no meu espírito indelevelmente, secularmente, eternamente!
Quantas vezes teus desvelados Mentores bradavam para que ouvisses suas salutares advertências?
Mas, na voragem das paixões mal sãs, ficavas surdo, obcecadamente surdo...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 22, 2018 10:48 am

CAPITULO IV
— Não mais te maldigo, pois, infeliz Ariel, porque triunfou a Justiça do Alto — fui reabilitada perante Gastão, e tu mesmo, em te acusando a consciência, qual Lázaro de luz ressuscitaste do teu túmulo.
Abençoei, então, todas as agonias que passei, as noites de vigília que vi transcorrer soluçando, apunhalada de saudades do meu idolatrado René, sentindo-me aviltada no conceito do austero Dusmenil, nosso comparsa de abominações do passado!
Cheguei à conclusão de que não temos adversários, de que somos nós próprios que nos infelicitamos, quo criamos uma situação de dores e tormentos, quando nos deixamos dominar por sentimentos malsãos...
O Mal engendra a Dor; o Bem, a Ventura.
Nossas encarnações, como regatos que se juntam e se apartam, acabam confundidas para sempre no estuário do Infinito — nossas vidas terrenas se amalgamaram muitas vezes...
Os padecimentos da última encarnação é que acabaram de expurgar minhalma, imunizando-a dos miasmas do Mal.
Purificaram-na, redimiram-na e, doravante, só voltarei à Terra cm missão de caridade.
Eis porque teus rugidos de angústia ressoaram clangorosamente em meu intimo e desejei ser útil a quem também já ensejei fundos pesares, mormente a quem, quando a vaidade me avassalava, me ofertou um trono e muitos tesouros que, nas paragens siderais, não passam de lama dourada!
É mister que nos perdoemos reciprocamente, Ariel.
Aliam-se assim, cristãmente, os adversários de várias existências, os coniventes de muitas torpezas para, olhos fito no Além, onde abrolham os pomos de luz do Cultor de todos os portentos da Criação, seguirem impávidos o rude mas bendito roteiro da Redenção.
Vimos para dizer-te que, dentro em pouco, vais encetar nova peregrinação terrena.
Mas, quão dolorosa vai ser, infortunado Hamed!
Vais ser privado das caricias maternas... qual o fizeste ao querido René!
Serás marcado pela Justiça suprema e impossibilitado de transgredir os decretos divinos, com um aspecto inolvidável...
Estremeço de comiseração, por teus sofrimentos vindouros!
Mas, não esmoreças.
Nunca te faltará o auxílio dos dedicados Invisíveis, que te sustentarão à beira do sorvedouro do desalento e do cepticismo..!
Por momentos, calou-se Heloísa e Ariel conservou-se silencioso.
Bruscamente, porém, estendendo os braços na direcção daquela que lhe falara nimbada em fulgores de arrebol, murmurou:
— Se me falásseis eternamente, eternamente vos escutaria.
Vossas palavras, mesmo as de reproche, valem como legado do céu!
— Esquece essa paixão nefasta, que te há impelido a crimes e torpezas condenáveis! — exclamou Heloísa com energia.
— Esquecê-la? Nunca, senhora!
Só ela me alçará ao Paraíso.
Ela tem sido, há séculos, o meu tormento, o meu martírio, mas fará com que meu espírito se redima de todos os seus crimes.
Desde que me aparecestes... esqueci todos os tormentos, julgando-me acorrentado de milénios, nesta masmorra de trevas!
— Há apenas um lustro que aqui estás prisioneiro...
— Um lustro só! Iludi-vos! Impossível! Meus olhos já se diluíram de tantas lágrimas vertidas durante séculos e séculos, nesta região de suplícios inimaginados por Alighiéri!
Certo, este rio caudaloso, cujo murmúrio ouço incessante dentro da própria alma, formou-se do pranto que por ele tem rolado de toda uma eternidade.
— Tu te revoltaste contra o destino, contra a sentença lavrada pelo Supremo Juiz.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 22, 2018 10:48 am

O suicídio é a maior ofensa da criatura ao Criador!
É a rebelião dos galés que, antes de cumprirem a pena, que os libertaria de muitas dores, agravam suas faltas, fazem jus a novas e duras punições...
Quem sabe se esse rio que rumoreja em tua alma e julgas formado das tuas próprias lágrimas, não o foi com as de tuas vítimas, Ariel?
Quem sabe se esse ruido incessante que atroa em teu intimo não provém dos soluços e gemidos dos teus antigos súbditos, supliciados por teus cegos asseclas, e que se acham impregnados no teu espírito — quando insensível ao sofrimento alheio?
— Ai! que penosa se me tornou a recordação do passado!
Que cruel e infame tenho sido, senhora! Horrorizo-me de mim mesmo.
Se os fantasmas pudessem ser apunhalados... aniquilando a sua aflitiva imortalidade, eu já teria vibrado novo golpe no peito, livrando assim o próprio deserto, do monstro que tenho sido!
Porque não fui sempre um pária, um cão faminto, impossibilitado de saciar os instintos de fera?
— Hoje é que assim pensas — bem diversamente do que pensavas outrora, quando ansiavas pelos sólios e glórias funestas dos monarcas crudelíssimos!
Mas, como não é possível inverter o curso de um rio caudaloso, não te preocupes mais com o limitado tempo que passou e sim com a eternidade que te aguarda!
— Como terei serenidade para enfrentar o futuro — abandonado, banido, azorragado de remorsos, nesta região de torturas infindas, e sabendo que, dentro de poucos momentos, ides voar às mansões luminosas e talvez — tão indigno sou! — o Criador não mais consinta vos aproximeis de mim?
Ai! senhora, antes do partirdes, talvez para sempre, permiti vos exponha meus pensamentos...
De todos os martírios sofridos, o que agora mais me atormenta é não poder contemplar-vos, para gravar nalma vossas feições angelizadas, por todo o sempre, como guardo as da Terra, que já pareciam do céu! — no relicário da minha adoração!
Antes que partais, talvez por toda a consumação dos séculos, consenti vos patenteie todos os suplícios de que sois a causa involuntária!
— Infeliz, cala-te!
Essa adoração só a deves consagrar ao Autor do Universo e não a uma de suas criaturas!
Essa ânsia de carinho nunca mitigada, em que tens vivido, é talvez a tua redenção.
Não te entregues mais a essa paixão funesta e implora ao Incriado a sua clemência e os meios de remir teus crimes, para que possas encetar abençoadas mortificações terrenas...
— Não consigo pôr em prática o que me aconselhais, por mais que me esforce...
Essa afeição que vos tributo é maior que o Infinito de que se forma o Universo:
no dia em que me extirparem da alma, suponho perderei a imortalidade, meu ser se aniquilará; deixarei de ter vida eterna, ficarei metamorfoseado em mineral inerte.
Essa paixão é que me faz vibrar o espirito, é o meu suplicio e o meu gozo incessantes!
Não ouso implorar o perdão que me lembrais, porque o pressinto.
Há no meu intimo um vácuo tão vasto como o Pacífico...
Que digo? — Como o próprio Espaço imensurável, estabelecendo um abismo entre os meus e os pensamentos de Parabram, quando tento dirigir-lhos e se perdem no éter, absorvidos num sorvedouro que nos distancia perpetuamente.
Por isto é que meus bramidos e soluços se perdem no vácuo, e ninguém os ouve!
— Enganas-te, Hamed...
Ele os ouviu. Eu e René, ouvindo-os, nos apressamos em vir socorrer-te.
Bem vês quanto o Pai celestial é compassivo e bom.
O que sentes é o vácuo produzido pelo mal cometido; é a ausência do bem que já podias ter realizado, se o quisesses.
A prática das nobres acções é o que nos aproxima do Criador, o viaduto dourado, o cabo luminoso que liga o ser humano ao Omnipotente !...
A prática do mal é o que d’Ele nos afasta, criando um caos intransponível ao próprio pensamento...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 22, 2018 10:48 am

Humilha-te, arrepende-te e te sentirás em comunhão com o Eterno, nela se espargirá o refrigério da comiseração divina!
— Orai por mim, senhora, para que eu possa adorá-lo mais do que a quem me fala neste momento.
Sois um anjo benfazejo ao serviço de Parabram!
Se compreendêsseis o quanto tenho padecido por vossa causa, já vos teríeis compadecido de mim...
Bem sei que também vos tenho causado pesares acerbos.
Vossa dor foi intensa, enorme, reconheço-o, quando vistes maculado o arminho da vossa virtude, quando vos arranquei dos braços o adorado filhinho; mas, senhora, a dor inconsolável é a que todos ignoram, é a que se origina do remorso, após a prática de um ato vil, de vingança ou de ódio; é a de haver conspurcado a alma; é, enfim, a tortura do próprio Mal, comparável a um carcinoma que irrompe no coração, a corroer todas as alegrias ou prazeres que poderia ter desfrutado, conquistando uma afeição leal, organizando um lar humilde, mas ditoso...
Os padecimentos que se suportam, enviados do Alto, são acerbos, mas, na consciência impoluta e serena há sempre conforto para todos os martírios, há um como luar balsâmico de almas imaculadas, que suaviza todos os tormentos da vida... Quando, porém, o sofrimento abrolha nas consciências poluídas, maculadas pelas concepções torpes, as recordações penosas não lhes dão tréguas, parece feri-las como cardos envenenados pelos Bórgias ultrizes; há momentos que dir-se-ia serem devastadas por infernal incêndio, que as calcina por muitos séculos...
Esse padecer estava estagnado, entorpecido na minha última encarnação, até o instante em que vos conheci!
Desde então, fascinado por vossa formosura incomparável, atraído pela imã de vossa alma luminosa, que já me havia pertencido como serva e soberana, começou o inenarrável suplicio ao reconhecer a vossa superioridade social e moral, sem esperança de ser correspondido um segundo sequer e devorado por uma paixão vibrante e insaciada, pungido de ciúmes do vosso esposo, até então considerado o melhor e único amigo.
Padeci muito, em silêncio, recalcando os próprios sentimentos, desprezado, humilhado, misérrimo; mas, desde que destrui vosso lar, que urdi uma vil calúnia, principiou o inaudito tormento:
julgava a própria alma jungida a incandescente pelourinho, açoitada por verdugos invisíveis, mas... inquisitoriais...
Parecia-me viver, desde então, com a mente enegrecida, carbonizada pelos pensamentos de fogo que nela irrompiam, e, quando me atirei ao Lena, um eclipse total e permanente a obscureceu completamente:
a Natureza e a amplidão sideral deixavam de existir para mim!
Vivo, há muito, apenas subjectivamente...
Sou um Nada que sofre e pensa, um átomo humano martirizado por um infinito de dor!
Bem sabeis que apunhalei o próprio coração, que, de tempos imemoriais, vinha apunhalando pelo sofrer mais acerbo, pelo ciúme e pelo remorso; justicei-me, pois, dando termo às minhas iniquidades...
— Meu suicídio — quem sabe? — deve ser mais uma dirimente para meus crimes, pois já feri miríades de corações, mormente o vosso e o de René, em diversos avatares!
Só então pude aquilatar a dor alheia.
Tive a sensação, ao tombar ensanguentado do alpendre — o que relembro com pavor —, de ser sacudido por mãos de titã e arrojado a uma voragem de trevas, de águas pútridas e geladas, cuja profundidade fora também ilimitada, e descendo, descendo vertiginosamente, sentindo o coração fora do peito rasgado, torturado, esfacelado por mandíbulas de monstros famulentos, de muitos séculos...
Percebi a decomposição dos tecidos, acerbamente vinculado o espirito a um arcabouço sensível, cujos ossos iam aos poucos estalando nas maxilas dos peixes voraginosos a disputarem-se as menores migalhas...
Sentia as águas do Lena, ora em chamas que me crestavam a alma, ora transformadas em avalanches de gelo que me esmagavam, carbonizavam os derradeiros ossos, asfixiavam-me, paralisavam-me, tomando-me um fóssil imortal, de sensibilidade quintessenciada...
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