LUZ ESPÍRITA
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Série Conde J. W. Rochester - A Sacerdotisa do Nilo / Maria Gertrudes

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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 26, 2023 7:22 pm

A Sacerdotisa do Nilo
Maria Gertrudes Coelho

J. W. Rochester(Espírito)

PARTE I
Lembranças de Smegrituh

Capítulo 1 – THUTMÉS III
“Há uma íntima correlação entre os nossos actos e o nosso destino.
Sofremos em nós mesmos, em nosso ser interior e nos acontecimentos de nossa vida, a repercussão do nosso proceder.”

Mamãe dizia que eu era filha de Faraó, embora nunca o tivesse visto.
– Smegrituh, menina, acorda!
– Sim, mãe – respondi, erguendo-me do leito e esfregando os olhos, sonolenta.
Era o grande dia, o mais comentado e esperado de toda a minha vida.
O Faraó nos aguardava em seu palácio para me abençoar.
– Não podemos nos atrasar para a entrevista. Lembra-te, filha, de minhas orientações – recomendou-me mamãe, enquanto colocava os pães sobre a tigela na mesa.
O acontecimento era tão significativo, que o guardamos em profundo silêncio.
O meu destino estava escrito nos astros que assinalaram a minha reencarnação, segundo as predições de minha avó.
A velha Sarah, tia de minha mãe, dizia que, no exacto momento de meu nascimento, seis astros se cruzaram no céu, prenunciando o meu futuro, portanto, nossa ida ao palácio estava ligada àquele fenómeno.
Eu veria o Faraó.
As previsões para aquele dia eram positivas, conforme a consulta nas tábuas, e tia Sarah era infalível, assim diziam seus consulentes.
Contava oito anos. Franzina e pálida na aparência, porém, obstinada como uma mula selvagem. Meu vestido recto em tons alaranjados, enfeitado na barra com larga franja dourada, fora confeccionado exactamente para aquela ocasião. Minha mãe penteou meus longos cabelos, fez várias trancinhas e, sobre minha testa, colocou uma tiara de conchas e metais, combinando com as cores de meu vestido. Senti-me importante com o ritual dos preparativos.
Tia Sarah misturara ervas no fogareiro; o cheiro e a fumaça envolviam nossa modesta vivenda. Fomos aspergidas com seu turíbulo sujo de cinzas, e suas orações diminuíam nossa tensão.
– Smegrituh, meu sol, como estás linda! – exclamou mamãe, sem conter as lágrimas e agarrando-me fortemente, como se eu fosse evaporar.
– Por que choras, mãe? – perguntei-lhe ansiosa, mesmo sem entender, mas desconfiei de que algo muito sério modificaria nossa vida daquele dia em diante.
Ela nada me disse, no entanto, senti sua dor, parecia que um punhal invisível lhe transpassava o peito, porque arfava e empalidecera como uma lua. Mamãe era de estatura baixa e magra, seus olhos grandes e escuros me fitaram com amor.
– Ó, minha criança, vamos, pois estamos atrasadas! – exclamou, cerrando a porta de nossa pequenina mastaba. Despedimo-nos de tia Sarah que, igualmente, acenou-me com um sorriso nos lábios, beijando o meu nariz.
Era um passeio especial, finalmente, algo muito importante iria me acontecer. Oxalá fosse bom.
* * *O grande Palácio não era muito longe. Avançamos algumas ruas e, quanto mais nos aproximávamos dele, mais mamãe apertava a minha mão. Sentia-a emocionada e trémula, às vezes, hesitante, mas alguma coisa mais forte a impulsionava, o que a fez voltar-se para mim e encarar-me decidida; seus lindos olhos estavam vermelhos, expressando tristeza, nitidamente, muito mais que qualquer palavra ou gesto. Apertou-me em seus braços, sua voz estava grave, mas determinada:
– Smegrituh, lembra-te dos meus conselhos e procura ser correta sempre – recomendou-me, preocupada.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 26, 2023 7:24 pm

– Sim, mamãe, – concordei sem, no entanto, entender o desfecho daquele passeio singular. Incapaz de expressar-me mais, também a abracei emocionada, com duas lágrimas que teimavam em rolar pela face.
Permanecemos enlaçadas, perdidas na emoção do adeus.
Depois disso, ela se acalmou e diminuiu a marcha ao avistarmos o Palácio real.
No primeiro pórtico, um escravo bem vestido veio nos receber ao pé da escadaria de mármore. Fez um sinal, e o seguimos, entusiasmadas com aquela realeza. O portal, todo esculpido em pedras coloridas, desviou minha atenção.
Comparei o luxo daquele enorme palácio cheio de colunas e desenhos com a nossa humilde casa. Faraó era o homem mais importante do mundo todo. Silenciosamente, caminhamos de mãos dadas, mas o barulho de nossas sandálias sobre o piso de granito, que parecia um espelho, divertia-me. Estava encantada com tanta beleza naquele labirinto iluminado por tochas.
Tyi-Tah, minha mãe, preparara-me para aquele momento que seria único, talvez o mais forte pela importância que ela lhe dera.
Havia meses que não se falava em outra coisa, tudo convergia para aquele encontro.
Talvez, toda aquela ansiedade fosse fruto das reuniões que mamãe e tia Sarah fizeram com a pitonisa Nefer-Ya, que se comunicava com os mortos e confirmava as palavras de minha tia e de minha avó sobre o meu futuro.
As predições da pitonisa correspondiam à expectativa do solene encontro.
Atravessamos as colunas, seguindo o escravo e, finalmente, deparamo-nos com o trono do Faraó, que causou novo impacto em minha mente infantil.
O trono parecia um sol dourado, ofuscando-me a visão. A figura do Faraó pareceu-me a mais forte que os meus olhos já viram.
Ele estava só, aquela seria uma audiência íntima.
Minha mãe arfava tanto, que seu coração parecia saltar do peito à medida que nos aproximávamos dele, aliás, eu também sentia o mesmo. Criara-se tanta expectativa a respeito daquele momento, que, em minha inocência quanto à visita e seu escopo, não consegui entender ao certo o que se passava, mas a ansiedade por estarmos ali em frente ao homem mais importante do Egipto, o dono de nossos destinos, atemorizava-me.
Foi então que vi o rosto do Faraó pela primeira vez. O nariz adunco e fino ressaltava nas maçãs salientes.
Seu rosto anguloso e severo abriu-se num meio sorriso, que foi aumentando devagar até aparecer uma dentadura amarelada.
Quando fitei seus olhos, me vi envolvida num misto de medo e alegria.
Sustentei seu olhar zombeteiro que parecia me devassar.
Examinou-me como se fosse um espécime raro. Eu, igualmente, observava-o com respeito, mas muito mais com a curiosidade de uma criança.
Ele não disse palavra, porém, sorriu enigmático.
Depois, voltou-se para minha mãe, e conversaram a meia voz. Ao toque de um sinete, um guarda entrou, e vi que o Faraó lhe ordenou algo. Em seguida, o homem retornou com alguns objectos, que foram entregues à minha mãe. Gesto que significava muito, porque minha mãe sorriu feliz. Mamãe quase não sorria, devido às dores que sentia no ventre.
Naquele momento, as decisões sobre meu destino pesavam.
Ficamos em silêncio como se aguardássemos uma sentença.
O Faraó levantou-se, deu um passo e tomou-me pela mão.
Sua mão quente e grossa apertou a minha. Era o conforto de que tanto necessitava.
O Faraó olhou-me carinhosamente, depois fez um sinal lentamente. Seu gesto expressivo fez com que me sentisse tão feliz, que sorri, e meu medo terminou ali mesmo, com aquela bênção.
Sua voz grave quebrou o silêncio:
– Todas as vezes, Smegrituh, minha filha, que tu vires este sinal, serei eu a guiar-te pela eternidade.
Colocou, em meu pescoço, um colar com o mesmo selo para que eu nunca mais me esquecesse da cruz ansata.
– Lembra-te sempre de mim, lembra-te de que a maior e a única religião a ser seguida é a VERDADE! – disse, e seu olhar misterioso pareceu atravessar além das paredes, voou para o céu, foi para o infinito. Senti algo fantástico percorrer minha espinha vertebral:
fogo e gelo, ambos queimando.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 26, 2023 7:24 pm

Tremia como uma vara verde ao vento.
Depois, abençoou-me novamente com o sinal da cruz sobre a minha fronte, meus lábios, meu peito e me falou algumas palavras ininteligíveis e desconhecidas de meu pobre vocabulário.
Daquele dia em diante, eu deixaria a casa de minha mãe para ingressar entre as sacerdotisas do Grande Templo.
O Faraó do Egipto, o nosso paizinho, assumia, doravante, a minha educação. Isto queria dizer que eu jamais retornaria à casa de minha mãe até a idade adulta.
Duas lágrimas rolaram dos olhos de Tyi-Tah ao se despedir. Era a primeira vez que nos separávamos.
Eu não queria deixá-la, mas nada podíamos fazer. Seria melhor assim e, por certo, nos veríamos outras vezes.
Quanto ao Faraó, meu pai, o grande Thutmés III, nunca mais estive com ele naquela vida. Mas sua figura alta e imponente estaria sempre comigo nos meus momentos de maior necessidade.
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Capítulo 2 – TEMPLO DE AMON-RÁ EM TEBAS
“Assim, no encadeamento das nossas estações terrestres, continua e completa-se a obra grandiosa de nossa educação, o moroso edificar de nossa individualidade, de nossa personalidade moral.”


Um escravo conduziu-me ao Templo da Grande Pirâmide. Lá seria meu novo lar, onde desfrutaria de primorosa educação, somente facultada à nobreza do Egipto.
Estava consciente daquela grande honra que me cercaria de conforto para o resto de meus dias na Terra.
Ao adentrar o templo luxuoso, senti remorso, pois, deixando minha querida mãe e nossa vida de miséria, percebi que um ciclo se fechava, para outro muito diferente se abrir. Embora minha pouca idade, percebia claramente a plena diferença entre nossas vidas.
Confesso que senti ímpetos de voltar e fugir para os braços de mamãe, onde recebera tanto amor e carinho. O futuro desconhecido me assustava.
No entanto, era impossível recuar. Lágrimas desceram pelas minhas faces.
Eu nada podia fazer, senão rezar e cumprir a lei de meu país.
Quando atravessei o umbral daquele pórtico, compreendi claramente que nunca mais voltaria à vida de miséria. Era o meu destino.
No interior do Templo, alguém me aguardava. Ali terminava a incumbência do escravo, ao apresentar-me, solícito:– Smegrituh, filha do Faraó.
O tom solene daquela frase fez com que me sentisse um tesouro raro, e a importância daquele título encheu-me de orgulho.
A grande-mãe, como era chamada a responsável pelas meninas, estendeu-me sua mão. Ela aparentava uns trinta anos, seu sorriso era maldoso e seu olhar, frio. Sua cabeleira negra dava-lhe um aspecto muito severo e contrastava com sua veste branca lindamente bordada. Ao toque de sua mão, senti grande repulsa, mas me controlei.
– Sê bem-vinda, Smegrituh – disse com falsa entoação,
Ela, igualmente, não gostou da minha pessoa ou, talvez, não gostasse de ninguém.
Acompanhei-a, timidamente, a uma enorme sala ladeada por belo jardim, cujas colunas davam ao terraço, de onde se avistavam filas de tamareiras a contrastarem com o céu azul. Um pequeno lago servia de espelho para a copa das árvores.
Que belo! – pensei, enquanto a grande-mãe se decidia onde me instalar.
* * *
Ouvi vozes vindas do pátio, onde algumas meninas, vestidas com longas camisolas, recebiam instrução. Pareciam felizes, fato que me fez imaginar se eu também ficaria ali tão à vontade quanto elas.
Estava tensa e amedrontada, embora extremamente curiosa com a nova situação.
Depois, passamos aos quartos de dormir. Ela indicou o meu leito juntamente com outros, todos iguais.
– Aqui poderás repousar, e neste baú colocarás teus utensílios.
Hoje, apenas conhecerás as dependências do templo, mas amanhã, bem cedo, iniciarás teus estudos.
Olhou-me severamente e ordenou:
– Descansa por agora. Não me sentia cansada, porém, nada falei. Estava agitada e bastante perplexa com o desenrolar dos fatos, queria pensar, descobrir se tudo aquilo seria realmente bom.
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Capítulo 3 – NEÓFITA
“Todas as correntes do passado se encontram, juntam-se e confundem-se em cada vida.”


Vendo-me só, olhei ao meu derredor sem nenhuma empolgação.
Depositei minha pequena trouxa no baú. Estava certa de que ali eu teria o essencial para viver, pois Thutmés endossava o meu futuro.
Sentia-me solitária, mas segura. Havia completado oito anos de idade, e a roda do meu destino movera-se radicalmente. Elevava-me à cúpula espiritual da nobreza sacerdotal, o ponto alto de meu país.
Depois de colocar meus utensílios no baú, deitei-me no leito de madeira coberto por confortável manta. Espichei o corpo, alonguei os braços como era meu costume e, depois, fechei os olhos. Segurei firme o colar que recebera do Faraó e passei por uma madorra. Meu Espírito vagou e me vi em frente ao Nilo, seus movimentos estavam dentro de mim. Vi os trigais maduros balançando ao vento, preparando-se para a colheita, e cada espiga brilhava sob os raios do Sol e caía novamente ao sabor do vento como se fosse movida por uma grande moenda a rodar sem parar. O Nilo, como fonte de vida incessante, era o cenário em que o Faraó se apresentou à minha frente. Seus olhos profundos e magnetizadores apontaram novos caminhos para o sul.
Certamente, era o meu caminho a seguir.
Assim fiquei algum tempo, não sei se dormindo ou viajando, totalmente estática e imóvel.
Despertei com algumas meninas ao meu redor.– Smegrituh! És a nova neófita? – alguém me perguntou. – Viemos em nome da sacerdotisa que te deseja ver.
Abri os olhos.
Uma simpática menina estendeu-me a mão.
– Vem – convidou-me sorridente. – Chamo-me Mirian.
Aceitei sua mão e segui-a, com as outras.
Entramos num salão cheirando a comida, era o momento do repasto.
Recebemos sopa de grão-de-bico, pão, leite e frutas, em quantias iguais, colocadas em pequenas tigelas.
Orientadas pela grande-mãe, todas nós ficamos de pé em frente aos alimentos para louvarmos a refeição e a saúde. Depois, comemos silenciosamente, ouvia-se apenas o barulho das colheres nas tigelas.
Ao final da refeição, todas agradecemos aquele alimento. Cada uma lavou sua própria tigela, que foi depositada sobre uma tábua coberta por linho ricamente bordado com motivos de flores e frutas.
Tudo ali respirava limpeza e ordem.
Nossas actividades eram muito rotineiras, principalmente as coisas básicas da vida: horário de dormir, asseio pessoal, alimentação e lazer. Iniciávamos nossa disciplina sacerdotal, ou melhor, a nossa disciplina mental. A cada dia, fazíamos novo exercício que nos levava à reflexão interna. Esta era, na verdade, a grande mudança.
Nos primeiros meses, tudo era novidade, e o tempo passou sem que eu percebesse.
Sentia falta de Tyi-Tah. Não podia sequer manifestar minha saudade para não ser mal interpretada, uma vez que recebia ali protecção e carinho.
Às vezes, chorava sua falta em meu cantinho e guardava confiante no fundo do meu coração que o Faraó me facultaria um dia poder revê-la e abraçá-la. Os estudos e os exercícios ocupavam nossos dias. Não nos davam oportunidade para os folguedos, e nossa mente juvenil era treinada diariamente. Sem que percebêssemos, entre uma actividade e outra, vivíamos uma intensa maratona em que o nosso poder mental se dilatava além das fronteiras do espaço em que nos situávamos.
Éramos treinadas para futuras sacerdotisas do Templo de Amon-Rá. Tudo tinha um real significado: a música, a dança, os gestos e a concentração.
As preferidas seriam seleccionadas para servirem à grande casa branca, a morada celeste de Faraó.
Todas nós pleiteávamos a honra de servir ao grande Pai.
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Capítulo 4 – A INICIAÇÃO
“A que regras está sujeito o regresso da alma à carne?
Às da atracção e da afinidade. Quando um Espírito encarna, é atraído para um meio conforme às suas tendências, ao seu carácter e grau de evolução.”

Oito anos se passaram naquela rotina rigorosa.
O dia amanhecera muito belo.
Eu e as companheiras, enfileiradas, aguardávamos a mestra para iniciar a caminhada no interior da principal Pirâmide.
O jardim salpicado de orvalho exalava aromas deliciosos enquanto as flores pareciam sorrir ao Sol.
O vale verdejante era convidativo, e os primeiros raios solares possuíam luminosidade diferente para mim. Estremeci ao contacto dos raios sobre minha epiderme, precisava daquela energia e fui envolvida por uma onda de sublime felicidade, como se alguém estivesse ao meu lado, a acompanhar-me... O paizinho andava comigo. Era Thutmés. Reconhecia sua presença mesmo sem vê-lo.
Aqueles raios tocavam o meu corpo e beijavam minha alma.
– Onde estaria o Faraó? – indaguei a mim mesma, recordando nossa única entrevista.
Se me visse, não me reconheceria, havia acrescentado alguns centímetros à minha estatura e tornara-me uma adolescente esguia.
Olhei-me no espelho e fiquei contente com meu aspecto: os lábios vermelhos e carnudos destacavam-se na pele morena, e os olhos negros cintilavam, como nunca, sob cílios longos e espessas sobrancelhas, que lhe emprestavam força maior no olhar. A franja lisa cobria metade de minha testa, e o restante dos cabelos tocava graciosamente os ombros. Sabia ser doce e cruel, dependendo do momento, embora tentasse disfarçar o meu lado ruim.
Nossa alimentação era frugal, tudo regrado e controlado, visando a nossa formação espiritual para nos tornarmos mestras na arte da comunicação dos Espíritos.
Nossa mente, nosso olhar, a expressão do rosto, eram treinados, aliás, nossos gestos e todos os movimentos de nosso corpo expressavam a graça, a leveza e a ordem. O ato de dançar, tocar flauta, sistro ou harpa levava-nos ao transe, exercitando corpo e mente.
Acostumamo-nos ao silêncio e à profunda meditação. O que eu mais queria era me tornar uma sacerdotisa e servir ao Paizinho.
A cada dia, um degrau.
A grande-mãe nos aguardava com tudo preparado no interior da Pirâmide.
Ansiosas, todas as meninas se esmeravam nos adornos de missangas e pinturas nos olhos.
– Mirian, ainda não terminei de te pintar, e o pó de galena acabou! – contestei.
Não podíamos sair sem pinturas nos olhos.
– Satrê, empresta-me teu pó, estamos atrasadas!
Felizmente, graças a Satrê, terminamos a tempo, era muito importante estarmos belas para a cerimónia.
Torah, nossa instrutora, seguia em frente, éramos doze jovens em fila indiana. Penetramos estreito corredor até uma portinhola cravejada de pedras e adentramos outro portal, trabalhado com vidros coloridos e espelhados. Nada podia dar errado. Após o sinal de Torah, entramos, uma a uma, numa ampla sala hipóstila. Desafira, a grande-mãe, aguardava-nos ansiosamente para depositar sua bênção sobre as nossas frontes. Se pudesse, dispensaria a sua bênção, mas o ritual apenas estava começando. A um gesto enfático seu fizemos uma meia lua a seu redor.
Sua voz metálica quebrou o silêncio. Sua tez amarelada contrastava com a peruca negra que aumentava sua estatura e mais se lhe acentuava as rugas nos cantos dos olhos; os lábios finos e comprimidos lhe davam um aspecto de bruxa. Decididamente, eu não gostava dela, mas procurei abafar qualquer tipo de influência, porque os exercícios mentais nos levavam ao controle de nossos sentimentos.
Concentrei-me com toda a força do meu ser para afastar qualquer pensamento malévolo contra ela e, finalmente, harmonizei-me, recordando os longos exercícios respiratórios.
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– Ó, filhas de Ísis! Sejam bem-vindas ao Oráculo da Grande Pirâmide! – suas palavras ecoaram frias.
A grande-mãe levantou-se e ajoelhou-se com as duas mãos estendidas ao solo e tocou a sua fronte no chão, e nós seguimos seu gesto lentamente.
Esse ritual repetiu-se três vezes e depois a acompanhamos, uma a uma, na mesma ordem, rumo ao grande salão aromatizado e agradavelmente iluminado.
Duas neófitas espargiam incenso e outras, mais reservadas, tocavam flautas e sistros. Os sons continuados e o perfume do incenso exerciam, em nós, agradável calmaria.
Ali se respirava intensa paz.
Nenhum pensamento indigno encontrava eco entre aquelas paredes... Senti-me leve como uma pluma. Olhei para o meu ventre e me senti estranha, estava oca por dentro e totalmente sem pele...
Aquela sensação de agradável leveza não era particularidade minha, mas todas as outras pareciam tão felizes quanto eu... Talvez, fosse efeito do longo jejum. Total silêncio...
A grande-mãe iniciou um mantra, e nós a seguimos.
Era o momento de atrairmos as forças espirituais, e nossas vozes se misturaram numa cadência tão ritmada que não mais se distinguiam... Apenas o som ecoava pelas paredes e voltava aos nossos ouvidos, penetrando-nos os sentidos.
Não paramos até atingirmos o limite de nossas vozes, para depois ir diminuindo o som até não se ouvir mais nada a não ser o eco das vibrações no ar e, depois, o próprio silêncio.
Foram tantos os movimentos das mãos acompanhando o ritmo, que nos exaurimos. Depois, vagarosamente, diminuímos os movimentos e ficamos extáticas por alguns instantes, com a estranha sensação de estarmos em comunhão com o Etéreo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 26, 2023 7:26 pm

Capítulo 5 – O SACERDÓCIO
“É na vida íntima, no desabrochar de nossas potências, de nossas faculdades, de nossas virtudes, que está o manancial das felicidades futuras.”

Seir, a estrela do Nilo, brilhava sobrepujante. Tudo parecia conspirar para que algo novo acontecesse. Alguns estudantes do Templo de Amon-Rá deveriam se unir ao nosso grupo naquele dia.
Eles eram treinados em astronomia, botânica, aritmética e artes em geral. Dentre as matérias que compunham o currículo deles, a mais importante era o desenvolvimento de seus dons espirituais; dons que os tornariam mestres na arte de curar e assistir ao povo como porta-vozes dos Espíritos. Esses jovens eram igualmente seleccionados, uns pelo bom relacionamento social e outros pelas aptidões espirituais que apresentavam desde a tenra idade.
O Faraó determinara as várias profissões e graus da classe sacerdotal para que o templo de Amon-Rá continuasse a distribuir suas benesses sem se expor ao vulgo e aos estrangeiros. Muitos jovens iniciavam no Templo devido à sua habilidade, e todos eram aproveitados, desde os mais humildes serviçais até os nobres escribas. Era necessário passar por um pequeno aprendizado para servir a causa.
Portanto, trabalhar no Templo constituía mais que uma honra, tornava-se um privilégio ser escolhido pelo Faraó ou por seu representante. Treinados, os mais aptos eram escolhidos para o sacerdócio, tornando-se um orientador do povo em nome do Templo.
Um grupo de jovens do sexo masculino foi seleccionado para se unir, naquele dia, ao ritual das sacerdotisas do Nilo.
Eram os encarregados do cerimonial da principal festa do Egipto, a chegada do Novo Ano e a comemoração da cheia do Nilo.
A vida se renovava, e todos se preparavam para o ato mais solene do Alto e do Baixo Egipto.
Todas as classes sacerdotais se movimentavam num verdadeiro afã para louvarem a deusa da fertilidade.


Capítulo 6 – REENCONTRO
“É o homem, por sua própria vontade, quem forja as próprias cadeias, é ele quem tece, fio a fio, dia a dia, do nascimento à morte, a rede de seu destino.”

Agradável surpresa estava por acontecer.
Entre a fumaça dos incensos, abriram-se os dois portais laterais, e alguns rapazes entraram.
Agora, o som de suas vozes enchia o salão de suave melodia como uma cantiga de ninar.
Os jovens caminharam até nós e, lado a lado, contávamos doze casais.
Depois, unimos as mãos e formamos um círculo estreito, impenetrável.
Ajoelhamo-nos de mãos estendidas para a frente e, depois, estiramo-nos, por completo ao chão, com a face voltada para baixo.
Nossas mãos se uniram pelas palmas, confundindo-se como varas estendidas para o alto.
O contacto de nossas mãos unidas nos deu, naquele momento, a certeza de que o Egipto éramos nós, e a nossa religiosidade era a força de nosso país.
– Somos o Egipto, filhos do Faraó, filhos de Ísis!
Ao terminarmos o ensaio da cerimónia da consagração, alguns neófitos haviam colocado, discretamente, tâmaras secas, uvas e ázimo em pequenas tigelas, acompanhadas de sucos. Era a nossa primeira refeição depois de longos dias em que ingeríamos apenas ervas e leite de cabra. Comemos, silenciosamente.
Desafira levantou-se, e nós a acompanhamos de volta a nossa casa.
Enquanto isso, os meninos também voltavam, seguindo seu mestre.
Na saída, cruzamos nossos pares. Um deles me chamou a atenção, fixou-me sorrateiramente, e seu olhar me fez estremecer, enchendo-me o ser de terna alegria. Tive a exacta sensação de uma flecha ter penetrado o meu coração e contagiado, com seu suave veneno, todo o meu corpo.
Foi o momento mais importante de toda a cerimónia. Minha alma se acendeu, como se um toque mágico a houvesse despertado.
“Que belos olhos!” – pensei.
Não podia me virar para observá-lo. Nunca imaginei me interessar por alguém assim...
Mas senti seu olhar acompanhando-me.
E, com essa alegria, retirei-me do salão.
Foi o momento mais encantador que vivi depois da bênção de meu pai.
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Capítulo 7 – AULA DE BOTÂNICA
“E se a alma abusar destes dons, se os aplicar às obras do mal, se, por causa deles, conceber vaidade ou orgulho, ser-lhe-á preciso, como expiação, renascer em organismos impotentes para sua manifestação.”

-O sacerdote Menéfres acabou de chegar! Vamos, Smegrituh! – convidou Mirian, apressada, com seu embornal dependurado no ombro.
Havia no ar certo aroma oriundo de várias ervas que o sacerdote trouxera e propositadamente deixara para que percebêssemos as diversas fragrâncias.
Menéfres, cheio de vitalidade, fixava em nós seus olhinhos espertos ao falar das ramas, e sua cabeça raspada reluzia ao Sol, semelhante a um espelho. Era muito engraçado observá-lo se movimentar, mas não devíamos nos distrair, pois ele viera de longe para ministrar pequeno curso de botânica.
Aprenderíamos a arte de utilizar a natureza para desenvolver os sentidos e a exploração daquelas plantas medicinais em benefício da humanidade.
O Sacerdote Menéfres colocou, sobre a tábua de madeira coberta por um forro de linho, várias folhas e cascas de árvores e, nas duas bordas, espalhou flores secas que conservavam seu perfume.
Distribuiu, para cada aprendiz, uma tigela e começou a explicar o conteúdo das plantas ali depositadas. Ensinou-nos a manuseá-las e depois a cheirá-las uma a uma.
Pegou água fervente e nos explicou a técnica dos chás em ebulição.
Aprendíamos a extrair das raízes toda a sua força. Porém, o poder curativo de tais plantas era dinamizado pelos fluidos magnéticos que nelas depositávamos, este ritual era o segredo do nosso sacerdócio e o mundo lá fora, com suas conspirações e guerras, jamais poderia saber.
Eu estava encantada com aquele novo aprendizado sobre as ervas medicinais, e em descobrir que, através das raízes, das flores e das sementes, podemos retirar o extracto capaz de curar uma infinidade de males. Estudávamos os óleos medicinais e os perfumes que podiam levar ao transe hipnótico e anestesiar o corpo.
Tornar-nos-íamos médicas do corpo e da alma. Tal possibilidade me colocava num patamar tão importante, que era difícil não me envaidecer. Vaidade que me dominava a mente.
Conquistávamos a ciência de curar. Era a mais alta cúpula daquele sacerdócio.
Em dado momento, fui inteiramente tocada por sua sabedoria. – Como o sacerdote Menéfres podia conhecer tanto e ao mesmo tempo permanecer tão simples? – pensava eu, com os olhos grudados em sua figura miúda, cheia de vitalidade e bom humor. O sábio pareceu ler meu pensamento, porque argumentou:
– Tais conhecimentos deverão ser usados para auxiliar os que padecem de enfermidades, jamais para outros fins. O sacerdote que se envaidecer de tais verdades ou utilizá-las incorrectamente, cavará sua própria infelicidade.
Nem todos ali apreendiam aquele saber. Os mais argutos, porém, crivavam Menéfres de perguntas.
Meu coração se rejubilava, mas algo em mim se alterava à medida que tais conhecimentos eram assimilados. Enchia-me de soberba e já não olhava as pessoas com a mesma simplicidade.
Desenvolvia a inteligência, mas a minha essência permanecia tacanha e distante da verdadeira sabedoria. Foi este o meu grande erro. Motivo que me levou a escrever estas recordações.
Ninguém era capaz de modificar meu carácter.
O conhecimento despertou-me a sede de domínio, mergulhei na descoberta, mas meu coração se fechava, insensível.
Estudava com afinco todas as plantas e seus aromas, destacando-me pelo interesse.
Mirian acompanhava-me nesses estudos.
Mirian era diferente de mim. Sua sensibilidade me atraiu, porque percebi nela virtudes que me encantavam. Ela conseguia tirar conclusões que me enchiam de despeito, enquanto eu não atingia o seu grau de sensibilidade.
Todas as suas ideias eram por mim captadas e desenvolvidas, juntas formávamos uma parceria, ela pensava e eu executava.
Ela era mais velha que eu, porém, de baixa estatura, aparentávamos a mesma idade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 26, 2023 7:27 pm

Mirian era uma artista nata, tudo o que ela tocava tornava-se belo e cheio de terna alegria. Seus traços delicados chamavam a atenção pela alvura de sua tez, que contrastava com os cabelos levemente ondulados e cheios.
Ao contrário dela, sentia-me estabanada e, por mais que tentasse, não conseguia tornar meus adornos tão belos quanto os que ela usava. A sua graça natural enchia-me de ciúmes e inveja.
Embora nossa ocupação diária no Templo, encontrava tempo para pensar no belo jovem e naquele olhar que me arrebatara a alma.
Ansiava revê-lo. Ele não me saía do pensamento, até que o avistei nos jardins do templo e travamos um diálogo espontâneo sobre factos corriqueiros, mas foi o suficiente para despertar em mim um interesse diferente.
Meu contacto com rapazes era restrito e nem me dei conta de a afabilidade de Tamer para comigo ser apenas fruto de sua esmerada educação. Assim, acreditei-o também inclinado por mim e alimentei a esperança de ser correspondida.
Procurei, diversas vezes, os lugares que ele costumava estar para cercá-lo com minha presença e chamar sua atenção sobre mim.
Sempre educado e atencioso, nem percebia que seus modos distintos me cativaram a ponto de desejar um idílio entre nós.
Nesta vaidosa pretensão, embalei-me num sonho que me fazia feliz e me abstraía de minha solidão.
Quando era noite, estendia-me no leito, e seu rosto se desenhava na minha mente. Todos os contornos eram ali avaliados, a cor da pele, o nariz recto e grande, a boca que se entreabria num meio sorriso, os olhos expressivos, um tanto ingénuos; a expressão de suas mãos movimentando-se quando falava. A farta cabeleira negra.
Enfim, tudo nele me atraía a ponto de pensar nele o tempo todo.
Tomei-me de paixão impulsiva e estava prestes a revelar-me sem restrição, aguardando apenas o momento aprazado.
Guardava aquele sentimento oculto porque não confiava em ninguém, era como se Tamer me pertencesse apenas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 27, 2023 9:10 am

Capítulo 8 – DECEPÇÃO“A ideia que fazemos da felicidade e da desgraça, da alegria e da dor, varia ao infinito segundo a evolução individual.”

Certo dia, descemos o Nilo numa barca para estudarmos suas margens e todos os componentes de sua vegetação.
Éramos um grupo de vinte jovens, entre noviços e noviças.
Estes passeios ao ar livre muito nos agradavam, principalmente a mim, porque eles me facultavam a possibilidade de rever Tamer.
Desde a primeira vez que o vi, no Templo de Amon-Rá, não havia um minuto em que ele não estivesse presente em meu pensamento.
Eu o observava muito e atribuía a nossa precária comunicação à sua timidez, enquanto minha imaginação fomentava um idílio romântico.
Aos poucos, fui percebendo que Tamer não me enxergava com a admiração que eu exigia e, que, às vezes, desviava o olhar quando eu procurava ler, em sua alma, se me queria tal como eu. Contrariada, notei que seu olhar pousava diversas vezes em Mirian, de uma maneira muito límpida, cheio de admiração. Era um olhar de amor.
Meu coração encheu-se de raiva, sentimento que tentei abafar o quanto pude.
Esse sentimento aflorou em minha alma, como uma navalha afiada que cortava toda a minha alegria.Com o cérebro atordoado pelo despeito, nem notei a presença de alguém que se aproximava de mim, enquanto mirava as águas do Nilo.
– Que pensamentos pululam nessa bela cabeça? – perguntou-me José, um dos companheiros da peregrinação.
O moço, cheio de boas intenções, distraiu-me a atenção. Ele demonstrou visível interesse por minha pessoa. Aproveitei aquele momento e disfarcei meus sentimentos. Ele, apesar de interessante, não correspondia ao meu modelo de homem. Aliás, desde que vi Tamer, qualquer outro rapaz tornava-se sem graça.
José poderia ter sido muito mais que um amigo: elegante e alto, desenvolto no falar, demonstrava grande inteligência e astúcia, seus argumentos eram convincentes. Não fora a forte atracção que sentia por seu amigo, talvez me inclinasse pra ele.
– Enganas-te, José, estou apenas preocupada com as informações recebidas sobre o rícino e como aquela rama poderá transformar-se, no futuro, num bem para a humanidade. Porém, se uma mente doentia descobrir suas potencialidades, poderá exterminar alguém.
– Sim, Smegrituh, isto também me ocorre, mas não te preocupes, tais conhecimentos jamais sairão de nossa esfera de estudos, e nenhum de nós terá a audácia de passar aos profanos o que aprendemos aqui.
Calei-me e passamos a falar sobre Tamer, uma vez que os dois jovens eram grandes amigos, e José ser-me-ia útil para estar mais próxima daquele a quem meu coração escolhera.
José, astucioso e inteligente, percebeu logo minhas reais intenções, habilmente disfarçadas, e se deixou interrogar. Assim, consegui extrair dele todas as informações que me apraziam.
Conduzi o assunto com tanta naturalidade, pensando disfarçar os meus sentimentos. Julguei que ele nem sequer suspeitasse o alvo que meus desejos ignóbeis queriam atingir. Jamais poderia supor que minha paixão por seu amigo estivesse tão evidente e que, no fundo, José se divertia. Satisfeita com suas informações, afastei-me e coloquei, em meu embornal, suficiente parte daquela rama, cuja propriedade medicinal me atraía.
Ninguém percebeu meu gesto e voltamos com aquelas lições preciosas para o futuro de nossas pesquisas e estudos sobre aromas e chás.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 27, 2023 9:10 am

Capítulo 9 – SUSPEITAS CONFIRMADAS
“Cumpre que haja o sofrimento físico e a angústia moral para que o Espírito seja depurado, limpe-se das partículas grosseiras, para que a débil centelha, que se está elaborando nas profundezas da inconsciência, converta-se em chama pura e ardente, em consciência radiosa, centro de vontade, energia e virtude.”

Mirian e Tamer não me saíam do pensamento.
Os dois se tornaram minha frenética obsessão.
A menor possibilidade de vê-los juntos ou qualquer aproximação entre ambos tornava minhas noites um verdadeiro flagelo mental.
Era jovem na idade, mas aquele sentimento não era novo, possuía a senectude da imperfeição instalada no recesso de minha velha alma coberta de úlceras pretéritas, talvez de um passado em outras eras e antigo continente, que muito me perturbavam o sono.
Onde avaliar tamanho ciúme?
Cheguei a admirar minha rival antes de conhecer Tamer, até que seu interesse pelo rapaz me levou a detestá-la!
Aquele sentimento maldoso fazia-me sentir pior do que eu era. A admiração que eu sentia pela amiga foi transformando-se em raiva, à medida que eu os via juntos.
Passei a observar Mirian em tudo o que ela fazia, pois queria saber se ela correspondia ao mesmo interesse que Tamer lhe votava.
Mas de que me adiantaria saber se ela o amava ou não? Eu não podia ignorar que Tamer, sem dúvida alguma, pendia para ela como o salgueiro se debruça sobre o Nilo.
Impossível deter a atracção que o levava a Mirian. Este era o meu maior desafio.
Ele a queria mais que a mim.
À medida que o casal se unia, eu percebia nitidamente que Tamer se esquivava de mim, causando-me dor e desespero. Nossas conversas não mais o interessavam. A alegria estampada no rosto de Mirian quando ela se virava para ele, e como seus olhos brilhavam, tornavam-na irresistível!
Eu estava enlouquecendo, e nada podia fazer para impedir aquele romance.
Não ouvi nenhum comentário a respeito do idílio. Mas não me conformei em ficar na dúvida, e, para constatar minhas suspeitas, não hesitei em provocar uma reunião entre nós três. Para não me trair perante os enamorados, convidei José, insegura de minhas reacções precipitadas. A admiração que José me devotava, de certa forma, proteger-me-ia. Não hesitei em usá-lo como escudo para que meu coração e minhas intenções não me traíssem.
Continuando meu plano, convidei Mirian para um passeio:
– Vamos apanhar amoras, Mirian?
– Claro, Smegrituh, com certeza já estão maduras – respondeu-me a amiga, interessada.
– As varas estão altas, convidemos Tamer e José para nos auxiliarem, pois eles estão próximos ao rio – disse-lhe, demonstrando naturalidade.
O olhar de Mirian brilhou, ou eu estaria vendo coisas, inspirada pelo ciúme?
Ela correspondia, então, ao amor de Tamer?
Fomos até o Nilo por uma estreita passagem que bem conhecíamos e encontramos os dois rapazes colhendo papiros. À nossa chegada, sorriram animados:
– Olá, que agradável surpresa, belas meninas! – brincou Tamer, com olhos apenas para Mirian.
José aproximou-se de mim entusiasmado com o encontro, seu sorriso malicioso acompanhava meus gestos e ele me cercava de atenções.
– Viemos apanhar amoras – explicou minha rival aos dois.
– As amoras estão aqui bem perto, vamos colhê-las! – chamei-os.
Mirian e Tamer começaram a conversar, esquecendo-se de nós dois.
Engoli minha decepção e me dirigi a José bruscamente:
– Vamos colher as amoras agora! – estava nervosa perante a cena do casal e desejei afastar-me.
Os moços abandonaram suas tarefas por alguns instantes e, prontamente, dispuseram-se, a nos auxiliar a apanhar as desejadas amoras.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 27, 2023 9:11 am

O trilho era suficiente para um casal. Mirian e Tamer vinham atrás, vagarosamente, pois tinham pressa em se falarem a sós.
Olhei os namorados lado a lado e, apesar do ciúme que me invadia a razão, reconhecia que formavam um belo par.
José e eu também formávamos um bonito par. Ele, alto e moreno, chamava a atenção, pois, além de elegante, era prestativo. Seu bom humor me deixava à vontade.
As amoreiras estavam repletas de frutos e, com a ajuda dos rapazes, enchemos os cestos num instante.
Toda a atenção de Tamer estava voltada para Mirian. Eu parecia nem existir para ele, aliás, ele fazia questão de ignorar-me.
Não precisava ir mais além para confirmar minhas suspeitas, porque ela, igualmente, correspondia ao seu galanteio.
Fiquei desfigurada pela raiva, fechei os olhos para não vê-los e mordi os lábios. Minha atitude chamou a atenção de José, que perguntou, preocupado:
– Sentes algo, Smegrituh?
– Não, nada, vamo-nos daqui – respondi, expressando minha contrariedade.
José, embora não demonstrasse conhecimento do real motivo de minha súbita contrariedade, procurava cercar-me de atenção como se quisesse me proteger.
O rapaz pareceu me distrair, afastando-me do casal, que logo desapareceu pelas ramagens.
Havia observado minha reacção perante o idílio dos dois e disfarçou para não me humilhar ainda mais.
Voltou comigo, calado, respeitando meus sentimentos. Eu estava tão nervosa, que nem me dei conta do caminho de volta nem lembrei de me despedir dele.
A partir daquele dia, minha alma encheu-se de amargura. Tornei-me solitária e deixei-me enrodilhar totalmente pelos funestos pensamentos contra a amiga, que nem sequer suspeitava de minhas emoções.
Não conseguia mais pensar em outra coisa senão em eliminar a minha rival. Infeliz criatura que ousava atravessar os meus sonhos.
Ela e sua beleza eram responsáveis pela minha desdita.
Somente eliminando-a, Tamer ficaria livre e poderia corresponder ao meu amor.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 27, 2023 9:11 am

Capítulo 10 – PREPARANDO CAMINHOS
“Através dos ciclos do tempo, todos se aperfeiçoam e se elevam; os criminosos do passado virão a ser os sábios do futuro.”

Aproveite-me da atracção que exercia sobre José e deixei-me ser cortejada por ele, no intuito de torná-lo meu aliado. Sabendo-o apaixonado por mim, aceitava qualquer coisa para estarmos juntos e realizar meus caprichos.
Agindo assim, manter-me-ia a par de todos os passos do casal.
Estávamos juntos em todos os momentos permitidos à nossa iniciação.
Havia algumas actividades que realizávamos juntos e, em outras, permanecíamos vários dias sem nos vermos.
* * *
O tempo foi passando, e o nosso aprendizado intensificou-se com o auxílio de novos mestres na escola iniciática, cujo patrocínio directo pertencia ao Faraó. Recebemos aulas avançadas em astrologia e astronomia. Tais conhecimentos eram um privilégio concedido a poucos, e tudo o quanto aprendíamos seria usado em suas futuras expedições e em seu reinado.
Ao final de cada etapa, éramos seleccionados e divididos em novos grupos, conforme a capacidade mental de cada um.
Naquele tempo, o sacerdócio havia crescido muito e com ele também crescia o número de charlatões e de templos sem expressão.
Aquela situação era oriunda dos novos povos trazidos nas campanhas de guerra e, que, vagarosamente, ameaçava a tranquilidade de nossa gente.
Nosso pequeno grupo feminino deveria passar por uma dura prova, a sétima dobra da verdade. A ciência psíquica, em exercício pleno de nossas faculdades, facultar-nos-ia o ingresso ao desdobramento espiritual para acções futuras junto ao Faraó.
Em plena lua cheia, no alinhamento dos planetas, seríamos submetidas a intensa concentração e, para isto, teríamos que estar em total isolamento. Nossos estudos aumentaram, pois aproximava-se o grande momento de alcançarmos a graça do sacerdócio mais almejado do país: servirmos ao Faraó.
Cada jovem, em cela separada, seria avaliada por seu mestre.
Mirian e eu fazíamos parte do mesmo ciclo iniciático. Nossas celas estavam separadas apenas por uma parede de tijolos.
Antes de nos isolarmos com os papiros, compartilhamos dos últimos conhecimentos com a principal sacerdotisa, voltados para a iluminação do ser.
– Filhas de Rá, aproveitai o isolamento para a mais profunda meditação sobre todos os conhecimentos a vós confiados nestes anos de preparo espiritual. A cada uma será dado o quinhão de acordo com a sua elevação moral. Fechai os ouvidos aos apelos inferiores e despertai dentro de vós o ser iluminado que existe para se doar aos que clamam no deserto das aflições. Sede a água viva que dessedenta o viajor cansado, a fonte viva do amor que nunca secará porque é eterna. Lembrai-vos de que a vontade portentosa da libertação encontra-se no recesso de vossos seres. Querer e silenciar, ousar e realizar, consistem no domínio completo do eu inferior para a grande evolução espiritual.
Os conselhos principais da grande-mãe não alcançavam eco em minha mente, dominada pelo espírito de vingança.
Quando a grande-mãe colocou sua destra no alto de minha cabeça, estremeci, porque me lembrei do Faraó, de sua bênção e do símbolo que agora recebia dela. Como pude me esquecer!
Insensata que era, menosprezei o selo real.
Decepcionada comigo mesma, baixei a fronte e segui o ritual.
Em reunião geral, recebemos o material e as recomendações finais. Depois disso, cada uma estaria isolada numa quarentena para as derradeiras provas, no total recolhimento de nosso âmago.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 27, 2023 9:11 am

Capítulo 11 – NEFASTA INFLUÊNCIA
“A alma deve conquistar, um por um, todos os elementos, todos os atributos de sua grandeza, de seu poder, de sua felicidade e, para isso, precisa do obstáculo, da natureza resistente, hostil mesmo, da matéria adversa, cujas exigências e rudes lições provocam seus esforços e formam sua experiência.”

Era minha única oportunidade.
Meu coração jazia envenenado pela peçonha da inveja e pelo micróbio do orgulho ferido. Minha mente já havia tecido o ignóbil plano para eliminar para sempre a odiada rival. Não hesitei em ocultar, nas minhas vestes, minúsculo frasco contendo precioso veneno.
Ninguém poderia perceber que ali, na algibeira interna que eu mesma havia costurado, estaria o líquido fulminante.
Possuída pela ideia fixa, meu corpo, alfinetado por longos arrepios, balançava estremecido. Procurei disfarçar o tremor que me agitava. Torcia para que ninguém percebesse a sombra que me ameaçava.
Logo recuperei o domínio de meu corpo e, recordando as lições recebidas, respirei fundo. Tornara-me mestra nos disfarces de minhas emoções, sabia sorrir e silenciar, ocultando, ao mais hábil psicólogo, os meus verdadeiros sentimentos. Espiguei o corpo e, altiva, caminhei pelo longo corredor junto às outras jovens até as celas, onde, então, separar-nos-íamos. Mas, ao invés de entrar para a minha cela, colei meu vulto a Mirian. Senti-a estremecer.
– Tenho que te falar! – disse-lhe a meia voz.
Sem perceber minhas intenções, ela aceitou, e juntas entramos no mesmo compartimento.
– Mirian, serão quarenta dias, isoladas.... Teremos longos dias pela frente até concluirmos a iniciação.
A companheira estava aflita, e, mergulhada em meu objectivo, nem consegui perceber sua necessidade imediata e nem me importei com o que ela gostaria de revelar.
– Preciso confessar-te algo, Smegrituh, pois não consigo mais conviver com este segredo – falou Mirian.
– Não temos tempo a perder agora. Após o insulamento, contar-me-ás o teu segredo – respondi, sem lhe dar ouvidos, afoita por continuar o meu plano. Nem sequer prestei atenção ao seu apelo. Tinha que persuadi-la a beber o veneno e desaparecer dali o mais rápido possível.
– Aqui está um remédio que nos fará adormecer. Pensei em ti, que temes a escuridão. Dormiremos por um tempo sem abalar nossa mente e nem a saúde, e o tempo haverá de passar mais rápido.
Convido-te a bebê-lo comigo.
Ela olhou-me com seus grandes olhos e disse, para o meu descontentamento:
– Smegrituh, não devemos beber o sonífero, porque faz parte da iniciação estarmos com a mente desperta, por isso, reconheço tua intenção, mas dispenso tal remédio. Não me sinto bem.
Não contava com sua recusa e acabei por morder os lábios de raiva. Respirei fundo e me controlei. Tinha que persuadi-la antes que alguém passasse por ali e me visse pelo buraco onde seria depositada, pela manhã, nossa alimentação.
Além do mais, teria de entrar em minha cela rapidamente e fechá-la por dentro. Depois, não sairíamos mais até que vencesse o prazo determinado.
– Está bem, não te vou molestar – retruquei, fulminando-a com meu olhar frio.
A minha vítima esquivou-se ao meu contacto e nada pude fazer.
Deixei-a, porque tive nova ideia, colocaria, em seu alimento, o letal líquido.
– Não me escaparás, ainda que eu perca tudo que já alcancei! – murmurei, revoltada, sem que ela percebesse.
Decidida, olhei-a pela última vez e nenhuma ponta de remorso ou de pena se apossou de mim. Estava fria como uma noite de inverno.
Ninguém nos vira naquele colóquio.
Nenhum barulho se ouvia ao longo do corredor, e a escuridão estava prestes a descer sobre nossas vistas.
Alguém depositou uma jarra contendo água, e outra, contendo leite e uma bandeja com pão. Esta seria a nossa primeira e única refeição. Cada cela continha uma portinha que era fechada pelo lado de fora. O serviçal ia até o final do corredor e, após deixar os objectos, voltava para fechar as portinholas. Era a minha chance e subtilmente consegui apanhar o jarro de leite e nele deitei o veneno.
Troquei o meu jarro pelo de Mirian.
Jamais alguém poderia suspeitar da minha sinistra façanha.
Pensava somente em Tamer e em conquistar o seu amor, afastando, de meu caminho, a odiada rival.
E assim foi feito.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 27, 2023 9:12 am

Capítulo 12 – PLANO VITORIOSO
“Para apreciar a claridade dos dias é mister haver atravessado a escuridão das noites.”

A noite desceu cálida, e o silêncio tomou conta de tudo. Minha mente superexcitada não conseguia relaxar, atenta a qualquer barulho.
Ouvira os gemidos de Mirian através das paredes, ou seria minha impressão? Agucei meus sentidos, procurando ver o que se passava além. Imaginei-a contorcendo-se como uma cobra pelo chão, sufocada e vermelha. Senti que ela queimava por dentro. Depois, os gemidos cessaram. Fiquei esperando novos barulhos, mas o silêncio era total.
Aquele silêncio frio me fazia arrepiar inteira. Esperar o amanhecer seria cruel para quem desejava um resultado imediato.
Sua agonia teria terminado?
A escuridão cobria nossas celas. A expectativa abalou meus nervos e, mediante o fato, perdi o equilíbrio e comecei a chamá-la.
As outras neófitas ouviram meus gritos, mas não entenderam o que se passava. Houve um tumulto de vozes e alguns rangidos de portas. Receosa, aguardei uns instantes.
Tal era meu estado de excitação, que acabei rompendo a barreira e saindo da cela, porém, na escuridão, não se enxergava nada.
Voltei rapidamente para a cela ao perceber que um vulto se aproximava. Prendi a respiração e encolhi-me na parede até a pessoa passar. Deitei-me e não me atrevi a me mexer, certa de que meu plano saíra vitorioso com a morte de minha rival.
Também não conseguia fechar os olhos e podia ouvir as batidas desordenadas do meu coração.
Ajeitei-me no leito e tentei ficar imóvel como fôramos treinadas.
Assim, poderia captar os barulhos mais distantes. Queria me certificar de que ela havia passado para a mansão dos mortos, onde deveria ficar para nunca mais me aborrecer.
No entanto, não consegui vencer a agitação interior que descompassava o meu peito. Longe da verdadeira concentração, apenas exteriorizei meu desejo ignóbil.
Olhos abertos no vazio, um calafrio percorreu-me da cintura até a raiz dos cabelos e, lentamente, desceu até os pés, e agitei-me toda, sem conseguir controlar o acesso que me invadiu.
Tive uma crise cataléptica e me vi fora do corpo. Estaria eu também passando pelo fenómeno da morte?
Nenhum músculo de meu corpo se mexeu, tal foi o estado letárgico em que entrei.
Meu cérebro não conseguia raciocinar, figuras esquálidas vinham em minha direcção, tudo rodava à minha volta, e desmaiei sem perceber onde me encontrava.
Assim fiquei em tempo indefinido. Quando acordei, vi bastante confusão no corredor, todos estavam demasiadamente agitados.
Será que já teriam descoberto a minha vítima?
Ou eu estava presa de alucinações?
Viriam os mortos me cobrarem?
Eles que tudo vêem e sabem?...
Os mortos não falam, são sombras que transpassam paredes e portas, mas não falam...
Este pensamento, ainda que erróneo, acalmou-me.
Não sei precisar o tempo que se passou. Certamente, o corpo de Mirian fora descoberto.
Ninguém poderia suspeitar de mim se continuasse em minha concentração. Tratei de ficar quieta, ignorando o que se passava lá fora.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 27, 2023 9:12 am

Capítulo 13 – DÚVIDAS
“O pensamento e a vontade são as ferramentas por excelência, com as quais tudo podemos transformar em nós e à roda de nós.”

Nossa iniciação estava programada, e nada poderia alterar o ritual.
Para mim, no entanto, ela havia se encerrado ali, pois não conseguia me controlar e meu Espírito pareceu vagar num labirinto de perturbação.
A cela ao lado permanecia em total silêncio, e eu adivinhei que ficara vazia, pois ouvira passos da nossa provedora de alimentos.
Teriam recolhido Mirian?
Não podia sair e nem perguntar coisa alguma.
Aquela expectativa estava me torturando.
Passávamos pela prova do silêncio. Era proibido falar.
O restante das noites tornou-se verdadeiro pesadelo. Mirian vivia dentro de mim. Seu olhar e seu sofrimento me faziam enlouquecer.
Em minha alucinação, Tamer também me visitava. Olhava-me severamente, causando-me profunda vergonha, acrescentada de grande frustração.
Eu o via abraçar Mirian e aconchegá-la ao peito e, quando tentava alcançá-los para arrebatá-la, ela me fugia como uma nuvem que se desfaz.
Meu cérebro ardia, e meu peito arfava. Sentia-me enfraquecer dia a dia. Senti um grande alívio quando se encerrou a primeira etapa do insulamento e, finalmente, inteirar-me-ia do desfecho da companheira.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 27, 2023 9:12 am

Capítulo 14 – FRUSTRAÇÃO
“A sensação do remorso é uma prova mais demonstrativa que todos os argumentos filosóficos.”

Assim que saí da cela, corri, ansiosa por saber do paradeiro da vítima. Temia perguntar, receosa de trair-me, mas estava certa de que ela havia feito sua passagem pelo tribunal de Osíris.
Em nosso retiro, havia uma grande muralha que nos isolava do convívio popular. Esse fato, com certeza, protegia-me de qualquer suspeita, mas por mais que tivesse curiosidade em saber sobre Mirian, o que fizeram de seu corpo, para qual embalsamador ela teria sido levada? – não me atrevia a perguntar.
Até que finalmente criei coragem e procurei Soraia, uma das nossas companheiras, na tentativa de descobrir algo.
– Soraia, por mais que procure, ainda não avistei Mirian... Sabes onde ela se encontra? – simulei naturalidade.
Soraia fitou-me dentro dos olhos e respondeu com evasivas, aumentando minha aflição:
– Não sabes o que aconteceu? És a única. Ela não poderá terminar a iniciação...
– Como assim, se é uma das preferidas?! – perguntei-lhe, demonstrando espanto.
– Dizem os sacerdotes que ela sofreu uma síncope mortal durante o isolamento, e foi levada às pressas.– Que horror! Conta-me o que sabes, pois desconheço esse facto! – tornei a ela, fingindo-me surpresa, sem conseguir disfarçar um sorriso maldoso.
– Espanta-me, Smegrituh, não saberes, pois andavas sempre com ela e o namorado. Eu, sim, que nada sei sobre o fato, apenas este relato foi passado de boca em boca. Os sacerdotes não deram mais explicações, porque a família de Mirian interferiu e levaram-na daqui.
– Como assim? Nada sei, encontrava-me totalmente insulada! – expliquei ansiosa. – Tens ideia de onde ela se encontra neste momento?
– É o que todos desejam saber... Para minha estranheza, as sacerdotisas e os sacerdotes do Templo de Amon- Rá se calaram.
Acredito que algo além deve ter acontecido...
Mediante minha palidez, Soraia indagou:
– Gostas tanto dela...? O que se passa...?!
A jovem nem teve tempo de terminar a pergunta, pois caí em seus braços.
Ao me ver desfalecida, Soraia começou a gritar:
– Por Amon, ajudem-me!
Alguém veio atraído pelo grito, e fui imediatamente socorrida.
Todos pensaram que meu desmaio era oriundo da perda da amiga.
– Coitada! Elas eram muito unidas! – alguém exclamou, vendo-me tão pálida.
Medicada, logo reagi e recobrei meu domínio, apesar do desespero. Como? Ninguém sabia onde estava minha rival?
Aquilo me apavorava e constituía minha punição.
Nem as companheiras de noviciado sabiam do paradeiro de Mirian. Não me animava a perguntar à grande-mãe.
Senti que me olhavam desconfiadas e desisti da busca. Havia um mistério no ar que me ensandecia.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 27, 2023 9:13 am

Capítulo 15 – LOUCURA
“Quando o homem já não tiver segredos, quando se lhe puder ler no cérebro os pensamentos, ele não mais se atreverá a pensar no mal e, por conseguinte, a fazer o mal.”

Sombras densas pululavam em minha mente culpada, sentia olhares desconfiados em todos os transeuntes e, constantemente, ouvia alguém me chamar, e quando voltava, apenas via um vulto escuro, que logo desaparecia.
Minha fronte doía, e eu receava ser descoberta, porque me era difícil disfarçar a ansiedade.
Assim, tornei-me taciturna e retraída.
Perdi toda a alegria.
Não tive coragem de procurar Tamer, e José pareceu-me distante.
A lembrança daquela noite continuava viva, mas de Mirian nenhuma pista ou notícia. Acreditando-a morta, tomava o vulto escuro como o espectro de Mirian a seguir-me.
Dias após, recebi um comunicado que me fez tremer:
– Smegrituh, nossa grande-mãe aguarda-te, nesta tarde, na sala de audiência.
A serviçal transmitiu o recado, deixando-me confusa.
– Espera, Nefer! – gritei, mas a moça saiu rápido, sem outras palavras – corri atrás dela, sem resultado, pois ela já havia desaparecido pelas colunas. Todos se afastavam de mim ou era minha impressão?
Aliás, a única pessoa que me fazia companhia era Mirian e justo ela fora subtraída daquele modo. O que fizera?
Uma ponta de remorso me remoeu o coração. O fato de ter ido tão longe, agora, modificava o meu destino.
– Não matar – era um dos códigos explícitos de nosso aprendizado, aliás, o mais importante.
A morte não era o fim, mas o recomeço. Assim falavam os mais eminentes sacerdotes do Templo de Amon.
Quantas vezes ouvimos Xanufrê?
Belíssimas lições!
Conceitos que nos levavam a raciocinar sobre a vida, instigando nosso Espírito a avançar rectamente para o sol milenar, que tudo ilumina, para o olho da verdade, que tudo vê e retém.
Eu temia a luz. Até o Sol me fazia mal.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 27, 2023 9:13 am

Capítulo 16 – NOTÍCIA FRAGOROSA
“Mais cedo ou mais tarde, todo produto do Espírito reverte para seu autor com suas consequências, acarretando-lhe, segundo o caso, o sofrimento, uma diminuição, uma privação de liberdade, ou, então, satisfações íntimas, uma dilatação, uma elevação do ser.”

Passei o resto da tarde engolfada nas mais estranhas conjecturas, enquanto aguardava o momento de estar com a sacerdotisa-mãe.
Teriam me descoberto?
Mirian sobrevivera e me delatara?
Se estivesse morta, em qual sala mortuária teria sido guardada?
Por que ninguém se referia a ela?
Afinal, eu estava enlouquecendo com aquele mistério.
As horas tornaram-se enfadonhas, e a expectativa consumiu meus nervos. Trémula e irritada, finalmente, cheguei à sala de audiência.
– Smegrituh, filha do Grande Faraó, aproxima-te! – ordenou nossa mãe ao me ver na soleira, parada como uma múmia, ante o tribunal de Osíris.
Ela olhou-me, devassando meu interior.
– O que se passa contigo?
Receosa de ter sido afinal descoberta, não conseguia emitir palavra, tinha os nervos à flor da pele.– Estás doente, Smegrituh? – perguntou-me, aproximando-se de mim.
Encontrava-me muito nervosa para responder, e minha atitude a intrigou tanto, que senti seu hálito em meu pescoço como uma onça a farejar a presa.
Nada respondi. Ela, irritada, disse em tom azedo:
– Não sei o que te acontece. Lamento dizer que foste reprovada.
Tua conduta ficou a desejar durante o insulamento. A prova do silêncio na porta da meditação... – seu olhar pareceu atravessar minha mente, e a ironia com que me dava a notícia me enfurecia.
Teriam me descoberto? – indaguei para mim mesma, confusa.
Para meu alívio, a grande-mãe continuou:
– Não ultrapassaste o umbral e terás agora que percorrer novamente o caminho. Aconselho-te, Smegrituh, a procurar o sacerdote Mesiqueb e tratar tua enfermidade, tens o organismo debilitado e conduta alterada. Além do mais, não prestaste auxílio à Mirian, tua fiel companheira... – explicou, referindo-se ao acidente no corredor.
Sua voz parecia vinda das entranhas do inferno, e meu cérebro ardia.
Encontrava-me perplexa, tudo o que mais queria era conquistar o grau de sacerdotisa, mesmo que fosse a primeira etapa. Naquele momento, a vida deixou de ter sentido, e eu perdi o controlo.
Meus nervos estavam demasiadamente abalados, minha mente, confusa e, junto à grande-mãe, encontrava-se o espectro de Mirian a olhar-me, severa.
Num ímpeto de fúria, ataquei-a descontroladamente.
– Bruxa! Que os raios te partam ao meio! Que o templo desabe inteiro sobre tua cabeça! – gritei, nervosa.
Não sei se golpeava a grande-mãe ou se atacava Mirian, pois suas fisionomias se misturavam, rindo do meu descontrole. Meus gritos atraíram serviçais, que me imobilizaram e me retiraram dali rapidamente.
A grande-mãe, descabelada pelo ataque, não conseguia explicar o ocorrido. Surpresa, sem piedade alguma, ela sentenciou, chamando-me louca.
O fato teve assustadora repercussão no Templo e acabou por sair das portas para o grande público, atingindo várias camadas de serviçais.
Estava para sempre perdida.
Ingressara ao noviciado como filha do Faraó, o que me havia facultado determinadas regalias, e agora, meu pai encontrava-se doente, bastante debilitado para se preocupar com minha pessoa.
Todos se voltavam para a sua despedida. Sem dúvida alguma, não era o momento ideal para qualquer reivindicação de minha parte.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 27, 2023 9:13 am

Perdi as benesses que me mantinham no patamar da classe nobre do Egipto e, tal qual a uma escrava comum, isolaram-me para tratar daquela enfermidade. Levaram-me para lugar distante e desconhecido, onde permaneci em semi-cativeiro. Era uma espécie de abrigo para pessoas doentes e sem família. Os que se encontravam fortes o suficiente podiam sair. A discriminação, no entanto, era medonha, e ninguém se arvorava em deixar aquele redil, receoso da sociedade e da sua indiferença.
* * *
Relutei contra a minha situação, alegando ser filha do Faraó, mas não obtive crédito algum. Meu pai encontrava-se muito doente e inacessível, a guarda protegia todo o palácio, e os médicos impediam qualquer aproximação.
Semanas se passaram, e fui totalmente esquecida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 27, 2023 7:34 pm

Capítulo 17 – A PASSAGEM DO FARAÓ
“Sem dúvida, as falhas do passado recaem sobre nós com todo o seu peso e determinam as condições de nosso destino.”

A alimentação era tão pouca para tantos doentes que a escassa guarda fechava um olho para os fugitivos.
Naquele dia, os guardas haviam arrefecido seu controle, e ninguém nos impedia de sair. Armei-me de coragem e me afastei do desagradável local. Por sorte, encontrei um bando de ciganos que me deu asilo e com ele parti para Tebas, livrando-me daquele antro de dementes.
A terra dos Faraós, abarrotada de estrangeiros, sofria mudanças radicais. O grande Pai agonizava em seu trono de ouro.
Ao adentrarmos em Tebas, percebi algo inusitado.
O povo, fora do Palácio, aguardava a fatal notícia que paralisou a metrópole, pois todos dependiam do Faraó.
Despedi-me dos ciganos, confusa.
– O Faraó fará sua passagem! – exclamavam nas ruas.
A notícia causou profundo silêncio, silêncio esse quebrado por um cortejo de carpideiras que gritavam desconsoladas.
Agourentas e negras, as mulheres carpideiras dirigiam-se à casa real. Ao vê-las, senti súbito mal-estar, como se o mundo estivesse prestes a desabar. Estarrecida com a sucessão dos fatos, não sabia o que pensar, porque eles me atingiam profundamente. Sem o amparo de meu pai, o que seria de mim? Onde estaria minha mãe? Que ironia do destino, logo agora que voltava!
Lembrei-me dela, justamente no dia em que atravessamos de mãos dadas a rua que dava acesso ao Palácio. Encontrava-me agora na estaca zero de minhas expectativas. Recordei-me do Sol, que brilhava como nunca, e que, agora, me parecia opaco.
Olhei para o alto do firmamento, buscando o disco solar, e, apesar do calor, avistei apenas o clarão: o tempo estava abafado, cheirando à morte.
Pressenti que nada seria mais como antes. Nem o brilho do Sol, nem o brilho do Paizinho.
Nem o Egipto seria o mesmo depois de Thutmés, o guerreiro de aço. Meu pai, que parecia eterno, acabara-se como todos.
Como podia o Faraó morrer?
Visualizei os colossos enfileirados. Os belos jardins repletos de buganvílias ornamentavam os templos. Havia prosperidade no ar, trabalhadores incansáveis, que abasteciam os celeiros reais, transmitiam energia. Jamais se viram tantos escultores transformando pedras brutas em belas estátuas. A arte egípcia atingia seu auge na delicadeza dos contornos e na expressão mística de seus rostos cunhados em pedra. A nossa vida era retratada em sua lirial singeleza.
Belíssimos jardins enfeitavam as paisagens de Tebas, que se rivalizavam às de Memphis.
Thutmés III, inimigo implacável da antiga faraona, teimava em destruir seus monumentos. Implacavelmente, destruíra quase todas as estátuas de Hatchepsut, vingando-se daquela mulher que tanto o humilhara.
Dedicou-se ferreamente em anular a grande matriarca de Tebas, como se fora necessário. Pobre Paizinho, em cujo reinado, efectuara tantas conquistas! Thutmés havia tornado o Egipto o reino mais poderoso de todas as civilizações, só isto o imortalizaria. No vale do Nilo, na fertilidade de seus celeiros, na expansão de seu território, depositara a sua fé de guerreiro. Nem o brilho real da Rainha do Egipto apagaria o esplendor de suas acções!
O Baixo e o Alto Egipto pranteavam o Faraó e seu reinado de três décadas. Thutmés, após ter conquistado o Mediterrâneo, afastara-se das guerras para gozar seus últimos anos no incentivo às artes egípcias, na construção de templos, onde jovens, como eu, desenvolvíamos os valores espirituais para a honra de nosso país.
Jamais se viu tantos estudantes dedicados! Thutmés desfrutava da convivência com seu filho amado Amenhotep, preparando-o para o futuro reinado. Adorado pelo povo, tornara o Egipto tão formoso, que nem Babilónia se lhe igualava em beleza.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 27, 2023 7:34 pm

Capítulo 18 – DEIR EL-BAHARI
“Por mais admirável que possa parecer à primeira vista, a dor é apenas um meio de que usa o Poder Infinito para nos chamar a si e, ao mesmo tempo, tornar-nos mais rapidamente acessíveis à felicidade espiritual, única duradoura.”

Deir el-Bahari guardava colossal construção destinada às exéquias do grande rei, enquanto que propositadamente esquecido se encontrava o túmulo de sua inimiga, parcialmente demolido.
Sicómoros e palmeiras emolduravam os jardins do Palácio, guardados por extenso muro de pedras.
Nómadas do Saara, oriundos das regiões da Líbia, adentravam os territórios egípcios. As tendas espalhadas comprometiam a paisagem calma do deserto. O vale da Rainha tornara-se chamariz de piladores estrangeiros, pois a escassa guarda era insuficiente para defender tão grande território.
O velho Egipto, com suas portas escancaradas para os forasteiros, entrava em nova fase.
Sem rumo, fui para Deir el-Bahari, cujo abandono era visível. O grande palácio, danificado pela inveja e vingança de meu pai, enchera-se de viajantes em busca da próspera região e de escravos hititas que se escondiam dos trabalhos forçados.
Alguns velhos oficiais, apegados ainda à memória da Rainha Faraó, ali permaneciam, defendendo, com a própria vida, seus tesouros incontáveis. Restava-me apenas este antro de ladrões, onde me abriguei até que a roda do destino novamente girasse em meu favor.
Linda estátua da Faraona chamou-me a atenção, Hatchepsut, Filha do Sol. Seu olhar distante pareceu, por um momento, fixar-se em mim, rindo de minha desdita.
Senti um arrepio seguido de tremor. Apesar de jamais tê-la visto, secretamente cultivava admiração por sua ousadia e sua grande inteligência, pois minha mãe, quando morara no Palácio real, desfrutara de sua convivência e, constantemente, comentava com tia Sarah sobre sua actuação e como havia perseguido Thutmés e todos que o defendiam.
“Nem os mortos descansam! Continuam no além-túmulo sufocados por sua vingança e suas preferências!” – pensei, sentindo na própria epiderme o mistério que continuava naquela cidade repleta de histórias. O vale dos Reis enchia-se, igualmente, de artesãos compenetrados em destruir a lembrança da Rainha rival de Thutmés, para colocar sua imagem em outro colosso ali levantado.
* * *
No entanto, nada daquilo me fazia sentido. Precisava encontrar um meio para sobreviver e fazer valer meus direitos como filha do Faraó. Não me esquecia de Mirian, e minha alma somente descansaria após saber seu paradeiro. Ninguém desaparece assim, sem vestígios.
Eu era agora uma pessoa comum. Aproveitei a relativa liberdade enquanto todos se voltavam para as exéquias de Thutmés.
Envergonhada de minha própria condição, não tive vontade de procurar minha mãe e nem minha tia, pois, perante os fatos, não suportaria mirar os olhos de mamãe. Talvez, quando me recuperasse da minha desdita, pudesse retornar à casa materna...
Expulsa do Templo, mal vestida, não sabia como prosseguir, pois não tinha amigos.
Servi-me da confusão instalada próximo ao Palácio e procurei conseguir um favor. Tentei penetrar no Palácio Real, mas fui barrada. Não me dei por vencida e mostrei ao guarda o meu amuleto real, a preciosa oferta do Faraó. Meu amuleto abriu as portas do Palácio, porém, maltrapilha como estava e sob o olhar de desconfiança do oficial, fui encaminhada aos cómodos inferiores. O Egipto cobriu-se de luto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 27, 2023 7:35 pm

Capítulo 19 – FILHA DE SETH
“Gozos e sofrimentos, prazeres e dores, tudo isto, Deus distribuiu na existência como um grande artista que, na tela, combina a sombra e a luz para produzir uma obra prima.”
Passaram-se algumas semanas e, naquele alvoroço, procurei o Templo às escondidas, a fim de obter notícias de Tamer, acreditando que Mirian estivesse morta.
As portas do Templo da Iniciação encontravam-se cerradas para mim. Conhecia os caminhos que me levariam a Tamer. Após espreitar por algumas horas, encontrei o moço fora do Templo.
Quase não o reconheci, pois tinha a cabeça raspada e emagrecera.
Saudei-o sem graça, mas percebi certa desconfiança em sua saudação. Sua indiferença era pior que a morte.
Envergonhava-me de meu gesto perante o tribunal de seu olhar.
Sem muito assunto, indaguei sobre José e fui informada que ele voltara para o seio da família, porque seus pais necessitavam de sua presença, e assim que terminasse seus compromissos familiares, retornaria ao Templo.
Quantas mudanças em tão pouco tempo... – reflecti por um momento.
Eu mesma me sentia outra pessoa, amarga e envelhecida.
Observei Tamer, e a paixão violenta, que me suscitara a ponto de perder o que me era mais importante, o meu sacerdócio, invadia-me novamente o íntimo. De qualquer maneira, sua indiferença me magoava, e eu estava muito mal para lhe insinuar qualquer interesse feminil.
Não entraria no Palácio real como princesa e nem como uma sacerdotisa. O que me restara afinal?
A mistura de ódio, decepção e temor acabou por sufocar aquele sentimento estranho que agora desejava expulsar da minha alma com toda a força do meu ser.
Estaria eu recuando?
Estaria eu me punindo?
Tudo o que mais queria era o seu amor, o seu reconhecimento.
Tudo o que eu mais queria esvaía-se como fumaça ao sopro do vento.
Perdera a vivacidade, tornara-me cega para a beleza, para a arte.
Até que ponto o espectro de Mirian se interferia entre nós?
Sentia meu sorriso amargo.
Ferira a pura lei que imperava em nosso templo.
Não matarás!
Não vingarás!
Sentia-me a própria filha de Seth, ofendera a ordem da divindade suprema.
Aquilo estava marcado em minha mente, em meu Espírito.
Tentei me controlar, comportar-me o mais natural possível, enfim, encontrava-me certa de que Mirian estava morta.
De certo modo, a minha presença o incomodava e me pareceu esquivar-se, porque mal respondia às minhas indagações.
Lacónico e sério, Tamer parecia uma esfinge. Seu silêncio desassossegava-me, e acabei desabafando:
– Lamento, Tamer... Deves estar arrasado com a morte de Mirian!... – arrisquei, procurando notícias concretas sobre ela. Seu olhar, como se fosse uma águia, voltou-se severo, e me arrependi de ter falado.
– Graças a Anassés, Mirian safou-se da morte instantânea, porém, sua saúde necessita de cuidados maternais, e ela voltou para a casa de seus pais, adiando seus votos sacerdotais. É uma pena, porque pretendia unir meu destino ao dela tão logo nos fosse permitido pela lei – sua voz estava amarga e quase me culpando.
Tal notícia teve o efeito de uma descarga eléctrica sobre mim.
Engoli seco para não revidar.
– Tão logo possa, pretendo ir ao seu encontro... – falou com certa amargura na voz.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sáb maio 27, 2023 7:35 pm

Julguei que Mirian estivesse morta, quase não me recuperei do susto e por pouco não me entrego, tamanha era a minha decepção.
– Acreditei-a morta! Tal fato não pode ser! – exclamei, entre nervosa e desapontada, sem me dar conta de que era observada.
– Não entendi, Smegrituh! – estranhou Tamer sem compreender minhas palavras e nem o motivo de meu nervosismo.
Por um minuto, colocava tudo a perder, mas em tempo recobrei meu equilíbrio.
– Não, não... – hesitei, porém, logo me corrigi. – Soube que ela havia morrido, mas fico feliz com esta notícia, Tamer... Que bom, ela estar viva!
Tamer olhava-me desconfiado e, mesmo que a curiosidade me inquietasse, preferi silenciar... Comecei a tremer.
Terrivelmente aborrecida, apressei em me despedir, compreendendo que, naquele momento, qualquer conversa a mais seria desnecessária, e eu poderia sofrer novamente o mesmo ataque que me tirara o sacerdócio. Meus nervos abalados poderiam me colocar a perder a qualquer momento. Afastei-me imediatamente, deixando o rapaz intrigado com a minha atitude.
Mirian havia surgido à minha frente, junto à grande-mãe e, certa de que não era ilusão, preferi pensar nisto depois. No momento, precisava me organizar, buscar um meio de fazer valer os meus direitos.
* * *
A dúvida me avassalava.
Meu destino, filha de Thutmés III, o grande pai, estava para sempre comprometido.
Quantas histórias eu ouvira, lendas que cercaram minha infância de temores, sonhos e visões futuras.
Havia o Salvador, que viria no carro de fogo, e sua luz ofuscaria o mais brilhante Sol.
Eu temia Osíris, e Seth convidava-me para permanecer na fileira de sua guarda.
Atormentada, certo dia, busquei a Grande Esfinge do Vale na tentativa de desvendar o que o futuro guardava para mim e Tamer.
Quem sabe, algum astrólogo, através de meu horóscopo, favorecesse-me o destino?
No entanto, as portas do futuro haviam se cerrado para mim, porque recebi o conselho de que aguardasse outra ocasião.
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