LUZ ESPÍRITA
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O PRÓXIMO MINUTO/Ângelo Inácio - Robson Pinheiro

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O PRÓXIMO MINUTO/Ângelo Inácio - Robson Pinheiro - Página 6 Empty Re: O PRÓXIMO MINUTO/Ângelo Inácio - Robson Pinheiro

Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 05, 2018 10:40 am

Um dia, eu e meu namorado voltávamos da cidade do Rio de Janeiro, onde ele compareceu a uma entrevista de emprego.
Subíamos a serra; em meio a uma neblina muito forte, o carro dele bateu e chocou-se contra outro, que vinha em sentido contrário, avançando na pista.
Naquele acidente eu deixei o corpo violentamente e aqui estou, seu filho, sofrendo junto com você, meu pai; sofrendo com minha mãe, mas orando por ela e por nós - por você e por meus irmãos, que, revoltados, se consomem em caminhos que escolheram, nos quais experimentam sofrimentos e semeiam situações completamente desnecessárias para eles.
Samuel discorreu por alguns minutos, falando da forma como amparava sua velha mãe e como aguardara o momento de tocar no coração do pai, Adir.
Explicou como teve de estimular suas reflexões, promover uma tempestade cerebral, a fim de despertar o pastor e pai, para que revisse suas atitudes e posturas, que fizeram sofrer toda a família.
Adir ouvia tudo derramando lágrimas, com uma vergonha imensa de si mesmo e do filho.
Fora amparado exactamente pelo filho gay que desprezara e execrara por tantos anos.
Pouco a pouco, Adir se acalmava, à medida que Samuel tocava-lhe os cabelos, alisando-os, acariciando-os como não fazia há tempos. Lentamente, acabou por adormecer, suavemente aconchegado pelo filho, até que dormiu profundamente e sonhou.
Sonhou que estava no leito de um hospital.
Adir simplesmente libertou-se daquela prisão mental, da dimensão em que se sentira prisioneiro.
Ressurgia em outro lugar, em outras circunstâncias.
Samuel levantou-se do local onde se encontrava, onde estivera segurando o corpo espiritual do velho pastor Adir.
Olhou para o alto, rumo a um país distante da imensidade.
Iluminou-se completamente; sua aura alcançou dimensões extraordinárias e, como uma borboleta de luz, transfigurou-se, tornou-se uma estrela, singrando o firmamento daquela dimensão e dirigindo-se para junto de outras almas, mais esclarecidas, rumo a um mundo onde não havia rancor, nem perseguição, nem preconceito, nem homofobia.
Ali, para onde ia, todos se amavam e se respeitavam.
Todos acreditavam num amanhã iluminado pelas luzes de uma espiritualidade sem fronteiras, sem proibições.
Samuel regressara para junto de seus amigos pertencentes a um mundo plural, colorido com todas as cores do arco-íris.

1 Cf. 2C0 3:6.
2 Cf. Gn 19:2-3.
3 Mt 10:15.
4 Cf. Mt 9:10-13; 11:19; Lc 7:37-39; 15:2; 19:7 etc.
5 Cf. Mt 4:24; 10:8; Mc 5:29; Lc 8:26-39; J° 9:24-25
6 Cf. Lc 8:2,43; l3-32'i J° 4:9
7 Cf. Mt 6:2-17; 22:18; 23; Mc 7:6; Lc 11:44; '3:I5
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 05, 2018 10:40 am

A MADRUGADA
ADIR ACORDOU na cama da própria casa.
Respirava com dificuldade, enquanto a mulher fazia massagens em seu peito e gritava por socorro.
A parada cardíaca parecera haver colocado fim à vida de Adir.
A esposa não poderia suportar a perda dele.
Depois dos filhos, de Carlos, que se fora, expulso pelo pai; dos outros dois, que partiram pelo mundo assumindo o trabalho missionário para nunca mais dar notícias, agora a possibilidade da morte do esposo.
Isso ela não aguentaria.
E chorava, chorava e gritava pelo poder do sangue de Jesus.
Mas Adir ainda não morrera.
Depois de intensas rogativas e muita exasperação, ela aguardava o fim, o veredicto da morte.
Queria orar pelo marido, mas não conseguia.
Ouvira-o urrar exactamente no instante em que se levantara para o momento da oração, que escolhera para pedir pelos filhos, por suas almas e por si própria.
Foi quando ouviu os gritos roucos, abafados, e saiu correndo, encontrando Adir estendido na cama, com os olhos parados, quase sem respirar - ou será que respirava ainda?
Ela apavorou-se; rasgou a camisa que o marido vestia para dormir e fez-lhe respiração boca a boca.
Tudo foi muito rápido.
Forçou as mãos contra o peito dele, como aprendera nas aulas de primeiros socorros.
Adir parecia respirar novamente.
Fora somente um susto.
Passara-se apenas um minuto.
Um minuto do mundo dos homens em que o pastor esteve prisioneiro de si mesmo.
Um minuto de eternidade em que a culpa e a dor, o remorso e o reencontro se deram numa dimensão além do tempo, do espaço, das possibilidades de Adir e sua mulher compreenderem, explicarem ou crerem.
Adir abriu os olhos, respirando com dificuldades, dando mostras de que agonizava.
- Rute, pelo amor de Deus!... - exclamou, com a respiração ofegante.
Eu fui ao inferno, Rute.
Eu estive no inferno e fui libertado por um anjo de Deus.
Eu vi o Carlos...
0 velho pastor fez leve careta e tornou a sentir o coração falhar.
- Deixa disso, Adir.
Agora não é hora para isso, homem!
Vamos orar. Eu vou pedir a Deus um milagre em sua vida...
E antes que Rute pudesse sequer formular uma frase, Adir deu o derradeiro suspiro.
A respiração parou definitivamente, para não mais voltar.
Rute chorava, gritava pelo sangue de Jesus.
A vizinhança se alvoroçou.
Depois de alguns minutos, o corpo do pastor era levado pela ambulância, dado como morto.
0 coro dos fiéis entoava uma música nostálgica, falando do paraíso, dos salvos, dos eleitos.
Os filhos não vieram - não souberam, não puderam ou não quiseram vir, nem naquele dia nem nos demais.
Rute nada sabia sobre o destino deles, nem mesmo de Carlos, a quem tanto amava, embora houvesse permanecido silenciosa e inerte quando ele mais precisou.
E Adir partia, com algo terrível como segredo.
Um segredo que somente ele conhecia, guardado em sua memória, a memória espiritual.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 05, 2018 10:40 am

0 corpo foi levado para o hospital.
A esposa ficara, tomando providências, preparando o enterro, a documentação... Sofrendo?
Ninguém sabe.
Aliviada? Possivelmente.
Só se sabe que não chorava mais.
Que coisa estranha, essa.
Se chorou na hora da morte, foi alguns minutos apenas; depois, já não chorava.
Ou as lágrimas secaram ou, então, se sentira aliviada, liberta; possivelmente se sentisse desprezada, talvez pela própria vida.
Era algo assim melancólico, trágico, porém sem saudades.
Deveria dar cabo dos afazeres relacionados à morte, ao enterro.
Planear o velório, as comidas, a cova.
Até mesmo o cortejo com os hinos, o carro de som que anunciaria pela vizinhança a morte do pastor, o servo de Deus.
0 defunto nem havia ainda defuntado, e os fiéis já estavam se mexendo, remoendo as lembranças, cantando qualquer coisa que recordasse esperança e fé.
A cova e o coveiro também foram, por sua vez, devidamente acertados.
Deveria ser um coveiro convertido, baptizado.
Assim quisera o pastor, assim deixara claro nas suas pregações, no seu palavreado de crente convicto, salvo e consagrado.
Mas o morto não merecia todo esse cuidado.
Ao menos, assim pensava Rute.
Liberta, de alma lavada, após os primeiros gritos, o choro arrumado, o pranto sofrido de alguns minutos apenas.
Era o desespero de quem se vê sozinha na vida; mas, afinal, quem precisa de um companheiro como aquele?
Que espreme, aperta, sufoca, cobra e maquina a perdição junto com o mais velho demónio do inferno?
Pois assim foi que ouviu, durante toda a vida de casada, sobre aqueles que se perderiam caso renegassem não Jesus, propriamente, mas o que a igreja ensina a respeito dele.
E Rute respirava o suspiro, o respiro, a aragem experimentada somente pelas aves libertas, como liberta se sentia, da gaiola das crenças impostas.
Enquanto isso, Adir pairava mais além, sensível aos sentimentos que para trás deixara, inspirara, naqueles a quem dizia haver conduzido aos braços do Pai.
Foi assim que o velho pastor partiu, deixando como herança somente a sua igreja com os fiéis, à mercê de qualquer outro pastor ou missionário que tivesse a coragem de substituí-lo, de sagrar-se comandante daquele batalhão de almas crentes, dedicadas, acostumadas a serem guiadas, moldadas a ferro e a fogo.
Mas Rute, a mulher do pastor, ao relembrar o filho expulso, os filhos que se foram, entregou-se à amargura.
Não verteu mais nenhuma lágrima, mesmo havendo antevisto o futuro, provavelmente, na solidão.
Não se permitiu chorar.
Nem mesmo de saudade.
Não quis sofrer a dor da perda mais uma vez.
Apenas a experimentou como uma gota amarga, mas não mais do que uma gota.
E se entregou à angústia, à escravidão mental e emocional - esta, outra forma de dor.
Por Adir não sofreria mais.
Não espernearia, não gritaria mais do que o fez para chamar a atenção da vizinhança e dos irmãos, na ocasião da partida.
Mais não faria. Mais não sofreria.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 05, 2018 10:41 am

Não por ele, o morto, o algoz de sua alma.
Assim considerava, velada ou acanhadamente.
Aceitou a morte do pastor com resignação.
E se esforçaria para não lembrar mais, para não sofrer mais.
Adir se viu sozinho em meio aos pensamentos, às emoções conturbadas, aos sermões decorados sob a luz estrelas ou do fogo de algum lugar ermo, do averno, talvez na antecâmara deste.
Não fora capaz de inspirar nem mesmo as lágrimas de alguém para chorar por ele de maneira genuína, sentimental, verdadeira; nem mesmo lembranças ternas deixara.
Apenas o alívio que sua morte causou na mulher a quem dominara a vida inteira. Nada mais.
A morte de Adir sucedera, tanto para a esposa quanto para muita gente da congregação, não como a passagem a outro mundo ou o ingresso num presumível paraíso.
Ele tão somente passara do presente para o pretérito, demarcando nada mais que o emprego de novo tempo verbal, facto este nem sempre compreensível por aqueles com quem conviveu.
Simplesmente ingressara, de maneira irremediável, no passado das vidas de todos.
Principalmente nas de Rute, dos filhos perdidos e como salvos tidos, da mulher que se enterrara não na cova com o marido, mas nas teias da solidão escura.
A morte de Adir se restringira ao mundo asséptico da igreja, das crenças impostas, vigiadas, quase mortas de tão rígidas, como ele mesmo talvez estivesse naquele momento.
E assim, como personagem de uma história, a sua história, ele jamais conseguiria reverter o facto de que modificara para sempre sua localização geográfica, na gramática da vida, do tempo presente ao passado indefinível, na vida daquelas pessoas.
Adir dormia... além da sepultura, além da morte, num país chamado saudade.
Entre as estrelas do firmamento, Samuel - ou melhor, Carlos - embalava o espírito do pai, que, adormecido, sonhava com todos os detalhes possíveis; sonhava, em todas as cores do arco-íris, com os factos vividos, as emoções sentidas, as saudades reprimidas.
De alguma maneira e para a surpresa de Adir, ele fora recebido pelo próprio filho que expulsara do lar.
Adir sonhava, tinha pesadelos; enfim, via a própria vida transcorrer nas telas mentais como um filme, de trás para frente.
As imagens exibidas pelo fantástico poder da memória espiritual mostravam um homem arrependido, transfigurado pelo remorso, pela saudade, pela vontade de acertar.
Ele teria nova oportunidade, nova chance de se redimir.
Quem sabe, voltaria na nova existência como alguém ainda em dúvida quanto às próprias emoções; quem sabe sua consciência o abonaria para reencarnar como médium, a fim de auxiliar outras pessoas a se reencontrar ou, então, para combater o preconceito de que fora veículo?
Quem sabe, ainda, renascesse não como um espírito índigo, mas, talvez, como um espírito cor-de-rosa, como gay?
Quem sabe, quem sabe?!...
Somente se saberia de tudo isso, com certeza, no próximo minuto.
Numa próxima vida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex Jan 05, 2018 10:41 am

NAS AVENIDAS do Rio de Janeiro, uma ambulância corria a toda velocidade.
Dentro dela, um rapaz fora quase ressuscitado, após um acidente.
Hugo voltara à consciência.
Ficara durante um minuto desacordado, um minuto apenas, porém o suficiente para absorver intuições e inspirações.
Diante do impacto do carro no poste, perdera a consciência física, mas aquele minuto havia tido a máxima importância para o resto de sua vida.
Durante o transe em que aparentava perda da lucidez, recobrou o sentido da existência.
Permanecia na ambulância, sendo levado em direcção ao hospital.
- Conseguimos tirá-lo de lá consciente, graças a Deus! - falou um dos paramédicos.
- Agora precisamos localizar a família.
- Já liguei e falei com a irmã do rapaz.
Ele se chama Hugo.
- E como você sabe disso? Como conseguiu o telefone da família?
- Peguei o celular que encontrei embaixo do assento do carro.
Por sorte, não estava bloqueado.
Localizei um telefone de emergência, e quem atendeu foi a irmã dele.
Ela já está a caminho do hospital.
Hugo foi levado para uma unidade de emergência, a fim de ser atendido conforme o protocolo.
No entanto, logo foi transferido para o Hospital Samaritano, a pedido da irmã.
Foi para lá que ela se dirigiu, juntamente com Ralph, o primo recém-chegado de Nova Iorque.
Assim que chegou ao hospital, o rapaz recebeu logo um sedativo; os familiares só puderam vê-lo bem mais tarde, quando amanheceu o dia.
Kelly entrou no quarto onde o irmão estava, acompanhada de Ralph.
Encontraram Hugo ainda adormecido, com uma das pernas engessada e vários ferimentos espalhados pelo corpo; entretanto, estava bem cuidado, com os devidos curativos.
Dormia profundamente.
Kelly olhou para o primo sem saber o que fazer, como a pedir socorro:
- Meu Deus, eu não sei como ele conseguiu chegar aonde chegou.
Saiu tão desequilibrado lá de casa...
- Não se preocupe, minha prima - falou Ralph, aconchegando-a nos braços.
Vamos nos inteirar de tudo com o médico, assim que algum aparecer por aqui.
Parece que Hugo escapou por pouco.
Graças a Deus, o airbag funcionou bem.
Além disso, ele deve ter alguém lá em cima que olha por ele.
Do carro não sobrou muita coisa, pelo que ouvi.
- Nem me fale, Ralph. Nem me fale.
Queria aproveitar e lhe pedir um favor.
- Fale, minha querida.
Sabe que eu faço qualquer coisa pra ajudar.
- E algo que me incomoda muito ter de pedir a você, mas, nesta situação, não sei qual seria a melhor coisa a fazer.
- Peça, fale logo, antes que me deixe louco.
Já estou a ponto de explodir com tudo que aconteceu nesta noite.
- Queria lhe pedir para ficar lá fora um pouco.
Você viu o estado alterado em que Hugo se encontrava lá em casa, durante a recepção que preparei com muito carinho pra você.
Tenho medo de ele acordar de repente, ver você aqui e...
- Está bem, Kelly, está bem!
Mas eu não queria ficar de fora desta situação.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 08, 2018 9:36 am

Mesmo correndo o risco de ele se alterar comigo mais uma vez, eu daria tudo pra ficar ao lado dele agora Ralph falou emocionado, bastante sensibilizado ao ver o primo naquele estado.
- Mas você faria isso por mim? - perguntou Kelly, demonstrando real preocupação com o jeito como o irmão acordaria ao ver o primo, com o qual não se dava nada bem.
- Na verdade, eu não sairia, caso você não me pedisse com tanta insistência.
Prefiro enfrentar uma possível crise de fúria de Hugo a deixá-lo aqui, mas...
- Mas eu ficarei de plantão perto dele.
Além do mais, você vai estar logo ali fora, na sala de espera...
Enquanto conversavam, Hugo foi retornando do efeito do medicamento.
Acordara, embora devagar, mas o bastante para escutar parte da conversa de Kelly com o primo. Balbuciando, reuniu forças e articulou, forçando para ser ouvido:
- Deixe ele ficar, Kelly!
Quero que Ralph fique aqui, também...
Os dois voltaram-se assustados para Hugo, que tentava se mexer na cama, mas mal conseguia movimentar a cabeça.
0 acidente deixara-o muito fraco e debilitado, com várias partes do corpo afectadas, ainda que temporariamente.
- Hugo!... - exclamou Ralph.
Graças a Deus, você está bem!
Quer dizer, está se recuperando.
0 que aconteceu com você?
Me conta, está se sentindo bem?
Esboçando um riso que mais parecia uma máscara estampada em seu rosto, Hugo tentou responder:
- Fui um louco Ralph, um louco e sem responsabilidade!
- Pare com isso, meu irmão - intrometeu-se Kelly na conversa.
- É isso mesmo, Kelly.
Eu fui um irresponsável!
- enquanto falava, Ralph se aproximou de Hugo e, num gesto mais de delicadeza do que de carinho, tocou-lhe a mão levemente.
Logo foi correspondido por Hugo, que lhe apertou os dedos, mesmo com poucas forças.
- Quero lhe pedir perdão, Ralph.
Fui inconsequente e mal-educado com você.
Me perdoe, cara! - falou olhando directamente nos olhos do primo, agora, no entanto, com um olhar que dizia muito mais do que palavras.
- Que é isso, rapaz!? - falou Ralph, comovido com a postura diferente do primo, até mesmo delicada, pela forma como o olhou e segurou sua mão.
Não guardo nenhum rancor.
0 que importa mesmo é que você saia logo daí.
Afinal, tem muitas meninas lá fora, loucas para te ver, e você tem muito o que aproveitar da vida.
Fique bom, que isso já é suficiente.
Pensando um pouco e com uma discreta lágrima descendo-lhe a face, Hugo falou ainda, com voz entrecortada:
- Não quero saber de visita de menina alguma.
Quero que vocês fiquem ao meu lado - tossiu um pouco, aumentando assim a dificuldade que tinha para se exprimir.
Quero que especialmente você fique ao meu lado - disse, olhando novamente para Ralph.
Kelly olhou para Ralph sem entender o que se passava, mas feliz, pois Hugo parecia haver se modificado muito após o acidente.
Disso não restava dúvida!
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 08, 2018 9:37 am

Parece até que vira algo, um fantasma ou qualquer coisa do género.
Mas que mudara, mudara.
Ralph não conseguiu conter mais as lágrimas, bastante emocionado com a reacção do primo, e então chorou.
Talvez desabafando todo o conteúdo emocional represado durante os poucos momentos que passara junto de Hugo e Kelly, desde que retornara ao Brasil.
Liberava toda a tensão gerada pela forma como o primo o tratava, feliz porque a situação se modificara por completo.
- Não se preocupe, meu primo.
Ficarei a seu lado o tempo que puder.
E realmente foi assim.
Por quinze dias, Ralph e Kelly ficaram juntos no hospital, num apartamento que acomodava acompanhantes.
Dia a dia Hugo parecia melhorar; em diversos momentos, olhava para Ralph de maneira diferente, quase pedindo para ficar a sós com o primo.
Mas a irmã não arredava pé.
No fundo, tinha medo de uma recaída de Hugo, de que ele em algum momento viesse a tratar mal o primo.
Mas Hugo nem de longe pensava em voltar atrás.
Conversavam sobre quase tudo. Hugo queria saber, aos poucos, das novidades na vida de Ralph e do restante de sua família, que havia permanecido no outro continente.
Alguns dias mais, e Hugo foi liberado do hospital com algumas recomendações médicas.
Saiu daquele acidente totalmente transformado, de corpo e de alma. Levado para casa, exigiu que o primo deixasse o hotel e ficasse com eles em casa; porém, Ralph se recusou terminantemente.
Estava bem instalado e não queria, de forma alguma, causar transtornos para a família.
Kelly teve de se ausentar um dia, deixando Hugo aos cuidados de Ralph. Hugo já se levantava, caminhava sozinho e conseguia, até certo ponto, retomar os movimentos e a autonomia, mesmo que sob cuidados médicos e fazendo uso de medicamentos.
Tudo aconteceu numa tarde em que Ralph descansava na sacada, observando o movimento na orla, ao longe, quando Hugo se aproximou devagar, quase subtil.
Percebendo a presença do primo, Ralph se sentiu subitamente desconfortável, pois também não esquecera o que ocorreu entre eles dez anos antes.
E como Hugo modificara radicalmente o comportamento ao longo desses anos, Ralph tinha receio de que sua presença pudesse, de algum modo, perturbar o primo - logo agora, quando a relação entre ambos parecia restabelecer-se, com uma amizade incipiente e uma aproximação mais tranquila.
A mudança recente se devia ao acidente de automóvel no qual Hugo se envolvera, quase perdendo a vida.
Retomara a consciência surpreendentemente transformado, como se algo houvesse ocorrido com ele enquanto esteve em estado alterado de consciência, após o acidente.
Ralph não entendia dessas coisas e não queria deixar seus pensamentos vagarem por essas vias.
Seja de que forma fosse, tinha medo da eventual aproximação do primo.
Queria que tudo transcorresse com mais vagar, respeitando os limites de Hugo.
Em suas cogitações Ralph foi surpreendido pela atitude do primo. Hugo achegou-se, tocando ligeiramente e quase trémulo o ombro de Ralph, que se assustou com o gesto inesperado.
Conversando qualquer coisa sem muita importância, Hugo permitiu que a mão deslizasse pelo ombro de Ralph, como se estivesse esboçando certo carinho.
O coração de Ralph quase explodiu, e a taquicardia se manifestou, ante o assombro com o carinho explícito do primo.
Era mesmo uma carícia, afinal?
Sim, não havia margem para dúvida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 08, 2018 9:37 am

Facto é que não teve palavras para dissuadi-lo, tampouco pôde evitar.
Estava paralisado com o gesto.
Hugo continuou observando a orla enquanto suavemente tocava o primo, tentando disfarçar, com as palavras, a ternura que desejava transmitir, embora não tivesse muito jeito com isso.
Principalmente com outro homem.
E quanto mais esboçava o carinho reprimido a duras penas, durante dez anos, mais Ralph parecia petrificado, até que, de um momento para outro, começou a tremer, devido à tensão.
- Desculpe, primo - falou Hugo, ao notar o nervosismo de Ralph.
Eu não queria causar constrangimento em você.
É que se passou tanto tempo, e eu fui tão...
Ralph voltou directamente o olhar para o primo.
Procurou encarar a situação com o máximo de naturalidade, ficando frente a frente com o improvável Hugo.
Os olhares se cruzaram, se fixaram e, neste momento, os corações de Hugo e Ralph pareceram disparar.
Havia uma comunicação não verbal, não articulada, mas perfeitamente eficaz e compreendida.
Os corpos de ambos pareciam, agora, corresponder às emoções que agora afloravam, após anos de repressão.
Ralph manteve-se de pé, respirando fortemente, demonstrando tanto seu nervosismo quanto seu desejo, que explodia manifestando-se no corpo jovem através do suor, da musculatura retraída, não relaxada, pulsante de vida.
Pela primeira vez, Hugo se permitia sentir a resposta física de suas emoções direccionadas a outro homem, sem barreiras, sem dramas, sem nada que pudesse nublar suas intenções, sem a necessidade de esforço para dissimular sua atracção, seus desejos agora revelados pela exuberância do corpo, que falava muito mais do que qualquer palavra.
A proximidade com Ralph lhe provocava um leve tremor; o cheiro do primo fazia com que seus hormônios entrassem em ebulição.
Estavam tão próximos que foi impossível para Ralph ignorar o facto de que Hugo experimentava uma erecção, enquanto seus corpos se atraíam um pelo outro com um magnetismo irresistível.
Não suportando mais, Hugo beijou o primo mais uma vez.
Desta vez, dez anos após o primeiro contacto, porém, beijou-o sofregamente, com toda a volúpia de sua alma, que arrebentou a represa criada para impedir que se assumisse e reconhecesse sua paixão, enquanto recorria à mentira, à repressão e à homofobia.
Ralph também não resistiu.
Agarrou o primo, ignorando por um instante que ele talvez ainda sentisse dor, devido ao acidente; mesmo assim, tomou-o nos braços e o conduziu ao leito.
Ali, seus corpos se tocaram e, tocando-se, abraçaram-se, enquanto Hugo delirava com o prazer que despertava nele, em cada célula, cada átomo.
Não imaginava que outro homem pudesse fazê-lo se sentir assim, tão intensamente vivo; jamais cogitara que um corpo masculino pudesse suscitar sensações de prazer indescritível como as experimentava.
Naquele momento, só havia ele e Ralph, que não se sentia nem um pouco inibido ao demonstrar seu carinho, mostrar sua virilidade e penetrar a alma de Hugo, tanto quanto seu corpo, numa explosão de prazer, sensualidade e magnetismo, intenso magnetismo, coagulado e depois liberado em cada gota de sémen, que parecia escorrer como a lava de um vulcão, numa erupção dos sentidos.
Hugo gemia de prazer.
Intimamente, confessava a si mesmo que nunca experimentara tamanha sensação de plenitude, tão genuína e intensa, quanto nesse contacto arrebatador dos sentidos, que acontecia, que vivenciava com Ralph.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 08, 2018 9:37 am

Após os longos momentos em que trocaram suas energias mais íntimas, os fluidos corporais exsudados pelo calor da paixão duramente reprimida, beijaram-se ternamente; tão mágica e suavemente que esse ato conseguiu romper de vez qualquer possível barreira que restasse na intimidade de Hugo.
Agora descansavam sobre a cama, abraçados, como dois namorados, como dois amantes.
Ralph não saberia dizer quais pensamentos se passavam em sua cabeça, porém, de uma coisa sabia: sentia-se feliz.
Imensamente feliz.
Passada mais de uma hora em que os dois ali estavam, já quase adormecendo, curtindo ainda o transe hipnótico da presença do outro, sem palavras, sem desculpas, sem barreiras, ouviram os passos de Kelly, que adentrava o apartamento sem nenhum porquê que a levasse a disfarçar sua presença.
Ralph olhou para Hugo, como a esperar dele uma reacção, talvez na tentativa de esconder o que houve entre ambos, mas foi surpreendido mais uma vez.
Hugo levantou-se devagar, quase devagar demais, beijou longamente a boca de Ralph e envolveu-se numa toalha que pegou no closet.
Deu alguns passos de volta até o primo e segurou-lhe a mão, estimulando-o a levantar-se também.
Ofereceu-lhe outra toalha, 395 na qual se abrigou.
Quase arrastado, dirigiu-se à sala, tendo a mão puxada por Hugo. Um gesto realmente inesperado.
Quando Kelly viu os dois entrando na sala, enquanto arrumava algumas sacolas de compras, parou imediatamente, estupefacta.
Arregalou os olhos, literalmente, ao ver seu irmão, que se comportava como machão, que havia sido tão rude com o primo, protagonizando aquela cena.
Ambos enrolados em toalhas bem ali, ao alcance dos olhos, revelando, com inquestionável evidência, que trocaram intimidades.
Mas Hugo não deu tempo de Kelly falar absolutamente nada.
Nem mesmo perguntando a Ralph se ele queria ou não mostrar-se assim para a prima, agiu mais do que falou.
Na frente de Kelly, beijou o primo, abraçando-o e sendo correspondido por ele automaticamente, quase mecanicamente, para em seguida falar com a irmã:
- Não se assuste, irmã.
Resolvi assumir meu amor por Ralph, assumir que sou gay, homossexual, bicha mesmo!
E vendo o espanto, quase o choque da irmã, arrematou, com leve sorriso.
- Tudo aquilo que eu falei no passado contra Ralph, chamando-o de boiola, de bichinha, de todo adjectivo que encontrei para fazer com que se sentisse diminuído, eu agora estou experimentando.
Era disfarce, fuga, máscara mesmo.
Kelly ria, devido ao nervosismo.
Ria a plenos pulmões.
Ria como nunca rira em toda a sua vida.
Abraçando os dois, falou para o irmão, num tom de brincadeira:
- Então eu tenho um irmão boiolinha, uma moça!...
Rindo os três juntos, Hugo arrematou:
- Uma moçoila!
E riam gostosamente.
Nos bastidores da vida e desses acontecimentos, amigos invisíveis presenciavam o encontro entre Hugo, Ralph e Kelly.
Haviam disposto guardiões em tomo do apartamento, a fim de impedir o acesso de outros espíritos com segundas intenções, que pudessem bisbilhotar o ambiente e interferir nos momentos de intimidade dos dois primos, das duas almas que se reencontravam.
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O PRÓXIMO MINUTO/Ângelo Inácio - Robson Pinheiro - Página 6 Empty Re: O PRÓXIMO MINUTO/Ângelo Inácio - Robson Pinheiro

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 08, 2018 9:37 am

Um campo invisível, porém perceptível a qualquer espírito, envolvia o quarto de Hugo e só foi desfeito esse campo de força quando os dois deixaram o ambiente.
0 momento íntimo de ambos serviu para Hugo e Ralph se reabastecerem, na troca energética proporcionada pelo encontro íntimo.
As demais energias ali liberadas foram dispersas na atmosfera, de modo que nenhuma entidade vampirizadora pudesse sugar ou roubar os fluidos exalados e exsudados no local, que estava preservado de absorções energéticas indevidas.
Samuel, Arthur e Nestor retiraram-se do ambiente satisfeitos, porque Hugo havia solucionado alguns de seus desafios mais ásperos.
Outros restavam a enfrentar, é claro, mas, com a presença de Kelly e Ralph em sua vida, por certo teria muitos instrumentos para solucionar os obstáculos naturais de sua caminhada.
A Ralph, restava resolver a situação com o amigo de Hugo, Sebastian, que se aproximara dele.
Mas esse capítulo ele deixaria para mais tarde, para outro dia, quem sabe, para o próximo minuto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 08, 2018 9:37 am

CÉSAR ACORDOU do desdobramento ainda com imagens vívidas na memória.
Retomou o corpo físico pretendendo, em alguma medida, escrever sobre o pouco que lembrava.
No entanto, o barulho lá fora, o burburinho de alguns grupos, esfuziantes em virtude das festas que ocorriam em toda a cidade após a Parada Gay, nas baladas da noite, não o deixaram tranquilo o bastante para registrar as ocorrências das quais se recordava.
Não obstante, voltou com ânimo renovado, com energias revigoradas e uma disposição tão boa que quase não se reconhecia.
Do outro lado da vida, numa dimensão próxima, Samuel procurou deixar tudo preparado.
Não abandonaria César, pois afeiçoara-se a ele.
Pediu a dois guardiões que o acompanhassem no regresso ao corpo.
Mas pediu, também, que providenciassem algo mais.
Uma surpresa agradável para o rapaz que ainda não havia se assumido, nem descoberto seu caminho.
Samuel temia que César se envolvesse com a pessoa errada e recebesse a influência de alguém que pudesse, de alguma forma, complicar-lhe a vida espiritual.
Dessa preocupação César nada sabia.
Porém, os guardiões mexeram alguns pauzinhos nos bastidores enquanto César ainda permanecia pensativo em seu quarto, num hotel muito simples nos arredores da Bela Vista, em São Paulo.
0 tempo se passou, e César conseguiu um emprego muito bom numa empresa da capital.
Estabelecera-se, montara o próprio apartamento, embora as dificuldades esperadas; mas sentia-se optimista.
0 tempo transcorria, enquanto, nos bastidores da vida, os acontecimentos eram observados, acompanhados de perto pelos amigos espirituais de César.
A festa de casamento de Igor, amigo de uma amiga que se mudara para São Paulo havia sete anos, já era um evento esperado.
0 rapaz se casaria na semana seguinte com a mulher de seus sonhos.
"Hétero convicto e praticante", afirmava sempre, namorou durante cinco anos a menina de sua vida, como costumava chamá-la; resolveram, depois de alcançar certa estabilidade financeira, enfrentar o casamento.
Ou seja, decidiram em comum acordo que queriam, desejavam viver juntos, além de se casar com pompa e circunstância, conforme manda o figurino.
Tudo fora preparado com esmero por ambas as famílias.
Igor se casaria, finalmente; concretizaria o sonho de constituir uma família.
Ana Cristina sentia-se realizada, pois, transcorridos cinco anos entre namoro e noivado, muito planeamento e uma vida em comum satisfatória com Igor, só lhes restaria selar suas vidas, seu compromisso um com outro, com a bênção do sacerdote.
Os convidados foram todos escolhidos a dedo e, entre eles, a amiga de infância Isabelle, a quem devia muito.
Fora através dela que conhecera Igor, por quem se apaixonara e com quem resolvera se casar.
Convivia bem com a família dele.
A sogra, uma empresária de sucesso, fez questão de bancar a lua de mel.
Igor estava radiante e, somente depois de muita insistência por parte de um amigo próximo, é que concordou em fazer a popular festa de despedida de solteiro.
Mas queria algo diferente.
Nada de extravagâncias, nada de exibições.
Queria a presença de seus amigos e dos amigos de Ana Cristina.
A essa altura, César havia se conformado com a morte da única amiga com quem conseguira se abrir.
Decidira que não se envolveria amorosamente com ninguém; isso seria fácil para ele - assim pensava -, pois ainda não havia tido nenhuma experiência sexual com outro homem.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 08, 2018 9:38 am

Considerava-se gay, mais na teoria do que na prática.
Então, pensou, não seria difícil encontrar uma namorada, alguém com quem pudesse dividir as emoções, a vida e as aspirações.
Assim pensou e confidenciou a uma amiga distante, que encontrara, por acaso, passeando em São Paulo.
Tentou se expor o mínimo possível.
Isabelle o convidou para uma festa de quase casamento, como ela diria mais tarde.
Era uma despedida de solteiro; ali, ele certamente teria oportunidade de conhecer e se entrosar com outras pessoas e outras mulheres. César estava resoluto.
Ele tinha, algumas vezes, suas horas tristes, de instabilidade emocional e melancolia, mas não se entregava à depressão, pois não tinha tempo para isso.
Precisava trabalhar para sobreviver na cidade grande.
Vez ou outra, revoltava-se contra a monotonia da vida que escolhera levar, dos dias e meses que se desfolhavam iguais em tudo, sempre iguais...
O corpo, cansado após a jornada no trabalho que conseguira na capital, não reagia; o pensamento vagava por ondas, preguiçosamente perdido em imagens e pensamentos variados, coloridos pela ideia romântica de encontrar uma mulher que o fizesse feliz.
E ele estava numa idade em que as alegrias e prazeres da mocidade estavam em ebulição; isso não podia negar.
A frieza e o desinteresse pelas coisas materiais, por uma vida sexual activa, estava longe de ser realidade, ao menos para César.
Espírita convicto, médium de excelentes faculdades, encontrara um local que poderia frequentar; logo fez amizades, e foi admitido no grupo de estudos mediúnicos.
Por causa do suposto compromisso espiritual, renunciava a certos divertimentos do mundo, exagerando nas suas obrigações espirituais.
Mas, mesmo desejando encontrar uma parceira com quem pudesse compartilhar a vida e desenvolver uma experiência sadia, tinha medo de apaixonar-se.
Fugia do risco de amar, de levar para casa, para o gozo do corpo e da alma, uma pessoa parceira, uma mulher que pudesse ser-lhe um apoio emocional passageiro.
Queria alguém com quem pudesse construir um futuro.
Havia se decidido interiormente e relegado aos escaninhos da memória, nas profundezas do inconsciente, qualquer pretensão de uma vida homo-afectiva, de um relacionamento do género.
Escolhera ser feliz da forma como agora concebia.
0 seu jeito de se relacionar com as pessoas, aparentemente frio, dava-lhe muitas vezes, ainda que de modo passageiro, um ar de rigidez emocional, muito em contradição com seu desejo interno de se abrir a novas possibilidades de relacionamento.
No dia a dia era calmo, e tinha sempre um jeito todo seu, uma muleta psíquica ou máscara que usava com muito cuidado, a fim de não trair as horas de enlevo, de fantasias, em que lhe passavam pela mente desejos e idílios irrealizáveis, segundo sua nova proposta de vida.
Sua pele e sua carne apresentavam o vigor de um fruto verde, que clamava por carícias e toques sensuais.
Quando se deitava, sozinho nas noites frias, estendia-se na cama com certo torpor, uma moleza, uma languidez somente compreendida como fruto de um desejo duramente reprimido, do tesão dos seus órgãos, da sua pele, da sua alma, que clamava por outro corpo, outra vida com quem compartilhar aquele frescor de juventude, no frescor e entusiasmo dos seus 30 anos de idade.
Embora a determinação de não se entregar a outro homem, era visto nele um encanto diferente e delicado, que ninguém afirmaria ser produto de subtilização das energias da alma.
Não! Ele todo era sensibilidade, e seu jeito de andar, de sorrir ou dizer as coisas denunciava a identidade energética da própria alma.
Num domingo de agosto daquele ano, recebeu o convite da amiga Isabelle para ir à festa de despedida de solteiro.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 08, 2018 9:38 am

E para lá se foram os dois, muito se divertindo, e ele, deveras excitado, considerando a oportunidade de conhecer gente de fora do círculo religioso a que se filiara.
Apresentado a vários amigos de Isabelle, à própria noiva, que também não abriu mão de, muito rapidamente, dar uma passadinha na festa do noivo, César sentou-se na sala de estar, muito bem iluminada, a partir de um projecto especial, pois o noivo era arquitecto de interiores e se esmerara na decoração do ambiente onde moraria após a lua de mel.
Estendido numa chaise longue, perto da janela, pôs-se a observar as pessoas enquanto conversava distraidamente com um dos convidados, que, como ele, também fora levado por um amigo do noivo.
Não poderia negar que estava vivendo um de seus momentos de melancolia; almejava algo indefinível, que não poderia precisar exactamente o que era.
Mas aquela festa viera a calhar, pois não queria permanecer assim, melancólico, triste, sem saber o porquê.
Talvez, o estado emocional que lhe tomava de assalto fosse produto de uma revolta muda contra a prisão mental de uma vida sem emoções; contra aquele propósito de enterrar sua mocidade e sua juventude, de banir seu vigor e sua masculinidade pujante para longe dos gozos e dos prazeres chamados mundanos.
0 seu olhar percorria superficialmente todo o ambiente.
Não conseguia se divertir com as brincadeiras promovidas pelo amigo do noivo, e este, até então, não aparecera.
Parecia uma noiva ao se preparar, tanto demorava.
Foi assim, nessa languidez mental, que, de súbito, estancou o olhar num ponto.
Por muito tempo, não despregou os olhos de um rapaz alto, moreno como jambo, de uma cor bem brasileira, olhando-o e encarando-o, até sua amiga Isabelle tocar-lhe mais intensamente numa das mãos, chamando-o à realidade.
Voltado para o homem que aparecera de repente, como se houvesse se materializado à sua frente, ele continuou imóvel, com os braços lassos estendidos sobre o sofá.
Mirava-o com o pensamento erradio e as emoções em revoada, como pássaros num dia de verão, que o desnudavam perante os outros; como uma pessoa abstracta, ora pensativo, ora concentrado na aparição à sua frente.
Não havia como ignorar a situação. Isabelle notou que César era correspondido.
Estranhamente correspondido por Igor, que adentrava o ambiente completamente vestido de branco, com uma bermuda que lhe realçava a pele, as pernas bem feitas, musculosas, ao passo que a camisa, meio aberta ao peito, mostrava o vigor de sua juventude pululante de vida e abraçava um invejado tórax, com alguns poucos pelos sobressaindo, sem exagero.
A noiva, Ana Cristina, já se despedia dos convidados para deixar Igor mais à vontade entre os amigos e amigas.
Ela própria também faria uma despedida de solteiro semelhante.
Alguns amigos jogavam um jogo de cartas num canto, mas notaram perfeitamente quando Igor entrou.
A noiva não teve como ignorar os olhares cruzados, estranhamente cruzados, como presos por intenso magnetismo que entrelaçava ambos.
Entretanto, ninguém supôs algo tão estranho como uma atracção sexual ou emocional entre ambos, pois todos sabiam da fama de mulherengo e da identidade sexual de Igor.
Ele jamais tivera qualquer ligação com um gay ou com o universo gay.
Portanto, deduziram que os dois se conheciam de outro lugar e então se reviam, exactamente na festa de despedida.
Isabelle resolveu se entrosar com um grupo de moças que conversava num canto da sala, pois já se sentia incomodada com a situação do amigo César, para a qual não tinha explicação.
Não conhecia sua intimidade muito bem.
Igor mal ouvia, no apartamento elegante, as risadas dos alegres convidados, que se divertiam e conversavam em grupos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 08, 2018 9:38 am

Ele era o jovem, o noivo, o centro das atenções da festa.
Não obstante, encontrava-se paralisado por uma razão que não saberia explicar.
Era a primeira vez que se sentia assim, ou ao menos se percebia assim, estranhamente interessado na figura de outro homem.
Um magnetismo diferente, intenso, irresistível o ligava a César, que também não sabia como tirar o olhar de Igor.
Filho de uma mulher muito conhecida na sociedade paulistana e de um rico empresário, Igor tinha recebido dos pais uma educação viril e herdara uma genética privilegiada, que lhe conferira uma robustez invejável e saúde em todos os sentidos.
Conquistara um pequeno património por meio do trabalho profissional, recusando a ajuda da família, que lhe oferecia facilidades para avançar na carreira.
0 olhar de Igor, de repente, passou num lance rápido.
Registou os amigos e convidados, a noiva, que já se retirava, dando-lhe um beijo na face, que ficou quase ignorado.
Olhar novamente abstracto, voltado outra vez para César; ambos estavam inconscientemente reféns um do outro.
A cabeça fervilhando de pensamentos, e as emoções, em burburinho, emoldurados pelo elegante corpo e envoltos no ar de masculinidade que exalava de sua presença, como uma aura que estendia suas energias para além dos próprios limites. Assim o pensamento, para além da ideia de uma festa, ia esvoaçando, como uma pluma levada pelo vento.
Mais tarde, não saberia dizer como se voltou repentinamente, sendo seguido por César, quase hipnotizado com a aparição do noivo, enquanto os convidados mais próximos também não sabiam identificar o estranho comportamento de ambos.
E o pensamento do noivo acordara de um sonho numa outra peça do apartamento, num outro cómodo; acordara de uma visão em que jazia mergulhado havia longo tempo...
César assim o encontrou, nessa outra parte de sua residência, atraído magneticamente pela vibração varonil, pelo cheiro do homem que se materializara em sua vida, arrebentando todos os muros, todas as barreiras que, até então, tivera o cuidado de construir em torno de si.
- Igor... - apresentou-se o rapaz, que estava diante de César.
- César - respondeu, fixando mais intensamente a alma do homem que mudaria para sempre sua vida, como ele próprio também mudaria a vida daquele homem.
Era o primeiro e mais intenso contacto que Igor tivera, nesta vida, com outro homem.
E César jurara nunca procurar uma pessoa do mesmo sexo para ter qualquer tipo de relacionamento íntimo.
Decisão esquecida num átimo de segundo, no mais ardente magnetismo, do qual conhecera a mais intensa manifestação.
Partiram um para o outro sem pensar, sem raciocinar - pura emoção, reprimida por um, incompreendida por outro -, como se fossem velhos amores, advindos de outras terras, histórias entrelaçadas através do tempo; porém, sem pensar, sem meditar sobre os eventos marcantes das duas almas que se reencontravam.
E deixaram falar mais alto o viço da juventude, o furor da energia que exalava de cada um, cada qual à sua maneira.
E se apaixonaram ali mesmo.
E se beijaram sem nenhum pudor, sem nada que os impedisse.
Igor nada compreendia naquele momento, mas apenas aceitava o facto de que não conseguiria, de modo algum — como também não desejava -, impedir a aproximação de César, o entrelaçar das línguas, das almas, dos corpos mudos, mas que falavam pela linguagem do suor voluptuosamente exalado, pelo magnetismo que explodia no ar.
Entrementes, a noiva havia entrado no mesmo ambiente em que eles se encontravam.
Acompanhada por Isabelle, ela presenciara o toque, as carícias e a proximidade inconfundível dos dois.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Jan 08, 2018 9:38 am

Ei-la, a noiva, intensamente perdida, agora profundamente abalada, alarmada, porque lera nas letras da ocorrência que não mais haveria volta, que seu casamento desabara e seu sonho de mulher, pela primeira vez desde que conhecera Igor, estava para sempre desfeito.
Ela soube interpretar o que via e dali, correndo, saiu pela porta de serviço, não sendo mais vista por nenhum convidado.
Isabelle saiu junto, pois, ante o que viram - os dois abraçados, beijando-se, solene e completamente ignorando tudo e todos que porventura presenciassem o facto -, era claro que não havia nada mais a fazer.
Sem conseguir definir a sensação de forma inteligível, racional, Igor sabia que estivera todo aquele tempo à espera de César, embora desde sempre tivesse a orientação sexual perfeitamente resolvida, segundo acreditava.
Era heterossexual
e disso nunca, jamais duvidara.
Agora, teria de descobrir como se portar, como se comportar.
A ele caberia conceber novo formato para sua vida; dar satisfação à noiva, que, com certeza, sofreria muito com aquele imbróglio.
De uma coisa estava certo, porém.
Não se casaria mais.
César, naquele momento arrebatador, representava para ele tudo na vida; todo o seu mundo em um único momento.
Mas como explicar o que acontecera consigo?
Ainda não tinha respostas.
Seja como for, não poderia deixar de procurar a noiva, Ana Cristina, e conversar com ela, conversar longamente, até mesmo tentando entender suas novas emoções, caso ela o recebesse.
Como se comportaria no que diz respeito à cerimónia?
Pensava ainda nos preparativos do casório, no amor que sentira por Ana Cristina e nas ocasiões em que se encontravam em casa ou namoravam, trocando juras de amor.
Ana possivelmente ainda trazia na memória o último beijo que ele lhe dera, na boca, apaixonado, no dia anterior.
Imaginaria ela os dilemas que lhe perpassavam a cabeça?
Ele próprio não compreendia o que ocorrera consigo mesmo.
Sabia apenas que não poderia mais contrair matrimónio, sob pena de fazer infeliz a mulher a quem havia amado tanto e que prezava bastante, a despeito de qualquer coisa.
Mas e seus pais? Seus sogros?
Devia-lhes uma explicação, conquanto ele próprio não tivesse esta explicação para si.
Contudo, resolveu ser o mais claro e transparente possível.
Somente mais tarde compreenderia por que a noiva, perdidamente apaixonada por ele, não permitiu que ele contasse nem aos próprios pais nem aos dela.
Somente transcorrido certo tempo seria capaz de compreender a situação e, então, agradeceu comovido a Ana Cristina.
Ela se recusou, depois do acontecido, a conversar novamente com ele. Ela até poderia respeitar a decisão dele, mas jamais o entenderia.
E Igor se foi, esperando o momento propício para voltar a tocar no assunto.
Se esse momento ocorresse algum dia.
Enfim, ele sabia, por intuição, por uma impressão forte em sua alma, que não poderia perder César de vista, nem tampouco permitir que ele se fosse.
Afinal, naquele dia, sua vida mudara completamente.
Ana Cristina buscaria a todo custo apagar o facto da memória, principalmente a figura de Igor, casando-se logo em seguida, alguns meses depois, com outro homem, para tentar abafar a situação e disfarçar a decepção e a dor irremediável.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 09, 2018 12:52 pm

Igor assumiu seu amor por César, um amor louco, dificilmente explicável, que nascia ali, mesmo que ainda imaturo.
Em que se transformaria a vida de César, depois dessa inexplicável atracção?
Como era espiritualista, poderia atribuir esse reencontro com uma alma tão afim a uma espécie de programação espiritual?
Não saberia dizer.
Embora fosse espírita convicto, estudioso, não era nada afeito a especulações místicas.
Preferiu nem pensar no assunto sob esse ângulo.
Os dias foram se sucedendo assim, com César junto a Igor, sem comoções que os marcassem.
César descobria diariamente, nas conversas que demoravam noite adentro, que Igor era um bom homem, pacífico e, sobretudo, transparente e honesto com seus sentimentos.
Aproximavam -se cada vez mais; descobriam-se mais ainda, à medida que o tempo passava.
Igor nunca estivera tão íntimo de outro homem.
Nunca se permitira uma proximidade sequer, um carinho, quanto mais um afago tão intenso como os que experimentavam.
Por um mês os dois apenas se encontraram, trocaram beijos, carícias e afecto; compartilharam suas experiências de vida. Somente depois César sentiu-se preparado para o contacto mais íntimo com o namorado.
Conversavam sobre tudo: a vida no Paraná, as experiências com a mediunidade, a busca por espiritualidade, incluindo as dúvidas e indefinições a respeito da sexualidade e sua insegurança, enfim.
Nesses diálogos César descobriu imensa afinidade com Igor.
Ele era budista; portanto, como espiritualistas, tinham muito a compartilhar e poderiam se ajudar mutuamente.
Foi numa noite fria que resolveram selar seu amor, no primeiro encontro mais íntimo desde o início do namoro, no apartamento de Igor.
E César pôde conhecer sem traumas o amor, o sexo, o compartilhar de emoções.
Descobriu que entre dois homens poderia haver muito mais cumplicidade, muito mais afecto e amor do que muita gente supunha.
Vez ou outra, porém, repercutia em sua tela mental a imagem da amiga Patrícia.
Foi inspirado numa dessas recordações que resolveu retornar à cidade onde morou, em visita, viajando na companhia de Igor, agora seu namorado, seu amor e a pessoa que elegera para dividir a vida e compartilhar a caminhada.
Ao desembarcar no Aeroporto Internacional Afonso Pena, em São José dos Pinhais, já sentiu algo diferente.
Sua sensibilidade parecia mais aflorada, mais intensa.
Queria ir directamente ao local onde vivera e visitar a mãe de Patrícia.
Sentia necessidade de confrontar agora a mulher da qual trazia pálida lembrança, apenas uma sensação alusiva ao passado, quando compartilhou das memórias da amiga desencarnada, enquanto ele esteve em desdobramento.
Embora Igor quisesse ficar em Curitiba, a fim de conhecer melhor a cidade, que achava muito charmosa, César fez questão de seguir directamente para Colombo, município localizado na região metropolitana da capital paranaense.
Igor apoiava César integralmente, sobretudo nas questões emocionais, pois este precisava, de alguma maneira, ver aquela que no passado usara e abusara dele.
Embora considerasse haver superado tudo, principalmente a partir da presença do namorado em sua vida, queria a todo custo visitar a mãe de sua amiga.
Repercutia em sua mente alguma coisa do que ouviu e testemunhou durante o transe, no momento em que, ao lado de Samuel, percebeu o passado de Patrícia e como ele próprio havia participado intensamente da história de vida dela e do espírito que lhe dera à luz.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 09, 2018 12:52 pm

Retornou ao antigo lar da amiga para ver a mulher que deveria estar sofrendo com a falta da filha.
César lembrava-se de alguns detalhes do seu desdobramento; tinha certa consciência do que lhe ocorrera durante o período em transe, no qual pensou que estivesse desencarnado, morto mesmo.
Ao adentrar a casa onde sua amiga vivera, teve um choque.
Agora mais consciente, voltavam-lhe à memória as emoções de outros tempos, de outra vida, em que convivera com a mulher à sua frente.
Idosa, amarga, sozinha, ela pareceu não se recordar de César, embora as emoções do reencontro parecessem, por algum mecanismo ignorado, manifestar-se em ambos.
Igor segurava firme a mão do namorado, dando-lhe apoio, em silêncio.
Assim que a mulher fixou o olhar em César, pareceu transportar-se a outro tempo.
- Você... parece que o conheço - balbuciou, meio atordoada.
- Sou Cesar, amigo da Patrícia!
- Patrícia? Não conheço ninguém com este nome.
Não conheço nenhuma Patrícia.
César olhou para Igor num relance, sem entender nada, no primeiro momento.
- Você, moleque!
Você é propriedade de Alves...
- não lhe viera o nome completo do parceiro de aventuras tão imorais quanto ilícitas, que havia reencarnado na pessoa da filha, Patrícia.
Parecia delirar.
- Alves? Eu não pertenço a ninguém!
A senhora está enganada.
- Pertence, sim - interferiu Igor carinhosamente, porém firme.
Mirando o namorado com um olhar de candura, ele entendeu o que Igor quis dizer.
Esboçou um sorriso condescendente e continuou, em seguida, olhando para a mulher:
- A senhora está enganada, dona Ione!
Acho que está delirando.
- Você é quem está delirando!
Já se esqueceu de mim?
Eu sou a Feliciana.
Sou dona disso aqui - falou, apontando ao redor, porém enxergando outra imagem, outro ambiente.
- Ela não está bem, meu amor - falou Igor para César.
Precisamos encaminhá-la para tratamento.
Parece que está presa em outra época.
- Sei o que está acontecendo.
Vou procurar ajuda para ela no centro espírita que frequentei, lá em Curitiba.
César se despediu rapidamente da mulher, que ficara sozinha com a culpa, os medos e os tormentos íntimos que a afligiam.
Não suportou a morte da filha, e sua mente, repleta de culpa, forjou o clima de auto-punição.
Ione mergulhara na escuridão mental, atormentada pelas imagens e cenas do velho prostíbulo da antiga cidade do Rio de Janeiro.
E ali permanecera, cativa das próprias lembranças.
César retornou a Curitiba e conversou sobre o caso de Ione e Patrícia com um homem chamado Epaminondas.
Ele encaminhou a pobre mulher a uma casa onde pudesse ser atendida espiritualmente, enquanto procuravam um local próximo onde pudesse viver.
Finalmente César enfrentava a situação.
Agora, amparado emocionalmente, sentia-se preparado para essa empreitada, que acabou se constituindo numa espécie de desfecho, liberando-o das amarras que o mantinham vinculado ao passado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 09, 2018 12:53 pm

Agora deveriam regressar, decidir como viveriam a partir de então.
O namorado insistia para que se mudasse para seu apartamento.
Mas César, ponderando, recusou-se:
- Acredito que não seja uma boa hora, Igor.
Acho que minha presença mais constante ao seu lado, principalmente morando juntos, despertaria a atenção dos seus familiares e amigos.
Também temo que essa mudança possa ser interpretada como uma afronta à sua ex-noiva.
Está muito recente nosso namoro, e, tanto para mim quanto para você, tudo isso é muito novo.
E melhor irmos com calma.
Vamos nos adaptando devagar, sem pressa alguma. Que me diz?
Pensando melhor, Igor concordou com César:
- Tem razão!
Acho que estou muito envolvido com tudo que nos aconteceu.
Mas vamos aguardar.
Eu também não gostaria que a situação parecesse uma afronta a Ana Cristina ou a meus pais.
Deixemos que a transição seja realizada aos poucos, sem violentar aqueles que nós amamos, não é?
A decisão de viverem separados foi tomada em comum acordo.
Em seguida, Igor convidou César para conhecer a comunidade budista da qual participava.
No outro domingo, pela manhã, foi a vez de César levar Igor para conhecer um centro espírita.
Eles chegaram por volta das 9h30 da manhã.
A casa se localizava no Bairro do Tatuapé, na zona leste paulistana.
A multidão que acorria ao centro parecia vir de todos os lados.
César desejava, antes de mais nada, fazer uma oração na sala dedicada ao espírito Bezerra de Menezes.
Queria agradecer por todo o bem que recebera da vida.
Juntos, rezavam diante da figura imensa do médico e amigo, estampada na parece daquele recinto.
César preparava-se para o trabalho no campo abençoado da mediunidade.
Deram-se as mãos, sentados e profundamente agradecidos pelo reencontro de suas almas, e pediram forças para os desafios vindouros.
Pois eles viriam, com certeza; mas juntos, quem sabe, teriam a coragem e a fortaleza necessária para vencê-los, e seriam um o apoio do outro, a fim de romper os obstáculos comuns à vida de todas as pessoas.
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O PRÓXIMO MINUTO/Ângelo Inácio - Robson Pinheiro - Página 6 Empty Re: O PRÓXIMO MINUTO/Ângelo Inácio - Robson Pinheiro

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 09, 2018 12:53 pm

RONIE, UM RECADO DA VIDA
ELE ACORDOU do seu pesadelo com um suspiro forte.
Mas acordou para outro pesadelo, que teria de enfrentar de maneira consciente, sem o transe a que fora submetido em virtude da dor, do choque e do estresse causados pelos últimos acontecimentos.
Acordou, porém não se mexeu; não conseguia se movimentar.
Ouviu muita conversa a seu lado, alguém chamando a ambulância; no entanto, não era capaz de movimentar sequer os lábios, a fim de pedir socorro ou demonstrar lucidez.
Voltara de uma dimensão desconhecida para ele; voltara à vida, à existência de quem não respeitava a própria vida.
A ambulância corria por uma das avenidas de Salvador, saindo do Rio Vermelho já com as sirenes ligadas e as luzes indicando emergência.
Os paramédicos faziam o que podiam para estancar o sangue e imobilizar o rapaz que estava estirado sobre a maca.
Durante a tentativa de lesar uma pessoa e a altercação que se seguiu, além dos socos e porradas que recebeu dos amigos da vítima, alguém disparou um tiro, que atingiu em cheio a coluna vertebral de Ronie.
0 golpe perfeito, o boa noite, Cinderela que aplicaria no cliente que julgara ser alvo fácil, havia ido por água abaixo.
Perdera a consciência durante um minuto.
Mas foi o minuto mais longo de sua vida; um minuto de reflexões, apelos, xingamentos, pesadelo, enfim.
Aquele minuto passou, contudo ficaram as impressões, as sensações e alguns lances da experiência extra-sensorial que se dera num ambiente totalmente moldado, forjado pela força da própria mente, da culpa e do remorso dele e de outras pessoas, as quais se enredaram numa história que mudaria para sempre a vida de todos eles, mas principalmente de Ronie.
Agora ele era levado ao hospital, totalmente imóvel e imobilizado.
Não conseguia falar; não conseguia se mexer, pois a bala acertara em cheio a coluna vertebral.
Sequelas? Somente depois de uma cirurgia
é que se poderia saber.
Ele movimentava os olhos, parecendo estar em estado de choque.
E a ambulância ululava, gritava; a sirene enlouquecida abria caminho no trânsito enfurecido da maior capital do Nordeste.
Logo que chegou ao pronto-socorro de um hospital respeitadíssimo, Ronie foi atendido somente depois de aguardar bom tempo.
E esse período em que esperou na maca foi fatal para definir seu estado pós-traumático e pós-operatório.
Com algum custo, os enfermeiros localizaram o celular do paciente e fizeram diversas chamadas, até conseguirem falar com sua namorada.
Ela demorou algum tempo para chegar ao local onde o rapaz recebia cuidados.
- Ele precisa ser submetido urgentemente a uma cirurgia.
Mesmo assim, não podemos saber as consequências do tiro - falou um dos médicos de plantão.
Depende muito da localização da bala.
- Não creio que vá se recuperar totalmente - acrescentou outro médico, o anestesista.
Já vi vários casos semelhantes; não sei não, mas imagino...
- Nem pense nisso!
Não quero nem imaginar a situação do rapaz após a cirurgia, caso não dê certo.
Sob os olhares duvidosos dos médicos, Ronie foi conduzido ao bloco cirúrgico.
Nos bastidores da vida, alguns amigos invisíveis acompanhavam o processo, sem poder interferir.
Ronie semeara a situação com suas atitudes.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 09, 2018 12:53 pm

Seu espírito estava severamente comprometido, em razão das práticas ou dos débitos contraídos por meio de desequilíbrios mil, durante os quais estabeleceu, como ideal para si, uma forma de vida repleta de consequências drásticas.
Teriam de aguardar.
Mesmo se tivessem condições de intervir, os benfeitores espirituais deparariam com limitações provenientes da necessidade do rapaz de passar por um método reeducativo.
Após mais de 12 horas de cirurgia, Ronie seguiu directamente para a unidade de recuperação intensiva.
Não poderia receber visitas por algum tempo. Estava sedado.
- Fale, doutor - principiou a namorada, acompanhada de uma amiga e do irmão de Ronie.
Como ele está?
Será que ficará bom da cirurgia?
- Não podemos assegurar nada.
Infelizmente, somente depois que ele acordar é que ficaremos sabendo. Mas...
- Mas o quê, doutor? - perguntou a namorada, visivelmente ansiosa.
- A bala atingiu um local muito perigoso.
Não estamos certos de que ele se recuperará totalmente.
Digo, por ora não há certezas.
O irmão estava abalado.
Já há algum tempo tinha sérias suspeitas sobre o tipo de trabalho de Ronie.
Não queria de forma nenhuma que o restante da família desconfiasse, portanto ficara calado; guardava para si o segredo do comportamento do rapaz.
A namorada sabia, era conivente com toda a situação.
Agora se mostrava interessada em saber da recuperação dele; porém, com alguma frieza, sem derramar uma lágrima sequer, conversava num canto com a amiga.
Após as notícias do médico, saiu à francesa, sem ao menos se despedir do irmão de Ronie, que estava aflito, quase desesperado.
Quando, muito mais tarde, o rapaz voltou da anestesia, os médicos já estavam a seu lado.
Ronie pressentia o pior; voltara abaladíssimo, pois se recordava de alguns eventos ocorridos antes do internamento.
Eram lembranças de outra dimensão, de pessoas e personagens com os quais convivera no minuto mais longo de toda a sua vida.
Embora fossem lembranças vagas, sabia que deveria enfrentar algo grave.
- Doutor, não sinto minhas pernas!... - balbuciou, meio sonolento.
-É assim mesmo, rapaz! Fique tranquilo.
Daqui a pouco virá um psicólogo conversar com você e o ajudará a retomar sua vida.
- Mas parece que está tudo morto daqui para baixo! - exasperou-se, apontando com dificuldade em direcção aos membros inferiores.
Os médicos olharam um para o outro; tocando levemente o ombro de Ronie, evitaram falar mais alguma coisa.
Saíram devagar, preocupados, e procuraram o irmão do rapaz, na sala de espera.
- E aí, doutores? Como ele está?
Já acordou?
O irmão encontrava-se, ainda, muitíssimo apreensivo.
Estava sozinho, pois a namorada de Ronie fora embora com a amiga e não mais atendia o celular.
Roberto, o irmão, já havia lhe telefonado muitas vezes.
Por fim, recebera dela uma mensagem de texto, pedindo para não incomodá-la mais.
Enfim, ela se fora, para sempre, da vida de Ronie.
Não queria mais saber dele, afinal - pensava -, ele já não tinha qualquer serventia.
- Não temos notícias boas, meu caro - falou um dos médicos, serenamente, procurando amenizar a situação emocional.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 09, 2018 12:53 pm

- Diga, pelo amor de Deus: ele sobreviveu?
Está acordado?
- Sim, sim, ele sobreviveu.
Mas, como temíamos, a bala pegou em cheio um local importante da coluna.
Seu irmão ficará com sequelas graves.
- Quero vê-lo imediatamente!
- Calma, muita calma, Roberto.
Ronie precisa primeiro conversar com o psicólogo.
Daqui a pouco, liberaremos sua entrada.
- Mas para que um psicólogo?
0 problema dele é físico; foi apenas uma cirurgia...
-E o procedimento padrão para casos assim.
Não há como pular essa etapa.
Ele precisará de apoio emocional e psicológico.
- Então ele...
- Seu irmão ficou paraplégico!
A revelação do médico foi um choque para Roberto.
Ele tonteou, ameaçou cair, mas foi logo amparado por um dos cirurgiões.
Recebeu auxílio imediato; um medicamento lhe foi ministrado para ajudar na experiência impactante.
Passadas mais duas horas, após se recuperar do choque, Roberto foi admitido junto ao irmão.
Quando entrou, viu o retrato da destruição.
Ronie estava abaladíssimo.
Seu olhar, quase perdido; seu rosto, marcado com uma expressão de horror, uma apatia ou depressão que se instalara de vez.
Ao lado dele, um psicólogo segurava-lhe o ombro.
Ronie balbuciava:
- Quero ver minha namorada!
Quero-a perto de mim...
Era outro problema que teria de enfrentar.
Roberto não saberia como contar a ele, naquele momento, que a namorada o abandonara de vez.
Não sabia o que dizer.
Com as lágrimas nada disfarçadas, engolindo em seco, quase sem forças para pronunciar algumas palavras, Roberto ousou um esforço diante do irmão, que jazia desolado, emocionalmente abalado, visivelmente deprimido:
- Calma, meu irmão - falava, chorando.
Cada coisa a seu tempo!
Aqui no hospital não pode haver muitas visitas, por isso me deixaram entrar, por ser o parente mais próximo.
Com certa dificuldade na voz, Ronie esforçava-se e repetia:
- Quero ver Betinha...
- Calma, Ronie!
Aqui devemos obedecer as regras.
Assim que sair do hospital, vamos conversar sobre isso.
- Conversar? Conversar pra quê?
Eu quero ver Betinha.
Será que não entende?
Será que não lhe contaram?
Estou paralítico, paraplégico.
Não sinto mais nada do umbigo para baixo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 09, 2018 12:53 pm

Não poderei mais fazer sexo, nem andar, nem... - disparou um pranto convulsivo.
Os dois choraram, enquanto o irmão o abraçava no leito.
Ronie deparava com o resultado das próprias escolhas.
Do outro lado do véu que separa as dimensões, no Invisível, um dos amigos espirituais chorava também.
Não havia nada a fazer.
Samuel tocou delicadamente o ombro do amigo espiritual, chamando a atenção dele para as ocorrências:
- Agora é com a vida, meu caro Arthur!
Nada mais podemos fazer por seu pupilo.
Ronie precisa se submeter a um método reeducativo com ferramentas novas.
De certa forma, a própria vida o conduziu a uma etapa muito intensa de reflexões.
Primeiro virá a revolta, depois a reflexão.
Quem sabe numa próxima existência ele modificará o cerne de sua conduta?
Aguardemos em silêncio, amparando quanto pudermos.
Enquanto isso, Ronie se revoltava, xingava, com as poucas forças de que dispunha.
Teria de ficar um bom tempo no hospital.
Dali, sairia para enfrentar a vida, a nova fase de sua vida.
Fazer fisioterapia, modificar o curso dos pensamentos e contentar-se com um estilo de vida mais pacato, agora que fisicamente era incapaz de levar avante projectos de abuso e desrespeito ao ser humano, que eram sua especialidade.
Enfim, deveria reaprender a viver.
E para isso teria um longo tempo à sua frente.
- Sinto algo diferente em mim, Roberto - falou, levando instintivamente a mão dentro das calças, num esforço imenso.
Parece que não sinto meu próprio pénis; será que nunca mais vai funcionar?
Será que estou fadado a viver sem sexo para o resto da vida?
Roberto não respondeu.
Os médicos haviam falado algo a respeito, mas ele preferia que o irmão descobrisse sozinho.
E Ronie, naquele momento, lembrou-se de um sonho que tivera logo após desacordar no Bairro do Rio Vermelho, naquela fatídica noite, no local onde encontrara seu antigo cliente.
Lembrou-se do pesadelo - foi como interpretou o facto, a vivência extrafísica naquele seu minuto de reflexão - no qual parecia ter desenvolvido outro órgão sexual, feminino, uma espécie de vagina no lugar do períneo.
Era um sonho, um pesadelo ou uma intuição do que acontecia agora?
Não saberia dizer o que lhe sucedia.
Mas a revolta era grande dentro dele.
Não se conformava.
Novo, jovem, cheio de vida, deveria agora - pelo resto da vida! - ficar numa cadeira de rodas, paraplégico, dependente do irmão e de alguns amigos?
E a namorada?
Ela conhecia seu estilo de vida, porém, agora, o abandonara.
Era mais um golpe com o qual teria de conviver.
Sua dor era imensa; mas sua rebeldia, ainda maior.
Quantos anos viveria assim?
Quantos anos teria de vida naquele corpo limitado?
Lembrava-se do cliente que queria lesar e fervia de raiva; sentia ódio dele.
E tinha ódio de si mesmo, muito ódio.
Assim, Ronie foi levado pela própria consciência a enfrentar os resultados de suas atitudes, prejudiciais não somente para ele, mas para quantos elegera como alvo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 09, 2018 12:54 pm

Entretanto, muito mais difícil do que lidar e reaprender a viver com as limitações físicas e a dependência alheia, era conviver consigo mesmo.
Com seus desejos, que, ao que tudo indicava, jamais poderiam ser realizados no corpo deficiente e permanentemente afectado.
Estava sexualmente incapacitado, emocionalmente deficiente, desmantelado, descontrolado.
Teria uma longa caminhada pela frente.
Um percurso imenso a trilhar dentro de si mesmo, prisioneiro de um corpo sarado, bem composto, mas que se convertera numa prisão sem grades para seu espírito adoecido.
Ninguém saberia dizer, naquele momento - nem ele, nem tampouco os amigos do Invisível - como seria o resto de sua vida.
Tudo dependia dele próprio.
A vida lhe concedera uma chance, embora de carácter incomum, uma oportunidade indesejada, mas seguramente o remédio que mais lhe convinha.
Por certo, ele teria de reorganizar emoções e pensamentos e somente ele, Ronie, poderia dizer como seria seu próximo minuto.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 09, 2018 12:54 pm

PALOMA RESPIROU FUNDO, acordando do transe nos braços de um soldado.
Ficara exactamente um minuto inconsciente.
Ou será que estava consciente, porém em outra dimensão?
Ofegante, levou a mão ao peito e notou que o tiro passara de raspão. Não morrera.
Estava ferida; contudo, isso ocorrera devido aos pontapés recebidos de um dos policiais.
A gritaria estava por toda parte.
Os frequentadores daquele lugar fugiam apavorados, enquanto outro guarda chamava a ambulância para levar Paloma ao hospital.
Foi apenas um minuto, um longo minuto, quase uma eternidade, em que ficou cativa de si mesma numa dimensão da qual pouco se conhece.
Havia entrado numa espécie de transe, experimentando um estado alterado de consciência.
Acordava agora, ofegante, suando frio, tremendo feito vara verde, como alguém diria.
Um dos policiais militares aproximou-se, usando um palavreado que desrespeitava Paloma, numa tentativa inócua de produzir qualquer reacção por parte dela.
Mas nada. Ela se dedicava a interpretar o sonho, rever imagens, paisagens e, quem sabe, até mesmo, personagens de uma história que vivera ou experimentara no seu minuto de reflexão, nesse instante de quase-morte.
A ambulância a carregava até o hospital.
E Paloma inquieta, quieta, em transição de emoções, sentimentos e reflexões.
Fora salva; revivera, em meio àquele corre-corre de gente por todo lado.
Aquele era um hospital comum, geral, que atendia pessoas pobres, em sua maioria.
O namorado, desolado, parecia não combinar com o cenário à sua volta, vestido elegantemente de blazer com calça jeans, num desporto fino que lhe talhava a silhueta e lhe realçava o charme.
E os olhos, ah!... Os olhos!
Marejados, coração atormentado pelo seu Hector, disfarçado de Paloma, que dera entrada num hospital da capital paulistana.
Em um tom respeitoso, baixo, quase sensível demais, perguntou ao atendente:
- Por favor, poderia me dizer onde está sendo atendido um paciente de nome Hector?
Notando a dificuldade do rapaz em encontrar alguém com esse nome, esclareceu:
- Fui avisado que um amigo meu deu entrada aqui, ferido...
Ele foi trazido por policiais.
Talvez tenha dado entrada com o nome de Paloma.
- Ah! 0 travesti!...
- Não, meu amigo - falou sério, firme e com um tom de voz que impunha respeito.
Ele é transformista, é um artista e, ao que parece, tanto o policial como o senhor o confundiram com um travesti.
É meu namorado - o atendente entendeu e calou-se, mas não pediu desculpas.
Alguém conduziu Diego ao quarto onde Hector-Paloma se encontrava.
Mas ele não reparou na pessoa que o conduzia.
Tinha os pensamentos voltados, inteiramente voltados para seu Hector, seu menino, seu amor.
Ao ver Paloma deitada sobre o leito, quase não teve reacção.
Estancou-se na porta; parecia paralisado.
Somente depois de a enfermeira tocar-lhe o braço é que conseguiu esboçar algum gesto.
Aproximou-se devagar, olhos nos olhos de Paloma -o seu Hector.
Gostava de chamar assim o namorado.
Paloma era somente um nome artístico, escolhido com a finalidade de apresentar-se nos palcos.
Hector, o seu menino, o olhava com um olhar de quem pedia socorro.
As paredes brancas e azuis do hospital, as roupas brancas, porém surradas dos atendentes que ali trabalhavam, tudo ajudava a compor um quadro que, para Diego, era atemorizante.
Ele estava apreensivo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Jan 09, 2018 12:54 pm

Ver seu namorado, a pessoa com quem escolhera viver sua vida, ali deitado, semi-lúcido, devido a um medicamento que lhe fora administrado, foi um choque para o coração sensível de Diego.
Abraçou Hector em lágrimas.
Estava no hospital, e seu Hector ali, internado.
Fora vítima da brutalidade de um oficial da lei, mas nada poderiam fazer; nada que fizesse livraria Hector do sofrimento.
Assim que abraçou o namorado, chegou uma enfermeira.
- Desculpe, mas aqui é proibido este tipo de comportamento!
- Mas que tipo? - perguntou à enfermeira, olhando em seus olhos, de maneira fulminante, como nunca antes olhara para alguém.
Você por acaso sabe quem é este aqui sobre o leito?
Sabe porventura que não se pode aprisionar um sentimento de afecto, de amor e inibir qualquer ser humano de sentir o que sente?
Por acaso você conhece de leis?
Ora, bolas! - completou o rapaz, raivoso com a atitude da mulher.
Faça o seu trabalho e nos deixe em paz, senão vou fazer uma denúncia contra você por discriminação.
Ele falou com tanta ênfase, com tanta força e magnetismo na voz, que a enfermeira recuou imediatamente.
Quatro pessoas que estavam na enfermaria aplaudiram Diego e Hector, como a apoiar os dois na demonstração de afecto e na afirmação do direito de expressá-lo livremente.
Diego chorou muito. Hector, embora o estado em que se encontrava, fraco e abatido após a ocorrência na rua, consolava-o:
- Fique tranquilo, meu querido!
Estou bem, agora. Estou bem... - mas não conseguia disfarçar a lágrima que lhe caía discreta num canto do olho.
Amanhã sairei daqui e tudo isso terá passado.
Diego permaneceu mudo ao lado de Hector, segurando-lhe a mão.
- Tive um sonho estranho...
Parece que fiquei desacordado por uns momentos; para mim, foi como se uma vida inteira tivesse se passado naqueles instantes.
Não consigo precisar quanto tempo, mas, na minha memória, é como se fossem dias e horas; um tempo longo.
Quando acordei, estava respirando, pois até então havia pensado que tinha morrido.
- Me diga: você está realmente bem?
Vou tirar você daqui e levá-lo para outro hospital, onde pode ser atendido por nosso plano de saúde.
- Não se preocupe, Diego querido; estou bem.
Só um pouco incomodado com as impressões que estão gravadas em minha memória, mas nada desagradável.
Sinto necessidade de falar, de encontrar meu padrasto, voltar à casa da minha família e dizer a eles quanto os amo.
- Fique quieto.
Acalme-se agora você, Hector.
Tudo a seu tempo.
Eu mesmo irei com você.
Conte comigo.
Agora quero tirá-lo daqui, pois necessito de você ao meu lado. Então, fique bem.
E beijou-lhe a testa carinhosamente, segurando-lhe as mãos e evitando beijar-lhe a boca, pois entendia as limitações das demais pessoas presentes naquele local.
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