LUZ ESPÍRITA
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Série Conde J. W. Rochester - O Exílio / Arandi Gomes Teixeira

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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 9:26 am

O Exílio
Arandi Gomes Teixeira

J. W. Rochester (espírito)

1. MEMÓRIAS E REFLEXÕES
2. O GRANDE CIRCO MONTEVERDI
3. DEODATO
4. AVANT-PREMIÈRE
5. O SENHOR DO BURGO
6. MUSTAF’ZARIK
7. MOD
8. O GUERREIRO ETÍOPE
9. PADRE LEOPOLDO E SÃO MARTINHO
10. SERIGUELLA
11. COSETTE
12. JENNIFER
13. OS ELEMENTAIS
14. OS CIGANOS
15. THALMAR
16. MENTHOR
17. VOX POPOLI, VOX DEI
18. HOMENAGEM AOS SALTIMBANCOS
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 9:27 am

MEMÓRIAS E REFLEXÕES
Iluminando nossos passos no exercício do amor maior, aprenderemos cada vez mais a fazer a vontade do Pai. Seu amor há muito nos acompanha e suas bênçãos jorram incessantes sobre nós.
Seu filho, Jesus, governador deste planeta que ora nos abriga, acompanha-nos os diversos empreendimentos, na doce expectativa de nossa redenção.
Seu incomparável amor vela por nós.
De muito longe viemos. Há muito, percorremos estas trilhas terrenas.
Vindos do Criador para uma evolução constante, principiamos na ignorância, simples de coração, numa ingenuidade natural.
Avançando, paulatinamente, impulsionados pelo instinto, alcançamos a idade da razão, na conquista do livre-arbítrio, sagrado e intransferível, que passamos a exercitar.
Palmilhando lugares inusitados, vivenciamos situações sui generis, nas diferentes molduras que as sagradas oportunidades nos ofereciam, nos posicionando de acordo com as nossas escolhas, diante das circunstâncias que se nos apresentavam e, quase sempre, explodíamos nas paixões nascentes que irrompiam das nossas almas, como as lavas de um vulcão, saídas das entranhas da Terra.
Todavia, submetidos à poderosa vontade do nosso Criador e às Suas Leis Imutáveis, porque perfeitas, fomos aos poucos compreendendo as causas e os efeitos das nossas existências, e muto principalmente os seus veros e sagrados objectivos.
Nos albores da razão, lutamos selvagemente:
Por alimento, na disputa dramática dos sítios onde queríamos permanecer, ou pela satisfação dos nossos desejos primitivos.
Estes comportamentos nos exigiram milénios na apuração da sensibilidade, exercitando sentimentos, rumo ao porvir de perfeição que é o destino de cada Espírito. Nas reencarnações sucessivas, gemendo de dor ou grunhindo de prazer, fomos modificando paulatinamente os nossos corpos físicos, aprimorando-os, enquanto ensaiávamos os primeiros passos rumo a um maior discernimento.
A morte sempre foi das experiências mais dolorosas, em todas as épocas. Ela nos surpreendia e revoltava, porque na perda daqueles que julgávamos possuir, nossos corações se confrangiam.
Como entender? Aquele que antes se movimentava e era connosco, por alguma razão silenciava, tornando-se imóvel, rígido...
Nestes momentos de dor, olhávamos para o alto sem entendimento. No espaço infinito, coalhado de nuvens por vezes brancas, por vezes escuras, uma grande luz nos cegava com os seus raios, enquanto brilhando intensamente, indiferente e impositiva, parecia dizer-nos: “Não me desafiem!”
Todavia, enviava-nos também calor, tornando-se natural para as nossas vidas a sua presença.
Das árvores colhíamos folhas odorosas, gratas ao paladar, e também os seus frutos. Destes, alguns nos agradavam, outros não.
Muitos alimentavam e outros levavam àquela trágica inércia que já conhecíamos e que nos causavam pavor. Desta forma, aprendemos a escolhê-los.
Pulando e gritando estridentemente, expressávamos as nossas sensações e, cansados do esforço, dormíamos em esgares que já se ensaiavam em sorrisos.
Nos alimentávamos das carnes dos animais que abatíamos e com as suas peles e couros nos cobríamos, aquecendo-nos.
Frequentemente, daquele infinito que era, afinal, o nosso tecto distante, caía água em abundância que nos molhava e escorria pelo chão, tudo encharcando. Aprendemos a armazenar o precioso líquido. Neste afã, quase todos se uniam e trabalhavam juntos.
Festejávamos estas ocasiões, gritando e batendo mãos e pés, ruidosos, jogando água uns nos outros, numa patente alegria.
Estas acções geravam entre nós um mútuo entendimento, numa forma primitiva de socialização.
Em alguns lugares, serpenteando e coleando sobre o chão, a água representava caminhos e ali existia sempre.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 9:27 am

Nestes sítios passamos a permanecer mais tempo.
Seleccionando pedras e as amontoando, na intenção de espaços e formas, construímos moradias que já se diferenciavam das árvores e das cavernas de antes. Com mais segurança e mais conforto, começamos a nos agregar.
Milhares de anos se passaram, enquanto os nossos cérebros também se desenvolviam, permitindo-nos acções planeadas e mais livres.
Exercendo o direito do mais forte, determinamos quem habitaria connosco e, por estes, lutamos ferozmente, porque faziam parte das nossas existências e interesses, na defesa daquilo que tínhamos adquirido. Havia, então, constantes derramamentos de sangue, porque os demais eram nossos inimigos e ameaça constante.
Daquele infinito que nos olhava, indiferente, caíam repetidas vezes o fogo e a morte, no ribombar dos trovões e nos raios das tempestades que nos apavoravam.
Nestes momentos de medo diante do inacessível e incompreensível, no instinto de sobrevivência, suspeitamos da existência de um Grande Poder. Passamos, então, a temê-lo, amedrontados e submissos, e mais que isso, desconfiados e inseguros.
A morte e os seus mistérios já eram para nós realidades obscuras que pareciam estimular, de forma mágica, o nosso subconsciente. Deste emergiam conhecimentos infusos, esquecidos transitoriamente, pela necessidade de um trágico recomeço.
Criamos rituais de adoração, na tentativa de amenizar os males que nos alcançavam. Incensando o Grande Poder, ofertávamos o de mais valioso para nós: pedras, flores, frutos, objectos e animais.
Aqueles que tinham a incumbência da entrega simbólica, em meio a gestos e palavras articuladas com ênfase, eram escolhidos e autorizados para tal.
Estes criaram para si mesmos uma aura de poder e de mistério, ganhando notoriedade e a subserviência dos diversos grupos.
Crescendo, uniram-se, formando grupos fechados para traduzir as vontades do Grande Poder ou para formular os pedidos.
Com o passar do tempo, aproveitando-se da importância que todos, de modo geral, atribuíram prerrogativa de conselheiros e juízes nos graves cometimentos das tribos.
Distanciando-se do vulgo, cada vez mais, eles viviam mergulhados em mistérios alimentados pelos líderes.
Quando esses ‘intercessores’ incomodavam, os exterminávamos.
Assim, surgiu a ideia de oferecer ao poder desconhecido, que estava acima das nossas possibilidades de dominação e entendimento, vidas humanas, entregando-lhe o sopro que anima.
Por certo, isto o agradaria mais, enquanto servia aos desejos de muitos, fazendo desaparecer os que incomodavam.
Elegíamos, cerimoniosamente, as vítimas e esse poder de decisão nos embriagava.
Os sacrifícios eram levados a efeito em local previamente escolhido. Neste afã, nos empenhávamos, ‘zelosos’ da responsabilidade vaidosa do lugar que se tornava ‘sagrado’, assim mantido numa aura de idolatria e pavor.
Geralmente, as vítimas eram sacrificadas num lugar exótico ou sobre pedras de formas bizarras, no alto de quedas d’água, no topo de montanhas, em grutas sombrias, ao pé de uma árvore frondosa ou em lugares desertos.
Uma das formas mais usuais de execução era atirar a vítima do alto de uma grande elevação num grande abismo. Ao baque surdo do corpo, irrompiam-se os nossos gritos de vitória.
Havia o cuidado de decorar o cenário tétrico, onde a multidão era obrigada a comparecer. Isto funcionava como forma de intimidação.
Nestes tenebrosos espectáculos, ouviam-se exclamações de horror, berros vitoriosos ou gritos histéricos, num rumor assustador.
Ingerindo diversos sucos de vegetais e frutos, descobrimos alguns que nos proporcionavam leveza e certa insensibilidade, alheando-nos das dores físicas e das tristezas.
Aprimorando estas beberagens, delas fizemos uso reiteradas vezes em nossas urgentes necessidades de balsamizar os nossos sofrimentos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 9:31 am

Para impedir as contrariedades que as ‘vítimas eleitas’ nos causavam nas suas tentativas para sobreviverem, forçávamos que bebessem o líquido miraculoso em doses fortes, tornando-os indefesos.
Cegos e selvagens, fomos planeando e executando enorme variedade de rituais mórbidos que submetiam o vulgo pelo pavor que causavam.
Mas, pobres de nós, o que fazíamos? Instalávamos as nossas antigas imperfeições na demonstração da nossa ambição, vaidade e orgulho desmedidos.
Por força das circunstâncias, descobrimos que éramos diferentes da maioria: bem aquinhoados fisicamente, mais inteligentes e mais capazes.
À primeira necessidade ou diante dos perigos, tínhamos recursos maiores, tomando atitudes rápidas e adequadas, como se a isso já estivéssemos acostumados...
E de facto era assim!
Vínhamos de muito longe e albergávamos no cérebro e no coração experiências que aqui ainda estavam por se fazer.
Que grande descoberta! Isto nos fortaleceu ainda mais, aumentando em muito a nossa natural ousadia. Todavia, na intimidade do nosso ser, instintivamente, quanto sofríamos pela vergonha do exílio, na dolorosa saudade desses mundos mais adiantados e das afeições que lá deixamos, talvez para sempre...
Empedernidos, orgulhosos, vaidosos, ambiciosos e egoístas, recriamos todos os males, aos quais estávamos habituados. Os ‘Filhos da Terra’ não possuíam defesas contra a nossa patente intelectualidade. Assim, submetíamos aqueles que aguardavam muito justamente orientação e protecção no desenvolvimento das suas ideias ainda rudimentares.
A Providência Divina, porém, nos impulsiona ao progresso. E, através das vidas sucessivas, fomos exercitando situações diferentes: de líderes tiranos a escravos; quantas vezes prisioneiros e flagelados. Por nossa vez, tínhamos de baixar a cabeça.
Arrogantes, era-nos impossível a submissão. Quase sempre, pagávamos com a vida o preço da rebeldia, diante das mesmas leis estabelecidas por nós em existências anteriores.
Cumprimos reiteradas vezes a Lei de Talião. Vidas difíceis e muito sofridas! Trocávamos ora os mantos de púrpura por andrajos de mendicante, os palácios pelos tectos das estrelas, os manjares por restos de comida, as joias pelos trapos que mal cobriam os nossos corpos. A protecção e a defesa pela constante insegurança, de quem nada tem e nada espera... Os tronos de ouro e os leitos confortáveis pelas calçadas nuas e geladas, as luxuosas moradias pelas furnas escuras, a acomodação e o conforto pelo desespero na defesa da própria vida... As reverências por agressões desrespeitosas.
Mudávamos de cor de pele, cabelos dos mais variados, formas físicas díspares, idiomas outros, crenças múltiplas...
Reiteradas vezes, numa solidão insuportável de quem não mereceu sequer um ente querido, sofremos as penas do Amenti...
Mas, quando de novo no poder, recomeçávamos a destruir na imposição das nossas necessidades ilusórias, diante daquilo que desejávamos, provando que éramos ainda os mesmos...
Apesar de tudo, como sempre evoluímos, gerávamos para nós mesmos provas e expiações que nos arrancavam lágrimas de dor e de arrependimento.
Algo nos dizia que após o fim da vida cairia o inevitável esquecimento. E, no anseio de nos eternizar, criamos as diversas artes.
Ainda hoje, quantos miram-se a si mesmos, fazendo críticas acerbas ou dispensando-se louvores injustos!
Monumentos pomposos guardam ainda os registos da passagem pela Terra dos tiranos de todos os tempos.
Não nos importavam absolutamente aqueles que sucumbissem sob o látego da nossa tirania.
Nada era suficientemente glorioso para retratar e eternizar a nossa história, registando-nos o poder.
Oh, Deus, quantos equívocos!
O chicote estalava nas costas dos escravos, a fim de que eles se superassem no exercício do trabalho que lhes exigíamos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 9:31 am

Todavia, que tolos éramos! Pouco tempo depois, às vezes sob o reinado da mesma dinastia, à qual tínhamos dado início, sofríamos os mesmos flagelos, vivenciando a dolorosa sintonia da Lei de Acção e de Reacção! Rilhávamos os dentes de dor e de ódio, sob o jugo daqueles que apenas seguiam fielmente as leis estabelecidas.
Regressando ao plano espiritual, éramos novamente instruídos para futuras e redentoras jornadas. Isto, após sofrermos o assédio selvagem daqueles que nos tinham precedido no túmulo por nossa culpa.
O tempo que isso durava? Difícil precisar!
Quando, exaustos de nos debater, clamávamos por auxílio.
Éramos atendidos com outra oportunidade de reencarnação, em meio a promessas de corrigenda.
Mas, qual! Não nos emendávamos!
Insatisfeitos com os espaços conquistados, saíamos armados até os dentes para arrebatar alhures as terras e os bens alheios, trazendo sempre saques e muitos escravos após a destruição criminosa.
Desta forma, geramos as guerras que perduram até os dias de hoje.
Avançando aqui e ali, subvertemos a ordem, cada vez mais sedentos de poder.
* * *
Divisando tristemente estes passados, ficamos perplexos connosco.
Felizmente, acima das nossas frágeis vontades, de moldura em moldura, fomos enfim nos inclinando à razão e ao bom senso.
Hoje, com outra proposta de vida, nos revoltamos contra aqueles que ainda agem no mal e, em meio a julgamentos precipitados, pedimos a pena capital para os criminosos, imaginando com isso nos livrarmos deles definitivamente.
Ledo engano! Sem o corpo de carne, eles mais facilmente nos perseguirão com o seu ódio, actuando com facilidade no campo das nossas múltiplas imperfeições morais e criando-nos tormentos sem conta.
O bem e o mal prosseguem além da vida física. Há que se reeducar os homens! Mais que nunca é preciso trabalhar, investindo-se corajosamente na regeneração desta humanidade.
Neste contexto terrestre, mesclado de justiça e de injustiça, virtudes e vícios, amor e desamor, honestidade e corrupção, quando vemos seres humanos desorientados porque agredidos e desrespeitados nos seus mais lídimos direitos, indagamos:
– O que esperar de criaturas que jamais contaram com o amor e o respeito do mundo e dos seus semelhantes?
Precisamos tomar do arado e preparar a terra para um novo e luminoso plantio de sementes sadias e produtivas, enquanto resgatam-se, caridosamente, aqueles que se desviaram do verdadeiro caminho.
Este, um sagrado dever; esta, a nossa tarefa.
Em vez de condenar, é preciso pesquisar com cuidado e isenção de ânimo a história daqueles que cometeram erros clamorosos.
Descobriremos, sem dúvida, como pano de fundo, um contexto altamente desestabilizador...
* * *
Usando a força e os conhecimentos intuitivos que trazíamos dos nossos orbes de origem, desenvolvemos as invenções de todos os tempos. A princípio inventamos aquilo de que necessitávamos.
Mas... oh, Deus! Inventamos também instrumentos de destruição e de torturas!
Sequiosos de poder e ávidos de glórias, ao longo dos milénios, extinguimos populações inteiras.
No nosso rastro, a fumaça da destruição, a dor.
Por nossa vez, éramos também surpreendidos pelo ataque feroz de outras tribos guerreiras no exercício das suas vinganças e ainda hoje este contexto deplorável sobrevive na Terra.
De forma dantesca fomos exercitando a nossa inclinação bélica, esquecidos que o vergonhoso exílio nos requisitava um comportamento diferente, na necessidade urgente de transformação íntima.
A bem da verdade, alguns desde o início fizeram bom uso das oportunidades recebidas e regressaram ditosos aos seus mundos de origem.
Enquanto aqui viveram, nós, que os odiávamos, criamos para eles todas as formas de suplícios, mas eles desdenharam nossa pequenez, gloriosos e iluminados.
Pereciam nas nossas mãos cruéis abençoando-nos e perdoando-nos, por vezes entre cânticos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 9:31 am

Hoje, pedimos-lhes humildemente perdão.
Todavia, naquele tempo era assim que vivíamos. Julgando-nos deuses terrenos, submetemos e sacrificamos também aqueles que julgávamos inferiores, considerados por nós a escória do mundo.
Afinal, pensávamos que o mundo nos pertencia, porque quase tudo era fruto dos nossos cérebros brilhantes.
Apesar da nossa obstinação no mal, com o passar do tempo, transitamos por civilizações mais organizadas.
Algumas promulgaram leis que são conhecidas e cumpridas até hoje. Das atitudes cruéis passamos às reflexões, agindo e caminhando mais tranquilos, mais equilibrados.
Lamentável notar que ainda hoje existem seres humanos que parecem saídos das cavernas, desprovidos de sentimentos, a externarem as espessas trevas das suas almas.
Para estes, o “pranto e o ranger de dentes”, tais quais nós vivenciamos dentro da Lei.
Na acústica das nossas almas, soam ainda as vozes dos missionários de Deus a admoestar-nos a cada nova desencarnação:
– Oh, anjos em potencial, caídos no inferno pela necessidade do recomeço! Por que não vos submeteis à grande força criadora?
Seres ainda fracos e rebeldes, adúlteros e perversos, julgais tomar nas vossas mãos as rédeas deste mundo que vos recebeu para a vossa redenção? Por que desprezais tantas oportunidades?
O Senhor de todos nós vigia e espera!
Atentai para os vossos gloriosos destinos e não volteis as costas para a misericórdia divina!
Filhos, despertai para o bem, despertai para o amor!
Aproveitai as diversas oportunidades para vos redimirdes!
Um futuro de paz e de progresso vos acena! Exercitando as vossas antigas imperfeições, retardais um progresso que será fatal! Amontoais brasas sobre as próprias cabeças!...
Inúteis, naqueles tempos, tais conselhos... Éramos cegos e surdos da alma...
Remontando às nossas lembranças mais antigas, já possuíamos alimento, moradia, fogo, armas, rituais, companheiros, parentes e despojos que aumentavam a nossa riqueza, fruto de saques.
Fomos descobrindo ao longo dos séculos os vícios que nos denunciavam as múltiplas imperfeições.
Que conceitos possuíamos da vida? Os mais rudes possíveis!
Albergados em corpos animalescos, intuitivamente humilhados pela vergonha do exílio, exteriorizávamos a imperfeição espiritual que nos servira de passaporte.
Passamos a moldar imagens, ídolos, semelhantes ou não a nós, e fazíamos petições descabidas e constantes.
Conscientes de que depois da morte algo mais subtil sobrevivia, criamos os rituais e as técnicas de reverência post-mortem, mas estes louvores tumulares eram privilégio de poucos, somente dos poderosos.
As diversas castas foram sendo estabelecidas e mantidas, para gozo e satisfação dos poderes dominantes, numa natural egolatria.
As superstições foram intencionalmente produzidas para as mentes tardias.
Quantas vezes nos assaltavam a vergonha e o medo! Mas, expulsando a voz da consciência, prosseguimos no mesmo diapasão, criando para nós mesmos dores e flagelos incontáveis para o longe dos tempos...
Conscientes daquilo que éramos e do que deveríamos ser, quase sempre numa dolorosa dicotomia, algumas vezes externávamos melhores disposições, que em verdade eram reflexos condicionados, exercitados em vidas muito sofridas, que tolhiam sobremaneira nosso infeliz jeito de ser.
Isto se dava, geralmente, no aconchego de corações mais elevados que nos amavam e investiam na proposta corajosa de nos auxiliar com vistas ao nosso progresso. De alma limpa confessamos que nestas ocasiões, nas quais os céus nos premiaram com afectos abnegados, amenizamos em muito o nosso carácter.
Hoje, mais conscientes, recordamos as palavras: “Só o amor cobre a multidão de pecados”...
Neste mea culpa, nossas lágrimas inundam-nos a alma, gratos ao Criador.
Aquilo que fomos nos nossos orbes de origem seguiu-nos até aqui, denunciando-nos o atraso espiritual.
Submetidos à lei de causa e efeito, nos defrontamos quase sempre com os nossos desafectos, mas... graças aos céus, com muitos afectos também que nos acompanharam neste exílio!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 9:32 am

Abençoados amores! Bálsamo das nossas almas! Faróis que nos levarão a porto seguro!
* * *
Um dia caros leitores, bastante melhorado, em nome da ansiada paz e numa urgente vontade de progredir, grafei páginas e mais páginas de histórias, calcadas em vidas aparentemente esquecidas ou imaginárias.
As revelações e os alertas das nossas antigas mazelas convidavam-me a um esforço cada vez maior, rumo à evolução, e aquilo que começou como trabalho árduo e correctivo transformou-se em exercício agradável para minh’alma.
Estas obras, filhas da razão e do amor, materializam-se sempre através da cumplicidade harmoniosa e sempre bem-vinda daquela que ao longo dos milénios faz parte da minha existência, sendo-me instrumento amoroso e dedicado.
De todos os afectos, este é dos maiores e o mais importante.
Que Deus a guarde e nos mantenha unidos nesta abençoada proposta de redenção.
À nossa volta, um grupo considerável de Espíritos contam connosco na mesma proposta de redenção.
Quando alguns estão ‘prontos’ e libertam-se, outros intensificam o esforço, agregados à massa de exilados, respondendo por seus méritos e deméritos, envolvidos nas suas provas e expiações.
Nesta caminhada solene e por vezes dramática, exercitamos a dor e o amor, num aprendizado espontâneo e intransferível, com a vigilância vestida de esperança e a coragem banhada em muita fé.
Sim, somos os exilados! Aqueles que em prantos receberam aqui novas oportunidades!
Isto inclui grande parte desta humanidade.
Deus, em sua infinita misericórdia, jamais abandona os seus filhos; ampara-os, incansavelmente, com a sua solicitude.
O caminho tem sido longo e já foi mais sofrido.
A esperança visita nossa alma: a cada raio vivificante de sol, a cada lufada de vento, a cada pingo de chuva, a cada novo ser que chega à Terra permitindo-nos a convivência...
No piscar das estrelas que nos enche de saudades de outro mundo mais feliz... Na vida que retorna em nós mesmos a cada nova oportunidade.
Da programação extensa que trouxemos cumprimos boa parte.
Que Deus nos conceda, agora e sempre, os recursos para a concretização dos nossos anseios espirituais.
Através deste preâmbulo, estamos iniciando mais um romance, no qual os personagens movimentam-se de acordo com os seus níveis de evolução espiritual, nas suas veras intenções, com respeito a tudo que os cerca.
Sem sermos vistos ou sequer pressentidos, vamos surpreendê-los actuando, passo a passo, nessa caminhada redentora e fatalmente nos depararemos connosco mais uma vez.
Que o Senhor nos abençoe e proteja nesta peregrinação milenar!
Seguindo os passos e os exemplos do Divino Cordeiro, palmilharemos caminhos seguros, rumo à angelitude que nos acena.
Por enquanto, nos contentaremos com a consciência do dever bem cumprido nos diversos departamentos da vida.
Rogamos as bênçãos dos céus na execução dos desígnios do Senhor, porque “o mais nos será concedido por acréscimo de misericórdia”, como disse Jesus.

Shallon!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 9:32 am

O GRANDE CIRCO MONTEVERDI
O Grande Circo Monteverdi chegou a Flandres há algumas semanas e foi rapidamente montado.
Saltimbancos em diferentes caracterizações saíram pela cidade, aos magotes, convidando e proclamando a alegria ambulante que chegava para festejar a vida, fazer sorrir e surpreender com novidades trazidas de países distantes e de lugares exóticos...
– Serão exibidas criaturas diferentes de todas as que foram vistas até hoje! – apregoam. – São figuras dignas de apreciação! Terão os corações saltados pelo impacto, pela surpresa e pelo medo! Um espectáculo inesquecível!...
Com frases de efeito, matracas e sinos, em meio a gestos mirabolantes, os arautos pintavam um quadro de beleza e de horror imperdíveis.
As crianças acorreram, agitadas, acompanhando o cortejo, misturando-se ao mini-espectáculo, prenúncio da grandiosa apresentação.
Bolas coloridas e confeitos foram distribuídos aos pequenos mais afoitos que se apressaram em pedi-los.
As dificuldades do dia a dia ficarão para trás em função daquilo que virá, colorindo a vida de cada um, como se assim cada qual pudesse, num passe de mágica, esquecer as próprias responsabilidades.
Ao mesmo tempo, a multidão se congraçava, submetendo-se aos encantos da alegria esfuziante daqueles que passavam bulhentos, acenando-lhes com a ilusão...
O circo já fora anunciado. Agora, já saberão onde buscar o mundo do faz-de-conta. No território escolhido, foram criados espaços diversos para moradias, camarins, lugares para higiene corporal, cenários, móveis, os figurinos característicos das múltiplas personagens que serão representadas, as jaulas para os animais e muito mais.
Havia um grande investimento material, físico, emocional, intelectual e financeiro naquele mundo de fantasias.
A iluminação também fora preparada e providenciadas as rações para os animais. A alimentação, quase sempre escassa, será conseguida junto aos moradores da cidade, numa fácil barganha, pela fascinação que os artistas exercem. Sempre fora assim. São endeusados e, não raro, confundidos com os personagens que representam.
Amores de todos os quilates terão início, geralmente na tentativa humana de colorir a própria vida, materializando fantasias. Por estes e outros motivos, quando o circo sair da cidade, ela nunca mais será a mesma!
* * *
Os Espectáculos, que têm a intenção apenas de divertir, deveriam educar aqueles que durante a diversão assimilam imperceptivelmente tudo o que os olhos vêem e os ouvidos ouvem.
Todavia, naquele tempo, com raras excepções, tendiam para o grotesco e para o vulgar. O importante era fazer rir e manter a atenção do espectador, não importando os meios e muito menos as consequências.
* * *
Estamos no início da chamada Era Moderna.
Há pouco deixamos a Idade Média, mas ela ainda não nos deixou!
Inúmeros fatos geram cadeias ligando-nos quase sempre ao nosso sombrio passado.
Idade Média se assemelha a dizer Idade Negra do mundo!
Herança trágica para essa humanidade devedora, no seu constante “amontoar de brasas sobre as próprias cabeças”... Tempo que deixou cicatrizes nos corpos e nas almas... Épocas vêm e vão e os homens pouco se modificam. Andam juntos, mas caminham separados. Fazem parte da inquestionável necessidade de evolução neste mundo ainda de provas e de expiações.
Espíritos que somos, guardamos todos os fatos marcantes das nossas vidas, no exercício do livre-arbítrio, tanto o bem que fizemos como nossas actuações equivocadas perante a lei natural, modificando a nós e o que está à nossa volta, numa responsabilidade que se avoluma cada vez mais, de acordo com a nossa evolução.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 9:33 am

DEODATO
De etapa em etapa, ele vai desenhando no papel, com carvão, o objectivo desejado em traços assustadores.
Sublinha com ênfase deformidades físicas, trabalhadas na intencional atrofia de corpos humanos, para a ‘elaboração’ execrável de monstros. Estes desenhos cruéis causariam pavor nos corações mais insensíveis!
Com um sorriso de escárnio, maquiavélico, Deodato emite sons guturais, cavernosos, na tentativa de se expressar, mesmo que sozinho, sem, contudo, conseguir, por não possuir língua, que lhe fora arrancada pelos carrascos, numa prisão em que esteve meses a fio.
Revoltado, ao sair de lá, jurou vingar-se. E o faz!
Todavia, não podendo alcançar aqueles que o mutilaram, e dando vazão à sua crueldade, ceva-se na mórbida satisfação de concorrer para a existência de trágicas ‘aberrações humanas’...
Em sua brutalidade, ele estende a sua actuação, como conexão nefasta entre aqueles que ‘produzem’ e aqueles que exibem.
São assim vistos em espectáculos deprimentes que arrancam dos espectadores gritos estridentes de susto, pavor, asco. Em alguns, muito raros, exclamações de piedade.
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Série Conde J. W. Rochester - O Exílio / Arandi Gomes Teixeira Empty Re: Série Conde J. W. Rochester - O Exílio / Arandi Gomes Teixeira

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 9:34 am

AVANT-PREMIÈRE
O Circo regurgita de gente. Nas expressões, a ansiedade pela iminente apresentação. A música inunda o ar alegrando os corações e fazendo-os esquecer, mesmo que por momentos, as dificuldades rotineiras.
Ouvem-se a alguma distância, com arrepios, os rugidos das feras, que por vezes sobrepujam os outros sons.
O alarido prenuncia a realização dos desejos na concretização do espectáculo, naquilo que já é esperado e nas surpresas prometidas.
Empolgado, olhos brilhantes, gestos espalhafatosos, com voz forte e entremeada de altos e baixos, de stacattos e de altissonâncias, o arauto anuncia:
– Respeitável público! Hoje, neste circo, assistirão a um espectáculo inédito! A variedade de atracções irá prender a todos nos seus lugares. As poucas moedas investidas lhes darão um retorno inesperado, emocionante!
Antes, uma breve explicação, a respeito de algo que nos toca de perto os corações!
Oh!... Não fôssemos nós, artistas, com a nossa sensibilidade extremamente apurada!... – o arauto leva a mão ao peito, respira profundamente e faz ar de dificuldade em prosseguir. Olha para o alto, suspira, controla-se e de olhar piedoso inicia a prometida explicação:
– Em nossas viagens por continentes pouco conhecidos, nos deparamos com pessoas e costumes muito exóticos. E, dentre estes, descobrimos criaturas profundamente diferentes em suas constituições físicas. Penalizados e compreensivos, oferecemos a elas abrigo, trabalho digno, alimento e paz. Aqueles que as tinham sob a suas guardas demonstraram grande alívio e gratidão por vê-los protegidos.
De viagem em viagem, outras se somaram e hoje elas agradecem por estar em nosso circo.
Não se impressionem! Tudo faz parte de um grande espectáculo.
Desfrutem desta noite inesquecível. Da beleza e de seus contrastes, da alegria e das surpresas que a noite reserva para todos.
Agradecemos desde já a presença de todos!
Assim, o arauto – com uma varinha na mão e vestindo calça listrada, camisa vermelha, casaco preto com bolas coloridas, cartola de cetim com pequena pluma branca na frente, luvas e sapatos bizarros –, cercado pelo corpo de artistas do Grande Circo Monteverdi. Dentre eles, o elegante e empertigado proprietário, senhor Pietro Monteverdi, abriu a noite de espectáculo, inclinando-se todos, fazendo reverência ao público e despedindo-se. Finalizando, em meio a piruetas e gestos estudados, o arauto desaparece por detrás das cortinas.
Os artistas e funcionários, o proprietário e alguns palhaços, de mãos dadas, aproximam-se, inclinando-se diante do público, que os aplaude ao vê-los saírem.
Na plateia, alguns gritam elogios e palavras de ordem, incitando o início do espectáculo. Outros assobiam jocosos.
Logo após o silêncio, na expectativa daquilo que virá. Atentos e inquietos, ansiosos, eles se remexem nos seus lugares.
De súbito, os rugidos das feras enjauladas ecoam fortemente, provocando pavor. Onde elas estarão? Nos olhares de cumplicidade e medo, o receio do desconhecido...
Os pais apertam os filhos de encontro ao peito.
Os pequeninos retêm a respiração, ficam inquietos. Alguns tentam fugir dos colos dos adultos, sendo impedidos de fazê-lo. Reagindo, eles se defendem chorando estridentemente e são duramente admoestados pelos adultos, principalmente por aqueles que não trouxeram crianças e que não querem ser incomodados. Assim, estas crianças são obrigadas a permanecer ali, mesmo contra as suas vontades.
Archotes acesos, espalhados em pontos estratégicos, criam sombras fantasmagóricas. O repicar de tambores, tocados por seis belos jovens vestidos a carácter, na imitação cruel de uma bateria de vanguarda guerreira, dão a impressão de que uma estranha batalha terá início.
Enquanto os sons do repique alcançam os ouvidos atentos e expectantes, alguns archotes vão sendo apagados.
O cheiro da fumaça inunda o ambiente, ardendo nos olhos e nas gargantas.
Um bufão, com roupas estranhas e coloridas, com sininhos em profusão a soarem quando se mexe, surge repentinamente por detrás da rústica cortina e em saltos mirabolantes alcança o centro do picadeiro. Um anão de face envelhecida, debochada e pintada em tons fortes de maquilhagem rosa, impressiona.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 9:34 am

Faz algumas piruetas, requisitando os aplausos que não se fazem esperar.
Fazendo uso de um megafone, ele anuncia a primeira atracção da noite:
– Respeitável público! Apresentaremos, como ouverture deste fantástico espectáculo, a favorita do grão-vizir de Bagdad – a belíssima Dalila!
O público aplaude e ele prossegue:
– Ela, enamorada deste que vos fala, fugiu com o nosso circo e hoje dança para vós! Admirem os volteios do seu corpo escultural, digno do trabalho de um toreuta grego. Sejam bem-vindos à magiadas Mil e uma noites!
Em pinotes o anão desaparece atrás do palco.
Uma música saída de instrumentos orientais faz-se ouvir, primeiramente de forma suave, para depois tornar-se enérgica e altissonante.
Três negros luzidios, nus da cintura para cima, calções bufantes, turbantes na cabeça, entram carregando sobre uma tábua lisa e pintada, estranha beldade vestida de odalisca.
Ela se movimenta, tal qual uma cobra, coleando sobre a prancha, ora levantando-se, ora deitando-se, desafiadora e sensual. Nos seus pulsos e tornozelos, exibe pulseiras douradas enfeitadas de minúsculos sinos que acompanham sonoros os seus movimentos. Depois de caminharem em várias direcções, saudando o público que os aplaude delirante, eles a colocam sobre o chão e desaparecem por detrás das cortinas.
Voluptuosamente, ela dança com suavidade em movimentos lânguidos. Aos poucos, aumenta o ritmo, passando a dançar freneticamente.
Os aplausos explodem, somando-se a gritos elogiosos e tolices debochadas.
Indiferente a tudo, ela prossegue o seu ritual na dança sobre o palco, finalizando depois de algum tempo exânime. Sua difícil respiração demonstra que está viva. Os murmúrios na plateia são inevitáveis.
Aqueles que a trouxeram retornam. Com gestos estudados erguem-na, colocando-a novamente sobre a prancha e antes de saírem requisitam aplausos.
Entregue ao seu delíquio, Dalila parece não ouvir as palmas delirantes e os gritos de ‘bravo’!
Ato contínuo, o bufão claudicante, esquisito e irreverente, reaparece e entre ditos grotescos e saltos exige mais aplausos para a dançarina.
Na verdade, o tempo e o ritmo foram além das forças físicas da bailarina.
Apresentaram-se em seguida: engolidores de fogo, declamadores, atiradores de facas, palhaços, domadores, malabaristas, trapezistas, mágicos, etc.
A cada nova atracção, diferentes músicas e luzes, que são aumentadas ou diminuídas nas lanternas com velas de alcatrão e nos archotes que ladeiam os espaços.
Repentinamente, trombetas são ouvidas em pontos diferentes, ecoando de forma estranha.
O repique dos tambores e uma flauta triste são tocados simultaneamente, parecendo anunciar algo aterrador.
As luzes são diminuídas. Na penumbra, surge um gigante musculoso, vestido em roupas orientais brancas, cinturão largo dourado e turbante branco, no qual refulge uma gema. Nos tornozelos e nos pulsos, grossas argolas douradas. Alguns colares de metal brilhante pendem-lhe do pescoço taurino.
Pés descalços, ele caminha lentamente.
Nas suas mãos, a ponta de uma corda grossa, que ele puxa devagar de dentro da cortina fechada.
Contendo a respiração, o público parece hipnotizado.
Aos poucos, intencionalmente o gigante puxa mais a corda. Mais e mais. Devagar, ele vai recolhendo e enrolando num dos braços, a parte já exposta... O que haverá na outra ponta?
O público compreende que aquele é o espectáculo ansiosamente esperado.
O gigante se detém, volta-se para o público e sorri enigmático.
Em gestos silenciosos, quer saber se prossegue ou não.
Os espectadores aprovam-lhe a acção e gritam:
– Mais depressa, mais depressa!...
Numa cumplicidade mórbida com o público, ele puxa mais a corda e... oh!...
Há um murmúrio generalizado e exclamações abafadas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 9:35 am

Presos à corda, claudicantes, expondo suas atrofias, vão surgindo criaturas intencionalmente degeneradas nas suas formas físicas, na feitura selvagem de monstros.
No auditório, rostos assombrados, perplexos, horrorizados...
A corda fatídica, contida nas mãos do gigante de branco, perambula, arrastando-se pelo palco.
Focos de luzes são jogados sobre os esgares dos pobres seres, nas suas faces bestiais.
A uma expressão mais pavorosa ou diante de um grito lancinante, faz-se um surdo clamor...
O condutor treinado para isso impulsiona-os na direcção do público, ameaçando soltar alguns dos mais agressivos.
Há um alarido geral e as crianças voltam a chorar estridentes.
Acontece, então, a ansiada interacção: público e atracção, consumando o tétrico espectáculo.
Alguns lugares já estão vazios. Outros exibem pessoas amontoadas, buscando se proteger.
E os reais objectivos no espectáculo foram amplamente alcançados...
De súbito, uma criatura mais afoita investe contra o feitor e ali mesmo, sob o olhar da multidão, é duramente chicoteada, estorcendo-se de dor.
Ouve-se uma aclamação geral, mas... difícil saber se é de aprovação ou de censura!...
Depois de um certo tempo, o condutor e as suas criaturas saem da mesma forma que chegaram. Os infelizes seres obedecem, cambaleantes feito ébrios.
Eles se arrastam com dificuldade, rumo ao interior, enquanto balbuciam algo parecido com lamento, choro...
Instala-se um silêncio preocupante.
Extáticas, as pessoas aguardam. Haverá algo mais?
As luzes vão sendo apagadas. É o indício de que a função daquela noite fora encerrada.
O lugar, cada vez mais escuro e ainda sob as últimas impressões do cruel desfile, torna-se assustador.
Aos poucos, cabisbaixas, olhando à volta e comentando à meia voz alguns detalhes mais fortes, temerosas de toparem com alguma criatura daquelas ou com alguma fera solta, as pessoas se vão em direcção dos seus lares...
No dia seguinte, certamente, o ‘grandioso’ espectáculo estará sendo largamente comentado, aumentando a primeira propaganda, desta vez com testemunhas oculares e o sucesso almejado estará garantido...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 9:35 am

O SENHOR DO BURGO
Vamos esquecer, por momentos, o ‘grande’ espectáculo e conhecer alguns habitantes desta cidade.
Apresento-lhes um senhor gorducho, vestido na última moda, glutão e de modos nada educados. Neste momento, em seu gabinete de trabalho, ele despacha com os seus empregados. Ainda mastiga algo e sua boca demonstra vestígios de gordura. Limpando os dedos num pedaço de papel, ele fala com voz poderosa e autoritária:
– Façam o mais depressa possível todas as cobranças. Não dêem tréguas a nenhum devedor, do maior ao menor! Quero meu dinheiro nos meus bolsos e nos meus cofres. Ameacem, levem policiais, gritem, façam o diabo! Os meios não me interessam e sim os fins. E, caso voltem de mãos vazias, vão se ver comigo!
Ele se levanta, punhos fechados, ameaçador. Aqueles que o ouvem engolem seco, sentindo-se sufocar. E prossegue:
– Ponho-os todos na rua! Criados de quarto são mais eficientes que os senhores! Tenho muitos outros querendo trabalhar para mim.
Caso sejam despedidos – informa, com um fino sorriso de mofa – terão de pagar tudo que me devem. E olhem que não é pouco! Não se esqueçam que lhes serão cobradas taxas referentes aos prejuízos que eu venha a sofrer pela incompetência dos senhores!
Por que o espanto? Duvidam daquilo que digo? Ah, entendo.
Inábeis como são, não leram o contrato que assinaram, não é? Pois bem. Ainda é tempo. Façam isso! A cláusula citada está lá tim tim por tim tim.
A um gesto de reacção de um deles, ele responde incisivo:
– Sem chances de contestação! Nas expressões de todos, o estupor.
Ele, enfim, decide completar, declarando:
– Estão todos atolados até o pescoço! Que digo? Até os últimos cabelos! Pensem bem nisto e agora saiam daqui!
Arrogante, ele faz um aceno de mão despachando-os e desaba ruidoso na cadeira, diante da secretária de ébano ricamente talhada.
Aos poucos, saíram todos, silenciosos e cabisbaixos.
Não ousariam argumentar com o senhor Loredano Pavan de Belmont, que vive como uma fera, disputando despojos numa fome de poder insaciável.
Enquanto se dirigem para a saída, sentem o duro olhar do patrão sobre as suas costas.
Fechada a porta, Loredano cospe de lado e vocifera:
– Corja! Não valem as migalhas que comem! Inúteis! Gostam do meu dinheiro, fazem dívidas e não querem pagá-las! Meu rico dinheirinho voltará para as minhas mãos, ora se voltará, e com lucros! Cada niquelzinho acrescido de muitos outros!
Confortável em seu luxuoso gabinete, Loredano arquitecta planos seguros para aumentar cada vez mais o seu poderoso pecúlio.
Se porventura algum prejuízo o alcança, torna-se possesso, movimenta-se rapidamente e recupera com lucros – honestos ou não – a quantia momentaneamente perdida. Para isso ele move céus e terra. Não o incomoda, absolutamente, a quantos tenha de pisar ou destruir. A sorte dos outros lhe é totalmente indiferente.
Caro leitor, permita-me a ‘autópsia’ da alma deste nosso personagem me faz pensar nas mais variadas formas de progresso intelectual e espiritual e na diversidade dos caminhos que nos levam a ele, nas múltiplas vidas bem aproveitadas, ou não, que perfazem as nossas jornadas neste ou noutros mundos.
Enfim, analiso em mim mesmo os resultados e as consequências de tantas oportunidades recebidas.
Garanto-lhes que tenho uma intenção premeditada.
Vejamos:
Eu, espírito, em constante evolução, dentro das leis que nos regem, venho palmilhando os caminhos deste mundo há muito tempo. Consciente de mim mesmo, com a alma em frangalhos por tantos enganos em complicadas situações reencarnatórias, com muitos deméritos e pouquíssimos méritos, ansioso por ser melhor, enfim decidi modificar-me desde o cerne, mesmo que para isso tivesse de sofrer as penas do Amenti.
Meus protectores sabem que nunca temi as dificuldades do caminho e jamais me acovardei diante dos prováveis sofrimentos, que se desdobrariam como tapetes macios ou feitos de espinhos, nas existências terrenas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 9:35 am

Temos todos marcado a ferro e a fogo, em nossa alma milenar, a consciência daquilo que somos e do que já deveríamos ser.
Se negamos ou camuflamos a nossa própria situação, o fazemos em nome de nossas imperfeições que parecem entronizadas dentro de nós, reinando absolutas, porque preferimos quase sempre servir a Mamon.
Quando da minha proposta em escrever para me penitenciar do passado culposo que ainda me envergonha, respirei agradecido aos céus pelo consentimento divino e pelos auxílios que me chegaram através de entidades elevadas e misericordiosas.
Declaro com alegria sempre renovada que as melhores vidas que vivi demonstram a possibilidade incontestável da redenção, alicerçada na centelha divina, que vez por outra se impõe poderosa, estimulando-nos ao exercício de virtudes muitas vezes esquecidas.
Afinal, fomos criados à imagem e semelhança de Deus!
Por vezes, é surpreendente e misterioso que a uma encarnação bem vivida suceda outra notadamente desestruturada, com o esquecimento dos verdadeiros valores espirituais.
Todavia, é compreensível que numa grande necessidade de evolução, o ser traga ou encontre ao nascer afectos e recursos maiores a ele confiados.
Assim fortalecido e escudado por aqueles que o amam até à abnegação, ele aproveita melhor o tempo, numa escalada mais rápida, rumo à sua melhora espiritual.
Cercado de amores e de amigos, apesar de envolvido em desafios e sofrimentos por vezes extremamente dolorosos, o ser consegue numa vida exemplar ressarcir dívidas há muito acumuladas, apesar de muitas outras existirem em suspensão, como a espada de Dámocles...
Perdoem-me estas digressões, mas elas respondem às variadas indagações, a respeito dos altos e baixos na evolução deste autor que vos fala, agradecido sempre.
Loredano, passos ritmados, na empáfia que o caracteriza, sai do gabinete e dirige-se à cozinha luxuosa e bem montada, na qual surpreendemos o conforto e a praticidade de então.
Ele olha ao redor, analisando tudo, silencioso.
O ambiente está impecavelmente limpo e brilhante.
Serve-se de água fresca, que bebe estalando a língua.
Pega uma fruta, revira-a na mão e avidamente a devora.
– Leocádia! – grita a plenos pulmões.
Tímida, arfando, surge à porta uma simpática mulher de estatura mediana, cabelos grisalhos, prematuramente envelhecida. Todavia seus traços fisionómicos denunciam ainda vestígios de rara beleza.
Amável, ela indaga, um tanto temerosa:
– Chamou-me, senhor?
– A quem mais eu chamaria aqui na cozinha, sua velha imprestável?
Amassando o avental com ambas as mãos, nervosa, ela aguarda.
– O que está esperando? – ele indaga, mãos cruzadas ao peito, de pé diante dela, medindo-a de alto a baixo.
– Que me diga por que me chamou, senhor – ela responde quase num sopro.
Movimentando-se em determinada direcção, ele indaga autoritário:
– Ora, não está vendo este chão todo sujo? Preciso mostrar-lhe?
Vejo que está se descuidando das suas funções!
Enquanto fala, ele tamborila, ritmado, com os dedos sobre a mesa, demonstrando impaciência.
– Mas... senhor... deixei tudo limpo há poucos minutos...
– Me contradiz, velha?
– Não, senhor, absolutamente, vou limpar tudo de novo! – forçando a vista já um tanto deficiente, ela distingue no chão brilhante gotas d’água e cascas de frutas.
Sai e retorna rápido, com os apetrechos de limpeza. Refaz o trabalho, sendo observada de perto pelo patrão, que respira ruidoso e inquieto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 9:36 am

Ao terminar, ouve:
– Agora, vá ao meu gabinete. Perto da minha secretária, o chão está imundo! Para trabalhar preciso desviar-me de tanta sujeira! É, definitivamente você está se descuidando das suas obrigações, Leocádia! Qualquer dia destes me livro de você!
Entristecida, ela obedece, carregando consigo o que necessita para a referida limpeza. Tem consciência de que deixou tudo muito limpo.
Uma vez ali, ela limpa tudo, reorganizando, zelosa.
Em seguida, volta ao que fazia antes, na lavagem das roupas.
De volta ao seu gabinete, Loredano olha ao redor e sorri satisfeito.
Ele é o único herdeiro de uma família abastada da região.
Multiplicou consideravelmente o património que herdou, alcançando um patamar financeiro incalculável e bastante invejável.
Arrogante por natureza, tornou-se pior por força das circunstâncias. Vive no píncaro das situações privilegiadas do lugar.
Aqueles que privam da sua companhia fazem vistas grossas aos seus desmandos, satisfeitos com as migalhas que caem da sua mesa.
Como consequência, Loredano vive cercado de amigos, mas também de inimigos – ostensivos ou não – muito perigosos.
Por isso mantém homens vigiando a casa, enquanto outros seguem-lhe os passos constantemente.
Já escapou de alguns atentados. Quando apanha os culpados, joga-os nas galés, depois de castigá-los ‘exemplarmente’, como diz.
Nestas ocasiões, apregoa o que fez, avisando a quantos possam ter as mesmas intenções.
Os seus pares são donos de poderosas heráldicas, ricos comerciantes e até mesmo reis. Entre eles, Loredano transita com facilidade, enfatuado tal qual um pavão.
Sem limites e sem escrúpulos, ele amplia, cada vez mais, o seu ‘lugar ao sol’.
* * *
O funesto desenhista escorrega dos telhados, cuidadoso, e pisa terra firme num lugar distante e ermo, após ter observado por uma clarabóia e durante longos minutos alguém que não apenas espicaça a sua curiosidade, mas lhe desperta uma grande fascinação.
Com estranho olhar, movimentos labiais distorcidos na inútil tentativa de balbuciar algo, ele percorre ruas desertas, escuras e esburacadas, iluminadas sinistramente pela argêntea luz da lua cheia.
Os seus passos ecoam na solidão da noite.
Ao passar por uma escuderia, entra, contorna-lhe o flanco caminhando apressadamente e sai furtivamente pelos fundos que dá acesso a outra rua.
Como um espectro ambulante, sem prumo e sem direcção, ele às vezes parece embriagado, tal o seu desequilíbrio físico. Desce os degraus sujos e quebrados de uma travessa e finalmente desemboca perto dos carroções do circo.
Nisso levou mais de meia hora.
Passa grunhindo pelas jaulas das feras que, incomodadas pelos ruídos, despertam e sentem sua presença.
Sorrateiro e ágil, ele adentra sua barraca de cor indefinida, desarrumada, suja e escura. Sobre uma mesa rústica, numa caixa de papelão, os papéis acomodam os gráficos grotescos. Tacteando, ele se agacha sobre uma esteira, apanha ao lado um trapo à guisa de coberta e deitando se cobre.
Emitindo estranhos sons guturais, agita-se de um lado para o outro, procurando a melhor posição para dormir.
Em poucos instantes está ressonando ruidoso.
Pietro, o proprietário do circo, investigando a inquietação das feras, concluiu que a razão fora a chegada de Deodato.
De onde ele viera àquela hora?...
Conhece-lhe os estranhos hábitos, todavia aceita-o na troupe.
Ele é útil naquilo que faz e tê-lo por perto é mais cómodo e mais barato.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 7:28 pm

Por comida, dormida e pouco dinheiro, ele favorece o circo ‘contratando’ as criaturas com deformações que atraem numeroso público. Dizem que ele tem cúmplices na cidade e que em algum lugar distante e misterioso faz as encomendas das infortunadas criaturas. Acrescentam ainda que ele é um criminoso cruel, impiedoso e temido no seu meio.
Pietro tem consciência de que Deodato é apenas o elo de uma grande cadeia neste comércio nefasto.
Um arrepio percorre-lhe a espinha ao ouvir um estranho gemido, sem saber se veio de perto ou do cemitério da cidade não muito distante dali.
Persignando-se, retorna à sua barraca tão bem montada e confortável quanto a tenda de um sultão.
Num espaço próximo, com o mesmo conforto, dorme placidamente belíssima menina de quase treze anos, entre sedas, rendas e ricas bonecas, tão parecidas quanto ela em delicadeza e finura.
É Rosalva, sua única filha, a luz dos seus olhos.
Para ela, tudo! Iria buscar-lhe as estrelas, se ela pedisse!
Adolescente, é a herança do seu grande amor que fugiu com um trapezista jovem e sedutor.
Enquanto viveram juntos, Deus premiou-os com esta boneca dourada, que hoje é a razão do seu viver.
Rosalva não se recorda da mãe. A bela Giselda partiu quando ela mal balbuciava as primeiras palavras.
O pai lhe diz que a mãe morreu numa epidemia de peste. A bem da verdade, esta filha é merecedora de tanta devoção por ser a doçura em pessoa.
À sua proximidade, até as feras parecem acalmar-se.
No circo, todos a amam e se esforçam por perfilhá-la junto ao pai, que não é nem de longe estimado.
Aqueles que conhecem a verdadeira história de Giselda confirmam a mentira piedosa do pai, permitindo à Rosalva continuar cultuando a memória de sua mãe.
Giselda, porém, nunca foi amada e nem admirada como pessoa, sendo extremamente vaidosa, egoísta e ambiciosa. Explorava o marido, sem remorsos e sem limites, causando por isso muitos problemas financeiros, além daqueles rotineiros, resultantes da insensibilidade e injustiça de Pietro. Todavia, ninguém pode negar: ela era esplendorosa!
Lindíssima, no trapézio fazia bela figura, arrancando suspiros de muitos homens, o que a envaidecia.
Várias vezes, Pietro a surpreendera na tentativa de traí-lo. Ele sofria, brigavam violentamente e o tempo ia passando.
Pietro não tinha paz. Vivia inquieto e inseguro, à espera de que algum outro mais afoito a levasse dele, o que de fato aconteceu. Certo dia, um novo trapezista foi contratado, pois o anterior havia ficado inutilizado depois de uma queda. Muito jovem, aprumado, inteligente e sedutor, em poucos dias ele conquistou o coração da volúvel Giselda.
Eram vistos sempre juntos no trabalho, a passeio ou a arrulhar como pombinhos pelas praças da cidade.
Pietro, ofendido e morto de ciúmes, pediu-lhes satisfações.
Os dois homens engalfinharam-se diante de todos, numa briga que aterrorizou funcionários, artistas e serviçais.
Finalmente, conseguiram separá-los, mas ouviram Pietro ameaçar os dois de morte.
Numa noite, Giselda e o trapezista desapareceram no mundo como agulhas num palheiro. Ela levou seu coração, sua alegria e a esperança de ser feliz como homem amante e apaixonado.
Na véspera da fuga ele a surrara, atirando-lhe ao rosto a infidelidade comprovada.
Com um fio de sangue a escorrer da boca bonita, ela jurou que o deixaria.
Como o casal nunca mais foi visto, ficou a suspeita de que Pietro tivesse cumprido a ameaça. Afinal, ninguém os vira fugindo, nem fazendo planos ou arrumações neste sentido...
O circo conhece o génio violento de Pietro.
Enfim, com o tempo, tudo caiu no esquecimento.
Ele jamais superou a perda de Giselda e dedicou-se plenamente à filha que ama com verdadeira loucura, numa insana compensação.
Pranteou o seu amor, escondido, e disfarçou a grande dor que passou a carregar no peito porque a amava, apesar de tudo.
A partir de então, proibiu que se pronunciasse o nome dela.
Rosalva cresceu formosa e boa e hoje é a razão de viver de seu pai.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 7:28 pm

Pietro é aconselhado muitas vezes a interná-la num bom colégio, mas resiste à ideia. Como sobreviver sem a presença do seu anjo?
Lamenta os atropelos nos quais ela vive por causa da vida itinerante do circo e a recompensa de todas as formas.
Por sua vez, Rosalva é grata, compreendendo os esforços do pai para protegê-la e fazê-la feliz. Abomina a ideia de separar-se dele, dos seus mimos e das suas intermináveis concessões.
Na troupe, algumas pessoas são letradas o suficiente para instruir a menina, e ela assimila admiravelmente uma gama considerável de conhecimentos, geralmente inacessíveis aos jovens da sua idade.
Pietro adquire os livros mais raros e interessantes que existem, investindo nisto grandes somas, para satisfazê-la na sua sede de saber.
Neste momento, envolvido em tristes recordações, olhando-a carinhosamente, conclui que jamais se apartará dela, jamais! Seria o mesmo que deixar de respirar.
Nestes pensamentos, ele se recolhe para dormir, imaginando reter nas mãos o destino de Rosalva...
Aos poucos, o circo aquieta-se totalmente.
Na manhã seguinte, como sempre, ser-lhes-á exigido redobrado esforço, independentemente da posição que possam ocupar.
Sempre há muito por fazer...
Rosalva herdou a beleza e o tipo físico da mãe, mulher alta e de formas generosas.
Apesar da pouca idade é muito amadurecida. Talvez por viver mais com adultos e principalmente com o pai, que a tratando com extremado carinho respeita e incentiva-lhe a inteligência e a notável perspicácia.
Bem vestida, de maneiras desenvoltas e educadas, ela passa por mais velha do que é. Nascida no circo, em meio à variedade de caracteres da troupe, ela criou o seu próprio modelo. Neste instante, vamos surpreendê-la em seus aposentos, em meio a papéis, livros e gravuras.
Deixando o que fazia, suspira sonhadora e relembra, sorrindo docemente, um fato que a encantou, prendendo-a como um visgo misterioso quando da montagem do circo:
“Por detrás de uma cortina, semiescondida, viu, fascinada, um belo fidalgo que, atraído pelo movimento da instalação do circo no terreno previamente escolhido, aproximou-se e em determinado momento integrou-se aos trabalhos, solícito e despachado.
Na chegada do carroção, aquele que comporta grande quantidade de material circense, ele percebeu a inquietação perigosa dos cavalos, assustados com um pequeno animal que lhes atravessara o caminho.
Indómito, ele os conteve, segurando-lhes as rédeas com um vigor inusitado, enquanto gritava a plenos pulmões:
– Eia! Eia! Parem!... – dominando-os de maneira admirável.
Rosalva, entusiasmada, teve ímpetos de gritar:
– Bravo, bravo!!!
Mas permaneceu escondida e silenciosa, observando fascinada a figura daquele homem que aparentemente nada tinha a ver com tais actividades.
Pietro, surpreendido com tanta coragem e presteza, elogiou-o agradecido, apertando-lhe a mão com bonomia.
O herói elegante e altivo usava calças justas de veludo marrom, camisa branca de seda, ampla e rematada com rendas, cinturão largo de fivela dourada, botas de cano longo até os joelhos, de couro áspero na mesma cor das calças, e um grande chapéu rematado com plumas, que ao cair durante a refrega deixou à mostra uma cabeleira bem tratada de um castanho escuro brilhante e levemente ondulado.
Seus gestos eram nobres; suas mãos finas, de dedos longos e enfeitados de anéis valiosos. Do pescoço pendia-lhe uma corrente de ouro com medalha artesanal, na qual podia-se divisar a sua heráldica cunhada. E o brilho dos olhos? Era de espantar! Todas as constelações do empíreo certamente não cintilariam mais!...
Acresce anotar que tinham também a cor dos céus num dia claro de sol!
Admirando-o, em êxtase, Rosalva sentia-se incapaz de desviar os olhos dele, ou ignorar-lhe a presença.
Decidida, fitou-o firmemente e tão intensamente que fê-lo voltar-se, atraído pelo seu poder e vontade.
Divisando-a na janela, ele a admirou, entre surpreso e encantado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 7:29 pm

Sorrindo, curvou-se numa elegante reverência. No seu olhar sedutor e num sorriso fino e delicado, a admiração por sua beleza e o pronto interesse.
Depois, ela desceu da carroça, o que fez com elegância estudada, devagar, sentindo-se observada.
Ele precipitou-se e suavemente lhe segurou a delicada mãozinha, sustentando-a gentilmente até vê-la pisar o chão, agradecida, encantada e... plenamente conquistada!
Pietro, com as feições alteradas, requisitou-lhe os préstimos para algo que ela nem se lembra, afastando-os.
Alguns minutos depois, montando seu cavalo, ele desapareceu rapidamente, depois de lhe acenar jovialmente, despedindo-se.
No seu olhar, Rosalva surpreendeu belas promessas...
Ter-se-á enganado? Nunca mais o viu!...
Qual o seu nome? De onde veio e para onde foi? Como saber?”...
Rosalva deseja revê-lo, de todo o coração.
Pietro chega carinhoso e lhe indaga:
– Filha querida, em que pensa?
– Em nada de especial, meu pai. Estou admirando e analisando estes livros.
– Não quero que a minha bonequinha se canse, sim? – ele diz, enquanto a beija e insiste desconfiado:
– Você está bem, filha?
– E por que não estaria?
– Se soubesse não lhe perguntaria, querida! Farei qualquer coisa para vê-la feliz. Amo muito esta filha linda e inteligente!
– Obrigada! O senhor, meu pai, também é muito querido do meu coração e desejo vê-lo igualmente feliz! Quanto à inteligência e à beleza, se as tenho, devo-as ao senhor e a minha bela mãe!
Pietro ensombra as feições. Rosalva se arrepende de haver citado a mãe:
– Perdoe-me, papai, às vezes não me contenho... Gostaria de tê-la conhecido...
– Tudo bem, filha. Eu entendo a sua necessidade da presença maternal!
Eu também cultuo ainda a sua memória. Apraz-me saber que faz o mesmo, apesar de não se recordar dela...
Preciso fortalecer-me neste sentido, Rosalva... Eu já deveria ter superado esta grande dor...
– Isto acontecerá, meu pai, quando o senhor amar de novo.
– Eu?!... Não serei capaz! Enfim, quem sabe, não é?
Bem, tenho muito a fazer. Não se canse tanto! Você vai à fonte com sede exagerada, filha. Cuidado para não se afogar! Poupe-se um pouco e se distraia mais, sim?
– Farei isso, papai, não se preocupe! – ela atira-lhe um beijo, enquanto ele sai sorridente e feliz com a filha que o faz sentir-se orgulhoso em todos os sentidos.
Enquanto Pietro se distancia, Rosalva imagina como ele se sentiria se soubesse que ela deseja ardentemente rever aquele belíssimo rapaz que vira apenas uma vez...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 7:29 pm

MUSTAF’ZARIK
Na mansão de Loredano, trabalha arduamente uma exótica criatura de pouco mais de treze anos.
Muito alto e esquelético, seus olhos possuem cor indefinida, que vão do negro ao cinza-metálico. Seu olhar magnético parece atravessar a alma daqueles que estão sob a sua observação. Seus cabelos são lisos e negros, a pele cor de mate. Suas mãos são grandes, de dedos afilados. As pernas longas são magérrimas como as de uma gazela; seu rosto é pálido, a tez acobreada.
É natural da Índia e se chama Mustaf’Zarik. Loredano o trouxe de uma das suas viagens. Era ainda muito pequeno e chegou envolvido nos trajes típicos da sua origem. Na ocasião, Loredano exibiu-o como um troféu curioso até cansar-se.
Em verdade, este rapaz é uma estranha criatura: silencioso, parece ter o dom de ler pensamentos. Avaro nas palavras, só enuncia verdades, algumas desconcertantes que lhe têm valido sonoras bofetadas e demais sofrimentos corporais.
Come pouco e de forma peculiar. Aquilo que lhe agrada ao paladar nada tem a ver com o comum. Rejeita os alimentos considerados normais e, se insistem, forçando a ingeri-los, adoece gravemente.
Apesar da aparência pacífica, é indomável. Nem fortes golpes fazem-no dobrar-se a quem quer que seja, se não for a sua vontade.
Nos estábulos, onde faz grande parte dos seus serviços, conversa longamente com os animais. Muitas vezes dorme entre eles ou sob as estrelas, com as quais tece igualmente extensos monólogos...
Loredano odeia e teme Zarik porque, como num estranho sortilégio, a cada maldade perpetrada contra ele, recebe em contrapartida prejuízos, sustos e até mesmo doenças misteriosas que o jogam ao leito por dias.
Normalmente afasta-se dele, porque mesmo sabendo dos riscos que corre não se contém em maltratá-lo.
Para completar, sem saber como nem por que, suspeita que, se o menino morrer, também morrerá; como se os dois estivessem ligados por laços a uma fatalidade inexorável.
Zarik possui estranhos poderes, como por exemplo: prever factos que se concretizam e a faculdade de curar pessoas ou animais através de rezas ou de infusões.
Numa estranha dicotomia, Loredano protege-o, apesar de maltratá-lo sempre que tem oportunidade. Teme que por alguma razão ele venha a perecer, mas a simples presença do exótico adolescente o exaspera. Parece-lhe estar sempre desnudo diante dos seus olhos brilhantes como aço.
Amiúde, se vê nos seus sonhos como um marajá poderoso e Zarik como seu servo, a quem maltrata cruelmente.
Em seguida, misturam-se outras cenas que lhe parecem mais antigas, nas quais ele é o servo de Zarik e como tal é surrado por este, que o espezinha duramente. Em meio aos seus servos, ele vive uma vida de dores e desgraças constantes, sofrendo os horrores de um verdadeiro inferno.
Nestas ocasiões, envolvido por sensações dolorosas, ele desperta como agora, encharcado de suor, cheio de ódio por Zarik...
Sente ímpetos de levantar-se, de ir até ele e destruí-lo de uma vez.
Uma indagação supersticiosa lhe acorre:
“Será que ele morreria... ou não?... Quem sabe é uma dessas entidades védicas, materializada, do seu povo tão estranho?
Por que eu trouxe esta maldita criatura comigo? Ah, se eu pudesse voltar atrás!...
Tomei-o dos braços da sua mãe. Ainda lhe recordo a beleza e a dignidade. Seu sari colorido, seus cabelos negros e brilhantes trançados com óleos perfumados...
Eu estava alucinado de paixão por ela! Jamais uma mulher tocou-me de tal forma e com tal intensidade o coração!... Bela Samara!
Por que me rejeitou? Me confessou que amava o marido e que lhe era fiel...Este encontrava-se em viagem, numa peregrinação religiosa.
Recordo ainda o seu olhar desesperado a implorar-me que não lhe tomasse o filho pequeno.
Que diria ao pai quando ele regressasse? – indagou-me suplicante.
Arrebatei-lhe, mesmo assim, violento, o menino.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 7:29 pm

Na ocasião, ficou-me gravado para sempre o duro olhar da criança sobre mim. De piedade, de ameaças, ou de condenação? Nunca consegui saber!
Ah, se eu tivesse pensado melhor! Jamais o teria trazido comigo.
Todavia nunca recuei diante daquilo que desejo. Se não me dão, eu tomo. Diante da minha vontade, não existem obstáculos!
Samara morreria antes de me pertencer... Era inútil tentar.
Tirar-lhe o filho foi a maneira de castigá-la.
País esquisito aquele!... Povo exótico, de estranhos costumes!...
Tolo que fui... Preparei uma armadilha e caí nela.
Como livrar-me de Zarik? Não quero continuar pensando...
Aos diabos com tudo isso!...”
Relaxando, ele volta a dormir entre sedas e rendas, confortável, mas inseguro e frágil como uma criança pequenina, atormentado com fatos que não entende e contra os quais não possui defesas...
* * *

Em toda a cidade, nas mentes dos que assistiram ao espectáculo circense, materializam-se as mais variadas formas, reproduzindo imagens plasmadas de acordo com a capacidade de cada um de assimilar o que viram. Imagens, dentro dos limites intelectuais e espirituais de cada um e dos contextos das suas vidas, que passam a influenciar seus hábitos e costumes.
A vida no circo é triste, porque depende da boa vontade dos seus proprietários e da afluência de público.
Quase sempre, a ganância e a insensibilidade daqueles que controlam os recursos adquiridos jogam um grande número de artistas e serviçais numa extrema penúria. Usando de mentiras e de artifícios, exploram e garroteiam aqueles que se esfalfam nos ensaios, nos diversos labores, e se exibem nos espectáculos, geralmente acumulando funções e personagens, além de assumirem outras actividades fora do circo em benefício do empreendimento, fazendo o papel de intermediários entre este e a comunidade.
As migalhas que recebem criam-lhes problemas insolúveis pela incapacidade de sobreviverem dignamente, apesar de trabalharem tanto.
Não raras vezes, sem outra saída, trabalham pelo escasso alimento que lhes é oferecido à guisa de pagamento.
Quase todos, sem condições e sem entusiasmo, fazem tudo o que podem para se apresentarem atraentes, saudáveis e ‘felizes’ (!)...
Como um grande monstro, o circo devora quase tudo, levando-os a viver de forma confusa e desregrada, com pouco conforto e nenhuma segurança.
* * *
Muito cedo, Zarik desperta.
Olhando ao redor, respira a plenos pulmões, espreguiça-se retesando os músculos e levanta-se.
Senta-se num estreito tapete franjado, dobra as pernas na postura de yogui, junta as palmas das mãos, olha para o alto e emite uma sonora saudação, sustentando-a por longos minutos.
Mantendo os olhos fechados, interiorizado, ele permanece impassível.
Vez por outra, pode-se-lhe notar os lábios a se moverem, como se dialogasse com alguém.
Quando encerra a meditação, o seu rosto está iluminado. Nos lábios, um sorriso sereno.
Para este ritual, ele usa um turbante de branco refulgente.
Ao terminar as suas orações, guarda-o de novo, junto ao tapete, num velho baú.
Minutos depois, prepara uma bebida com o leite que tirou de uma das cabras, acrescentando-lhe o sumo de algumas ervas colhidas na hora. O líquido torna-se espumoso e esverdeado. Em seguida sorve-o com satisfação. Limpa a boca, senta-se num tosco banco de madeira e aguarda.
Em instantes, Leocádia chega trazendo-lhe um pão achatado e escuro.
Entrega-lhe sorrindo e beija-o na testa, enquanto sugere:
– Coma, meu filho, está quentinho! Acabei de fazê-lo do jeito que você gosta. Já tomou o seu leite?
– Agora mesmo, Leocádia. Este pão é delicioso!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 7:30 pm

– É natural que goste. É uma receita indiana, filho.
– Você é tão boa, Leocádia! Parece minha mãe!...
Absorto, enquanto mastiga o pão, ele olha ao longe. Num suspiro que lhe parece ter saído do mais profundo da alma, exclama:
– Sinto tantas saudades dela...
– Saudades, meu querido? Se quando aqui chegou era quase um bebê! Não pode lembrar-se!
– Posso, Leocádia... recordo os seus vestidos coloridos e esvoaçantes... Os seus cabelos negros, lustrosos... Sinto ainda o perfume deles, Leocádia! Tenho gravada na retina a expressão do seu rosto e das suas lágrimas no seu desespero, agarrando-me fortemente para que ele não me arrebatasse! Ah, senhor Loredano, por quê?... Para quê?...
– Meu querido Zarik, isto não é possível!
– Sim, é possível. E digo-lhe mais: Nos meus sonhos ela aparece e nós conversamos. Muitas vezes, beijando-me amorosa, pede-me que o perdoe.
– E você deve perdoá-lo, filho! Nosso patrão é digno de piedade. É um infeliz que ainda não aprendeu a amar, nem ao seu próximo e nem a Deus!
– Sei que tem razão. Mas, Leocádia, cada vez que eu o perdoo, ele repete tudo! Está sempre a perseguir-me com o seu ódio e a sua maldade! Até quando conseguirei perdoá-lo?
– A longa experiência me diz que deverá fazê-lo quantas vezes for preciso, filho!
Leocádia silencia. As recordações inusitadas de Zarik levou-a a pensar nas suas. Retorna à sua aldeia, revendo-se pequenina, alegre, fagueira e irrequieta.
Seus pais são extremamente amorosos. Sua vida é saudável e pura. Cresceu em meio à natureza, correndo entre as árvores frondosas e os animais silvestres, entre as flores e as borboletas...
Quantas vezes surpreendeu deslumbrada a saída delas dos seus casulos! Belíssimas, coloridas, trémulas a princípio, para depois voarem, batendo as asas e ganhando os céus.
Quase sempre vivia descalça.
Suas vestes leves e coloridas tinham o perfume do sabão de ervas, lavadas na beira do rio por sua tia e colocadas para secar sobre as pedras quentes do sol ardente. Tudo ao seu redor estava impregnado de odores bons e diferenciáveis.
Ainda carrega na acústica de sua alma a música campestre, tocada na flauta pelo pastor para aglutinar e acalmar as ovelhas.
Quase consegue ouvir os seus balidos, como se estivessem tentando falar: Que lindas eram! Com os seus corpos cobertos de lã crespa, quentinha... Olhinhos inocentes, comendo aqui e ali...Quando se distanciavam, o cão lebreu latia, cercando-as, obrigando-as a retornarem ao rebanho...
Quantas vezes Leocádia as teve nos seus braços a acarinhá-las e a conversar com elas... Deus, quanta saudade!...
Num dia trágico para ela, um estranho surpreendeu-a sozinha e atirando-a sobre o seu cavalo, levou-a consigo. Arrepiando-se, ela recorda o quanto se debateu, inutilmente. A partir de então, trabalhou sem cessar na casa dele.
Aquele que a arrebatou da sua terra e dos seus era pai de Loredano, homem cruel e desalmado...
– Leocádia, você está bem? – interrompe Zarik preocupado, enquanto termina de comer o pão bem devagar, com prazer – Você ficou triste?
Regressando das suas memórias, ela suspira profundamente e acaricia os cabelos negros e escorridos do rapaz, enquanto esclarece:
– Não se preocupe, meu filho, eu estou bem, mas... já estive melhor, bem melhor.– E quando foi isso, Leocádia? Pode me contar?
– Não, meu filho, agora não. Já estou atrasada com os meus serviços e, como sabe, o nosso patrão é por demais impaciente.
– É verdade que ele lhe batia, Leocádia?
– Não, filho, essa gente fala demais!
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 7:30 pm

Todavia, ela leva as mãos às costas e acaricia, levemente, algumas cicatrizes. Suspira de novo e o beija, enquanto afectuosa e conselheira lhe diz:
– Vá cumprir as suas obrigações. Não o desafie, querido. Ele se exaspera com você, facilmente!
– Eu sei, Leocádia, mas não tenho medo, ele sabe.
– Não seja imprudente, meu pequeno. Aqui impera a lei do mais forte. Vá cuidar dos animais que pressinto os passos do patrão e estamos ambos roubando um tempo que deveria ser melhor aproveitado.
Assim dizendo, ela vê Zarik levantar-se e sair vagarosamente em direcção ao estábulo, enquanto assoma à porta a figura volumosa de Loredano, com vincos na testa e pequeno chicote na mão, que bate nervosamente na própria perna, enquanto vocifera:
– Corja de inúteis! O dia já vai alto e o que fazem? Esquecem-se de que aqui estão para trabalhar e não para se divertir?
– Perdoe-nos, senhor Loredano. Eu e Zarik livramos de uns arames as patas de um pobre cabrito que já se reuniu alegre ao seu rebanho. Agora, o rapaz alimentou-se e já retornou ao trabalho – ela mente, enquanto intimamente pede perdão a Deus.
– Hum... Deixe de conversas e sirva-me o desjejum, mulher!
Rapidamente, ela complementa a bandeja farta de bons alimentos e a leva até o salão de refeições, onde ele, carrancudo, aguarda, batendo os pés no chão e pigarreando.
Em seguida, ela retorna para a cozinha.
Glutão e mal-educado, ele investe nos alimentos, deixando-os por vezes cair sobre a toalha de branco impecável.
Dir-se-ia uma criança que ainda não aprendeu a ter bons modos à mesa.
Da sua boca escorre leite, enquanto farelos de pão e de bolo grudam-se desagradavelmente ao redor dos seus lábios. Vez por outra, bate as botas luzidias no chão sem motivo aparente.
Resmungando por qualquer coisa, mastiga muito e ruidosamente de uma só vez. Às vezes geme de prazer, pelo sabor de algum petisco mais gostoso.
Ao levantar-se, de chofre, derruba um copo e pedaços de pão.
Clama, revoltado:
– Oh, Leocádia, venha aqui! Não sabe mais arrumar uma mesa?
Habituada, ela já chega com o material de limpeza nas mãos e delicadamente limpa e reorganiza tudo.
Mais pesado que antes, Loredano dirige-se ao seu gabinete.
Neste extenso burgo, propriedade máxima dele, os habitantes perambulam tristes, pálidos, sofridos e sem esperanças. Em meio a rudes trabalhos, eles vivem sem estímulo e sem perspectivas.
A mansão do patrão parece sugar o ar e todos os outros recursos indispensáveis a uma sobrevivência saudável.
Não têm como queixar-se do que quer que seja, o que lhes é vedado.
Para Loredano, este contexto e estas criaturas existem como pano de fundo, sem nenhuma importância, apenas para satisfazer as suas necessidades e as suas ambições.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 7:30 pm

MOD
Nos confins destas terras, tão longe que o próprio dono jamais esteve, numa casa acanhada, adentremos porque as suas portas sempre estiveram abertas como agora.
Surpreendemos um frade no seu hábito marrom, cordões à cintura e cruz pendurada ao pescoço.
Ele vela à cabeceira de uma mulher de cabelos nevados e pele enrugada, magérrima e extremamente pálida.
Ela pede água e, após ingeri-la, aquieta-se, respirando com dificuldade.
– Deseja algo mais, Mod?
– Não, obrigada, meu bom amigo, Deus o abençoe!
– Mod, como pôde ficar assim, tão enfraquecida?
– Há algum tempo não consigo me alimentar, frei Justino...
– Por que não me chamou antes? Talvez eu pudesse reverter esse quadro!
– Não, não poderia, meu frei. Minh’ alma já vislumbra o além e nada mais a interessa.
– Filha, este comportamento a compromete diante de Deus!
– Não faço de propósito, creia-me. Meu físico não tem mais condições de prosseguir... Como sabe, nunca me faltou coragem para viver. Mas a matéria está esgotada e o sopro que vivifica já é quase nenhum... Deixe-me aproveitar as últimas energias para confessar-me ao seu coração de ministro de Deus... O tempo urge...
Tenho coisas a contar, segredos que guardei comigo a vida inteira...
Balançando afirmativamente a cabeça, ele coloca os paramentos, lamentando aquela vida que se apaga.
Beija o breviário, ajoelha-se no chão batido e húmido e prepara-se em meio a orações.
Levanta-se e ordena-lhe que fale, enquanto de olhos semicerrados ouve-a, atento e contrito.
Após alguns minutos que lhe pareceram séculos pela intensidade das declarações de Mod e que o fizeram estremecer, surpreso e apiedado, ele observa que aos poucos ela silencia, incapaz de prosseguir falando.
Procede o ritual dos moribundos, abençoando-a pela existência exemplar.
Enquanto ela estertora, ele a sustenta com palavras de conforto, amparando-lhe a alma boa, nos seus últimos instantes na Terra.
Enfim, apiedado, ele observa que ela se aquietou, libertando-se...
Clama pelos vizinhos que já estão ao redor da casa, mantendo-se à distância por respeito ao ritual religioso.
Unidos e consternados, organizam-se para os naturais procedimentos.
Mod fora mulher belíssima, refinada, culta e inteligente.
Quando chegou àquela aldeia, trazia uma grande dor no coração.
A ninguém declarou de onde vinha ou por que estava ali, mas sempre pareceu uma ave exilada, sem esperanças de retorno aos sítios amados.
Esforçou-se para organizar sua vida e trabalhou até o limite das suas forças.
Morou sempre sozinha, todavia era solidária e prestativa com todos aqueles que se lhe acercavam.
Tornou-se muito querida e admirada.
Seu féretro, singelo, como de costume, tem um grande acompanhamento e uma profusão de flores, misturando-se às lágrimas abundantes dos aldeões desconsolados.
Modesta, conhecida abreviadamente por Mod, viveu de forma pacífica e abnegada.
Participava sempre de todos os fatos importantes do lugar, de todos os sofrimentos e alegrias, sendo companheira, mãe, irmã de todos.
Sua alma luminosa encontrou ali, entre a dor e a miséria, a oportunidade para exercitar suas virtudes. Para eles, ela era Mod, simplesmente Mod, a querida Mod, e nada mais.
* * *
Naquela noite, Loredano despertou altas horas, olhos esgazeados, vomitando tudo que comera, entre acessos de cólicas violentas. Em meio a pesadelos, despertara cheio de dor.
Leocádia chamou o médico, que o fez devolver tudo que havia ingerido, para aliviar a indigestão que se instalara. O maior prazer deste homem é empanturrar-se.
O esculápio avisa-o de que ele ainda morrerá de tanto comer.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 7:31 pm

Morte nada elegante para quem se considera (e de facto acaba sendo) um dos homens mais importantes da cidade.
Resmungando, reagindo mal aos remédios e às diversas providências, ele destrata o médico, que lhe suporta as agressões porque lhe cobra, sem problemas de consciência, altos honorários, sendo o único médico da cidade a atender Loredano.
Após os tratamentos mais urgentes, orientando-o quanto às suas prescrições, o médico se vai.
Mal-humorado, Loredano reclama esbaforido de dores de cabeça.
Baldos todos os esforços para acalmá-lo, Leocádia vale-se dos conhecimentos de Zarik. Desperta-o, requisitando-lhe uma infusão calmante para o patrão, no que é prontamente atendida.
Loredano ingere o chá, contrariado, e em poucos minutos está dormindo placidamente.
Dizem que Zarik poderia, se quisesse, matar sem deixar vestígios com as ervas que cultiva e conhece tão bem.
Todavia este rapaz veio ao mundo para fazer o bem, para louvar ao Criador e promover a vida e a saúde.
Leocádia recorda-se do dia em que ele chegou pequenino, vestido em roupas orientais, forte e bonito. Balbuciava algumas palavras na língua do seu povo e esforçava-se para ser entendido.
Crescendo, foi demonstrando um carácter bem peculiar. Os comportamentos considerados normais eram-lhe estranhos, os seus destacavam-se particularmente.
Ela respeita-lhe o jeito de ser e se adaptou às suas excentricidades.
Por sua vez, ele a ama tal qual a uma mãe e não mede esforços para alegrar o coração dessa mulher, maltratada pela vida e principalmente pelo patrão.
Zarik é sua sustentação afectiva. Ela é a segurança e o carinho providencial para ele neste mundo hostil para o qual o trouxeram contra a vontade de sua saudosa mãe e a dele próprio.
No entendimento de Zarik, é o seu maktub.
* * *
Saídos daquele lúgubre cemitério, no qual sepultaram entre lágrimas e lamentações a querida Mod, os moradores do vilarejo retornam para os seus lares com saudades prematuras daquela que soube conquistar os corações mais insensíveis.
No decorrer daquele dia, pareceu-lhes revê-la a sorrir-lhes por entre as flores perfumadas com as quais fora enterrada. Sim, muitas flores. Todos levaram dos seus jardins. Fora o último preito de gratidão àquela que, enquanto viveu, doou-se inteiramente a todos.
Sua lembrança viverá para sempre neste recanto de lutas árduas e banhadas de sofrimento.
Quando os primeiros raios de sol surgem, os aldeões partem para o campo trabalhar. Vão arar a terra, a fim de que ela corresponda às expectativas do seu proprietário. As colheitas devem ser cada vez mais satisfatórias, aumentando os lucros indefinidamente.
À beira do rio, aguadeiros fazem o trabalho da rega. Baldes e baldes são levados às costas, à maneira chinesa, aos lugares mais distantes.
Esta gente simples, nascida ali, aprende a reverenciar a natureza naquilo que ela tem de mais belo e grave, na perfeição das suas leis que regem tudo, segundo a vontade de Deus, recompondo-se diante dos seus passados de extremado orgulho, egoísmo e ambição. Haverão de retornar à fonte de água pura para dessedentar-se, voltar ao real objectivo da existência, que é o progresso espiritual. Caminhamos todos entre altos e baixos, melhoras e complicações. A jornada é longa e por vezes dolorosa, diante do justo acerto com as leis divinas, que nos oferecem oportunidades de sanar os nossos desenganos.
A boa Mod desapareceu da visão material. Impossível para nós avaliar agora a sua posição espiritual.
Mas ela escolheu a ‘porta estreita’ e com coragem atravessou-lhe os portais de luz.
Nós, porém, recalcitrantes e obstinados, ainda estamos nos enredando nas nossas mesquinharias...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 16, 2023 7:33 pm

O GUERREIRO ETÍOPE

Vendo Zarik estendido sobre o leito, pele escura, corpo forte e alongado, feições bonitas e plácidas, mãos grandes de dedos afilados, braços compridos, pés enormes, dir-se-ia sem dúvida tratar-se de um poderoso guerreiro etíope a descansar depois de uma difícil batalha.
Todavia com enorme diferença: a serenidade espiritual, porque a ânsia por conquistas quase sempre é estribada em outros valores.
Zarik dorme de facto, embalado pelo cansaço físico, mas com a paz da consciência.
Adormecido, Zarik viaja, liberto, fortalecendo-se no convívio espiritual dos seus afins para os embates da vida presente.
Sua fisionomia transfigurada permite-nos adivinhar as delícias espirituais que frui. Seu musculoso corpo ali está, mas e sua alma por onde andará?...
Amanhece. Os animais em suas onomatopeias cobram-lhe o atendimento às suas necessidades. Retesando fortemente o corpo magro, ele respira fundo, devagar. Senta-se no leito e fica por alguns momentos tentando reter na memória as lembranças dos sonhos. Sorri levemente, satisfeito, e finalmente levanta-se.
Depois da habitual meditação e da refeição matinal, assume as estafantes tarefas, que o tornam cada vez mais vigoroso.
Os seus encargos estender-se-ão noite adentro, quando suarento e faminto buscará um banho reconfortante e um frugal alimento antes do sono reparador.
Rolando como seixo no fundo de um rio, seguindo o curso das águas enquanto se transforma, lapidando-se espiritualmente sob os raios do sol, forte e determinado, vive Zarik...Apesar da vida sofrida, não se queixa. Agradece ao Criador a oportunidade de trabalho na disciplina rotineira que o mantém ocupado e a constante abnegação de Leocádia, essa mãe que o céu lhe concedeu na compensação pela ausência da legítima que ficou tão longe e que agora só vê em sonhos. Mãe Samara... Mãe Leocádia... Sim, ele é um privilegiado! Não fosse a perseguição do patrão...
Mas Zarik sabe que faz parte de sua existência. Ensina-lhe, a duras penas, a ser cada vez mais tolerante. Este lhe será também mais um factor de gratidão...
Sinceramente arrependido, recorda o desejo de envenenar Loredano.
“Que o Senhor lhe perdoe os desmandos e a mim, a intenção criminosa, rejeitada sempre, graças a Deus! Mas ele maltrata Leocádia. Isto é muito difícil de suportar!
As minhas dores eu aguento, sejam elas físicas ou morais, mas ver Leocádia sofrendo, oh, céus, é um tormento! Preciso de muito controle emocional para não o destruir de vez!
Ah, senhor Loredano, o quanto terá de sofrer ainda!”
Nestes cismares, Zarik enfrenta mais um dia de trabalho.
Por vezes, tudo foge ao normal e, em meio aos impropérios de Loredano, debaixo de castigos cruéis, sob suspeitas infundadas, ele sofre a fúria do patrão.
Nestas ocasiões, Loredano surra-o impiedosamente, deixando-o como morto no chão, afligindo demais a pobre Leocádia.
E como sempre acontece depois de agredi-lo, Loredano adoece sem razões aparentes, sofrendo dores atrozes, que resistem a qualquer medicamento.
Sem fugir deste estranho ritual, mais uma vez, Zarik, enquanto cura as próprias marcas de chicote no corpo, socorre-o com as suas infusões. Estranha convivência esta!...
Zarik aproveita a oportunidade para se melhorar espiritualmente.
Não sabe em que situação renascerá futuramente.
Concluiu resignado que Deus pretende reconciliá-lo com Loredano, redimindo-lhe a alma desorientada e cruel, enquanto lhe permite igualmente a própria lapidação. Sabe que o ideal é sempre garantir o progresso hoje, nesta dura vida de provas e de expiações...
Como um bichano bem servido e satisfeito, Loredano desperta para mais um dia.
Espreguiça-se, olha à volta e se propõe a levantar. Toca uma sineta dourada e espera.
Ave sem Ninho
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