LUZ ESPÍRITA
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Mariana ou Marie Anne? - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

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Mariana ou Marie Anne? - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti - Página 3 Empty Re: Mariana ou Marie Anne? - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 22, 2018 7:55 pm

10 - O NOVO LAR
Toda a preparação de Mariana, em relação às informações que deveria receber, antes da partida, completou-se.
O que lhe fora permitido saber, já o sabia.
Agora, restava somente o tratamento ao seu Espírito, necessário quando nova encarnação se faz, semelhante a sonoterapia tão conhecida na Terra.
Não a provocada por medicamentos muitas vezes até daninhos, mas a feita no Mundo Espiritual, através de magnetizações fluídicas aplicadas ao Espírito, ocasionando-lhe, de início, um estado de torpor agradável e benéfico.
Aos poucas, porém, o Espírito chega à inconsciência, a fim de que conhecimentos outros, que deverão ser trazidos, nele fiquem armazenados.
Quando encarnado, serão utilizados de forma simples e agradável, nas suas realizações, revelando, num ímpeto interior, as tendências trazidas, cumprindo aquilo para o qual veio.
E um trabalho não muito longo, mas intenso, perfeito e profícuo, necessário ao que o Mundo Espiritual precisa transmitir' ao Espírito.
Mariana encontrava-se completamente pronta, por isso podemos deixá-la, agora, entregue àqueles auxiliares que se encarregarão de trazê-la no momento adequado, e nós iremos ao lar onde será acolhida, antecipando-nos um pouco a ela própria, querendo sondar o local, o ambiente e as pessoas que a receberão.
Sentado na sala, um casal conversava revelando os anseios da família quanto a sua continuidade, completando o amor que os unia.
— Querido Charles, já há algum tempo nos casamos, o meu desejo de ser mãe é tão grande, e até agora nada sinto que possa satisfazer-me essa esperança.
Desejo ter em meus braços o fruto mais sublime do nosso amor um filhinho que eu possa embalar bem junto ao peito, e que seja a continuação de nós próprios...
—Tenha calma, querida!
Tudo tem o seu tempo certo, e, quando Deus houver por bem nos abençoar com essa dádiva, o filhinho virá.
Não se preocupe.
Você sabe, eu também anseio por ter em meus braços um entezinho tão aguardado e querido, mesmo antes de ter chegado.
Saibamos esperar.
Se Deus entender que poderá confiar em nós, enviando-nos alguém para ser o nosso alento, Ele o enviará.
Quando menos esperarmos, ele estará entre nós.
—Você tem razão, não devemos nos preocupar além do necessário.
O momento certo chegará, se assim for designado por Ele.
Mais uns poucos meses se passaram dessa conversa, constante e repetitiva no lar de Charles, após já dois anos do enlace.
Certa manhã, a sua esposa contou-lhe haver tido um sonho, no qual se vira carregando um bebé muito bonito, e sentira-se muito feliz.
Quem sabe — concluiu ela — não é o aviso de que ele chegará logo.
Charles entendeu ser o resultado de seus próprios desejos, e não deu muita atenção.
Contudo, pouco tempo demorou e ela sentiu, dentro de si, que não estava só fora abençoada por Deus com o que tanto desejava.
Os meses passaram e, eis que veio à luz um entezinho lindo para a alegria do casal.
Era uma linda menina!
Sempre pensaram em termos de um menino, un petit garçon, como aguardavam, mas, ao invés, receberam uma linda menina, une jeune filie, que os deixou felizes da mesma forma.
—Se Deus decidiu que deveríamos receber uma menina, nós a recebemos com o mesmo carinho, o mesmo amor e a mesma alegria, não é verdade, Charles? — falou lhe Juliete, sua esposa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 22, 2018 7:56 pm

—Sim! Ela nos é muito querida e será amada por nós!
—Que nome lhe daremos?.
—Se me permitir escolher, gostaria que ela se chamasse Marie Anne.
—Como é bonito esse nome!
Acho que lhe assenta: bem e me deixa feliz!
Concordo com você.
Ela será a nossa querida Marie Anne!
A felicidade fez morada no lar de Charles e Juliete.
Quando um ser é recebido, depois de ter sido tão ansiosamente aguardado, o amor que lhe dispensam é muito maior.
Marie Anne foi cercada de muito amor, de muito carinho e Charles, ao querer dm esse nome à sua filhinha, não quis demonstrar, nem o amor, nem a saudade, mas o respeito que a lembrança de Mariana ainda lhe trazia.
Foi uma homenagem espontânea, simples, calada, que só ele sabia.
O que ele não sabia, porém, é que ela própria ali estava para conviver entre eles!
Ela própria, que tanto ansiara pela sua companhia, aceitara vir como filha. Não importava que seria de forma fraterna.
O essencial era a sua companhia, tão agradável em outra oportunidade e em tempos mais longínquos, quando não soubera dar o valor que ele merecia.
Seria um meio de ressarcir muitos males, dispensando-lhe um grande amor filial, e, quando o momento chegasse, tudo faria para torná-lo feliz e ampará-lo — pelo menos trazia essas convicções...
A pequena Mariana já estava aninhada nos braços daqueles que lhe seriam o amparo, e a conduziriam, escarninhando-a com muito amor.
Juliete encantava-se com ela e colocava-a em seu peito, afagava-a com ternura, mas, a seu lado, estava sempre Charles, admirando-a, não perdendo nenhum dos seus menores gestos.
Felizes e deslumbrados com a sua Marie Anne, até o seu choro encantava-os.
Em meio a tanto amor, a tantos afagos e ternos cuidados, a pequena Marie Anne ia sé desenvolvendo, como é normal a qualquer criança sadia e bem protegida pelo amor e cuidados dos pais.
Os dias passavam e até alguns anos também.
Charles já podia brincar com ela e espantava-se da sua inteligência, sempre arguta ao que a rodeava, perguntando e querendo» saber muito.
E o pai, mais dedicado a ela, nessas horas a tudo? respondia e explicava.
Queria iniciá-la nas primeiras letras, que se constituíam num grande segredo para a pequena Marie Anne, mas a pouco e pouco o pai, muito dedicado, ia lhe revelando.
Conseguia unir muitas letras, formando palavras que eram o seu deleite, e, quando conseguia unir algumas letras para formar outras palavras que ela própria descobria, a alegria de ambos era maior.
Quando, papai, vou poder ler uma pequena estória, um livro inteirinho?
— Minha filha, você está se saindo muito bem, mas precisamos caminhar correctamente.
Não tenha pressa!
Tudo vem a seu tempo, e agora é o tempo de aprender a escrever e a ler.
Ainda é um pouco cedo para ler um livro.
Dia chegará que as letras não lhe terão mais nenhum segredo, e conseguirá dominar muito bem todas as palavras.
Muitos livros a esperam para que se alegre com eles.
O tempo que não pára, embora muitas vezes o queiramos, corria, corria...
Os dias passaram, os meses, e mesmo mais alguns anos....
Marie Anne nunca ganhara um irmão.
Apenas ela era a alegria daquele lar, apenas ela....
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 22, 2018 7:56 pm

Juliete encontrava-se um tanto adoentada, trazendo preocupações a Charles e a Marie Anne, que a amavam muito.
Consultara médicos, medicamentos foram prescritos, mas o seu mal não passava.
Pelo contrário, ia, aos poucos, sem que ninguém percebesse, mas tão somente ela, caminhando; destruindo o seu físico e, dia chegou para a tristeza de todo que não mais suportou a enfermidade que a acometera e partiu para o Mundo Espiritual, deixando seu querido Charles só com á sua amada Marie Anne.
Foi uma consternação total, pois eram felizes e muito apegados uns ao outros.
A partida de Juliete foi muito difícil para os que ficaram.
Deixou, no lar e em seus corações um grande e profundo vazio, que nada parecia poder aliviar.
Como o nascimento faz parte da vida, O regresso ao Mundo Espiritual também é obrigatório ao Espírito, e nada podemos fazer, senão nos conformarmos porém, esse conforto, só o tempo pode proporcionar - tempo, bálsamo para todos os males, que faz esquecer dores profundas, tornando-as mais amenas, assim trabalhou em nossos queridos.
A lembrança de Juliete estava sempre presente entre eles, mas era uma presença agradável, trazida pela recordação dos bons momentos; e não mais a lembrança sofrida da sua ausência...
Charles ficou só com Marie Anne, á filha dedicada a quem ele se afeiçoou tanto e que restituía, em carinhos e atenções; esse amor que ele lhe consagrava.
Certa vez em que conversavam, Charles disse-lhe:
— Querida Marie Anne, faz algum tempo que sua mãe partiu e nós ficamos sós.
A sua companhia tem sido o alento de que meu coração necessita para minha vida ter um pouco de alegria, depois da intensa dor por que passamos.
Agora que o nosso coração está mais calmo, menos sofrido, uma ideia vem crescendo dentro de mim e gostaria de saber a sua opinião.
— Diga, papai, o que é?
- Muitos anos atrás eu fiz uma viagem Portugal.
Fui a trabalho e fiquei em casa de um amigo com quem havia estudado aqui em Paris.
Lá permaneci alguns meses, e fui muito bem recebido por todos.
Estou pensando, agora que estamos sós, após tanto sofrimento, em fazer novamente essa viagem.
—Adoraria viajar com você, conhecer terras novas!
Você sabe, interesso-me por tudo o que acontece por esse mundo afora, embora nunca tenha saído daqui.
Se pudermos realizar essa viagem, será uma oportunidade maravilhosa!
Mas, se foi há tantos anos, como estará esse seu amigo, agora?
—Tive notícias dele, há alguns anos, você ainda era pequena.
Soube que fez carreira política, como desejava, e e, agora, uma peça importante do governo.
Nós não vamos nos hospedar em sua casa, mesmo porque não sei como andam por lá...
Ficaremos num hotel e depois iremos visitá-los.
— Não é melhor escrever contando que vamos?
Se ele é uma pessoa importante no governo, ainda está por lá, e ficará contente em recebê-lo!
—Tem razão! Como nada temos acertado, e essa viagem poderá demorar um pouco pois ainda não passa de uma ideia, devo escrever-lhe.
Conto a nossa vida, o que nos ocorreu, falo do nosso desejo de viajar, e nada melhor que lá voltar para, não só visitá-lo, mas retomar à cidade onde fui tão bem acolhido.
— Estarei ansiosa para que se concretize.
Agora não conseguirei pensar em mais nada.
Escreva-lhe hoje mesmo.
Se essa viagem puder lhe fazer bem, ficarei contente.
Os dias, para Marie Anne, passaram a ser pequenos para pensar e dedicar-se às providências para a viagem, após a conversa com o pai.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 22, 2018 7:56 pm

—Papai, já escreveu?
Mal posso esperar tanta é minha ansiedade!
— Sim, filha, já o fiz.
Agora aguardo a resposta de Cláudio, o meu amigo, e depois partiremos.
Enquanto isso, iremos preparando a nossa bagagem, bem como o que for necessário aqui, uma vez que pretendo passar um bom tempo fora.
Quem sabe, depois de Portugal, possamos visitar algum outro país.
Gosto de viajar mas, de há muito, não tenho essa oportunidade.
Os afazeres, a família, impediram-me.
—Estou ansiosa.
Quanto à casa, não tenha preocupações.
Tomarei todas as providências necessárias.
—Eu a ajudarei!
Os nossos criados nos acompanhei!; há tantos anos, são dedicados e de absoluta confiança.
Não precisamos nos preocupar?
Apesar de você demonstrar tanto interesse, é ainda muito jovem para arcar com essa responsabilidade.
—Mas eu gosto disso!
Aprendi com mamãe e procuro fazer do jeito que ela me ensinou, para você não sentir tanto a sua falta!
—Você, Marie Anne, tem sido o alento para o meu Espírito abatido, depois da partida de sua mãe!
Não quero, com isso, tolher os seus anseios de juventude.
Quinze anos é uma idade em que a jovem tem muitos sonhos!
Sei do seu temperamento romântico e da sua sensibilidade apurada, mas, a sua dedicação, a sua companhia, é tudo o que mais desejo nesta fase de minha vida.
—Sabe que a tem e a terá sempre.
Se me dedico1 a você, faço-o com muito amor.
Não pense que é sacrifício, não, só me traz satisfação.
Era sempre assim entre pai e filha.
De um pequeno assunto, da necessidade de trocarem algumas ideias, sem nem mesmo saberem como, a conversa tomava esse rumo tão temo do afecto e do carinho que sentiam um pelo outro.
Estavam mais apegados agora!
Um tinha mais necessidade da companhia do outro, desde a partida daquela que era a dona do amor e dos seus corações.
Como tudo tem a sua hora, um dia, quando um criado levou â correspondência a Charles, eis que ele encontra, entre os papeis e cartas, uma que particularmente lhe chamou a atenção.
Deixou todas de lado, abrindo rapidamente aquela tão aguardada.
Não precisamos dizei que se tratava da carta de Cláudio, pois também os leitores a aguardavam, juntamente com Charles e Marie Anne.
Ao lê-la, encontrou palavras carinhosas do amigo, lamentando a partida de sua esposa, e colocando-se à disposição, com alegria, para recebê-lo em sua casa.
Não permitiria que ficasse em nenhum hotel.
A amizade antiga seria um grande reconforto que o reencontro lhe traria.
Falava de sua vida e pedia a Charles que apenas marcasse o dia da chegada.
Ele seria aguardado com muita ansiedade.
Marie Anne ficou exultante.
Tinha já tudo em ordem e bem preparado.
Charles também tivera o tempo suficiente para tomar as providências em relação ao seu trabalho, e assim enviou um telegrama a Cláudio, marcando o dia e a hora em que, presumivelmente, chegariam.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 22, 2018 7:57 pm

11 - DE VOLTA AO PASSADO
Em poucos dias, partiram.
Marie Anne ia com o coração ansioso, trabalhando em sua mente fantasias, próprias das jovens de apenas quinze anos.
Charles, mais circunspecto, pensava em todos os acontecimentos desde a outra vez que fizera essa mesma viagem.
O seu coração era outro pelas experiências de vida que a idade acumula no Espírito.
Pensou em todos os familiares de Cláudio mas sua mente trazia, num cantinho escondido, a figura de Mariana, que o ajudara naquela época e a quem tinha sido tão grato.
Agora seria diferente, mas teria consigo Marie Anne, a sua doce companhia.,
Finalmente chegaram, encontrando, à sua espera, em vez de Cláudio, um seu emissário.
Justamente naquela hora ele deveria participar de uma reunião importante, para a qual a sua presença não seria dispensável.
Apresentando as desculpas do amigo, colocou-se à disposição para levá-los à casa do senhor Cláudio, dizendo-lhe que, ao término da reunião, ele os encontraria lá.
Charles ficou, meio atrapalhado, insistindo em ir a um hotel, porém, a encarregada daquela missão não lhe permitiu, como fora instruído pelo próprio Cláudio.
Tudo estava estranho e diferente.
Afinal, muito tempo havia decorrido desde a sua partida — quase trinta anos — durante os quais tantas coisas haviam acontecido.
Assim pensava, até que chegaram à bela residência dos Sousas, um tanto modificada pela remodelação que o tempo exige, porém, ainda era a mesma — sumptuosa, grande, com um jardim imenso, o mesmo por onde passeara algumas vezes.
Ao entrar, seus olhos voltaram-se à procura de algo que, sem saber por quê, viera-lhe à mente, mas não pôde vê-lo.
Ainda não era o momento.
Ao ser conduzido ao interior da casa, uma senhora, ainda exuberante embeleza, veio ao seu encontro, estendendo-lhe a mão.
Então é você, Charles, que retoma para estar connosco?
A nossa alegria é muito grande!
Charles, ainda mais embaraçado com a língua que na outra ocasião, estendendo a mão respondeu algumas palavras, que percebeu, não foram entendidas, e depois apresentou-lhe a filha, a bela jovenzinha Marie Anne.
Não havia mais ninguém, apenas Manuela, que ordenou a um criado, transportasse a bagagem para os quartos, já preparados para recebê-los.
Marie Anne estranhou aquela recepção.
Fora colocada em seus aposentos pelo criado que levara a bagagem, sem ter podido trocar nenhuma palavra com o pai.
Ela nada entendia da língua que falavam, e imaginava o porquê de apenas aquela senhora tê-los recebido.
Espiando pela porta de seu quarto, verificou se o criado havia se retirado, e, não notando mais a sua presença, foi ao encontro do pai.
—Papai, não existe ninguém mais nesta casa?
—O meu amigo encontra-se em reunião importante, como você sabe.
De resto, também não estou entendendo!
Quando aqui estive, havia, além daquela senhora que nos recebeu e que era uma jovem muito bela, os seus pais e uma irmã que faleceu justamente durante a minha permanência nesta casa.
Quanto ao casal, não sei se tiveram filhos, e nada sei também dos pais dela, passados tantos anos.
Pode ser até que já tenham deixado a Terra.
Tudo isso nos será aclarado, apenas mais tarde, quando Cláudio chegar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 22, 2018 7:57 pm

—Esta casa é muito grande!
O jardim é imenso!
Você viu como está florido?
Venha espiar por esta janela!
Parece um enorme cartão pontilhado de tintas multicoloridas.
É lindo! Quero, depois, passear por ele, se me for permitido.
—Penso que lhe será permitido fazer o que desejar, mas é melhor aguardarmos a chegada de Cláudio.
Ele fala a nossa língua correntemente.
Conversaremos, ê teremos notícias de todos os familiares.
—Vou voltar para o meu quarto.
Quando ele chegar, você me chama para eu conhecê-lo.
Enquanto isso vou descansar um pouco.
Marie Anne saiu e Charles ficou pensativo.
Quantas lembranças vieram-lhe à mente, naquele instante, como se a sua memória regredisse no tempo, e ele novamente se viu triste, após a partida de Mariana.
Como Marie Anne lhe falara do jardim, através da visão que tivera da janela, foi até ela e procurou ver se encontrava o que tanto desejava.
Olhou na direcção que sua memória indicava, e verificou, estar lá, porém, muito mais bonito.
A trepadeira envolvia-o por completo, deixando cair seus ramos pendentes de flores.
Queria, assim que lhe fosse possível, passar alguns instantes em seu interior, como uma homenagem à pequena Mariana de outrora, a que estivera em sua mente desde aquela época até então, transformada pelo tempo.
Mas, na realidade, transformada através das lembranças, porque ele a via em Espírito, e o seu Espírito era diferente.
Envolto nesses pensamentos, uma pancada à porta devolveu-lhe à mente a situação actual, e ele acorreu para abri-la, deparando-se com o seu querido amigo de outrora, Cláudio.
Estava mais envelhecido, pois o tempo não esquece ninguém, por melhor se viva, e não se esqueceu de Cláudio.
Pintou-lhe os cabelos de muitos fios brancos, e marcou sua face com alguns desenhos que se mostravam em rugas, entretanto ainda aparentava ser um homem forte e bem disposto.
—Cláudio querido, não via a hora da sua chegada!
Depois de um forte abraço, Cláudio entrou.
Falaram sobre assuntos banais, pequenos comentários que nesses momentos sempre são feitos, até que se sentaram para conversar.
Charles, você não disse que viria com sua filha?
Onde está ela?
Acomodada em seu quarto, mas pediu-me para chamá-la assim que você chegasse!
Ela quer conhecê-lo!
— Logo mais o faremos!
Deixe-a descansar, que a viagem sempre é exaustiva.
—Então, Cláudio, como estão todos, aqui, em sua casa?
Vimos apenas Manuela!
Seus sogros ainda vivem?
Há alguns anos meu sogro partiu, deixando a esposa; e ela, Charles, encontra-se muito doente, não sai mais do quarto.
A nossa casa modificou-se bastante.
Antigamente grandes festas, grandes recepções eram organizadas, mas agora, nada mais realizamos.
Apenas uma ou outra recepção mais simples quando temos algum encontro, necessário pela posição que ocupo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 22, 2018 7:57 pm

Nossa casa é muito triste!
Manuela nunca quis nenhum filho, os anos foram passando e, quando a idade chega, a solidão toma conta de nós...
Mas não falemos de tristezas!
Você e sua filha nos trouxeram alegria e, enquanto aqui estiverem, a casa será mais alegre.
Quem sabe poderemos reunir amigos?
Manuela irá gostar!
Ela continua sempre a mesma, apenas, agora, as oportunidades são menores.
— Como tem sido a sua vida, assim tão a sós com ela?
— Meu amigo, não tem sido fácil!
Todavia, do momento em que passei a viver por mim próprio, segundo os meus gostos e desejos, sem dar atenção às frivolidade de Manuela, minha vida passou a não ser tão triste.
Enquanto permaneço em casa, isolo-me nos livros.
Lembra-se de quem assim procedia, aqui?
—Sim, lembro-me!
—Pois tenho procurado seguir o seu exemplo!
Ela deixou-me uma lição, e, embora não intencionalmente me ajudou.
—Ela era totalmente só, e você tem Manuela!
Melhor não a tivesse, Charles!
Mas pela nossa família, pela minha conveniência, procurei manter esse casamento que nunca deveria ter sido realizado!
Nunca quis fazer nada que pudesse ocasionar escândalo à nossa sociedade e à minha carreira.
Vamos vivendo, e procuro fazê-lo da melhor forma que posso!
Apenas preciso ter também os meus momentos, pois sempre trabalho com muitas preocupações.
Após, gosto de ficar em paz comigo mesmo, com meus livros.
Charles ouvia-o sem saber o que dizer, quando o amigo acrescentou:
—Numa outra oportunidade conversaremos mais!
Nós os esperaremos para o jantar.
Desçam assim que desejarem!
A propósito, como se chama sua filha?
. Minha doce filha chama-se Marie Anne!
Ao ouvir esse nome, Cláudio estremeceu,
—Como? Você colocou esse nome em sua filha? — perguntou espantado...
—Sim, Cláudio, foi uma forma que encontrei de prestar uma homenagem à Mariana.
Cláudio retirou-se do quarto e da companhia de Charles, levando consigo a satisfação do reencontro com o amigo, o contentamento de ter, em seu lar, uma companhia afim, como também a juventude de Marie Anne que ainda não conhecera.
Seria a alegria entre eles, já amadurecidos e um tanto cansados, vivendo numa casa triste, onde a harmonia verdadeira nunca reinara.
Manuela o aguardava, querendo notícias, pois nada puderam conversar, impedidos pela dificuldade de comunicação.
— Então, Cláudio, como Charles está?
O que disse da minha recepção?
O que falou de mim, da minha aparência, transcorridos tantos anos?
—Ora, Manuela, Charles não faria nenhuma referência à sua aparência!
Ele é uma pessoa elegante e respeitosa, um verdadeiro cavalheiro, e nada diria a esse respeito, mesmo que a achasse linda ou envelhecida.
Ele não faria tais julgamentos, muito menos a mim, que sou seu marido.
—Você viu a jovem?
— Não, não a vi!
Ela estava em seu quarto descansando, e, quando descerem para o jantar, eu a conhecerei.
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 22, 2018 7:57 pm

Logo mais aqui estarão, e conversaremos em conjunto.
O que você não entender, e sei que nada entenderá, eu lhe direi.
Não se preocupe, não estará alheia ao que se passar!
— Assim espero!
Esquecendo-se um pouco dos hóspedes, Cláudio indagou-lhe:
—Como está sua mãe, hoje?
Continua do mesmo jeito, sem querer levantar-se?
Se ela se esforçasse um pouco, só lhe faria bem!
—Estive em seu quarto, mas fiquei muito pouco!
Precisava preparar-me para as visitas, porém, pelas suas palavras, encontra-se na mesma.
Sua mente deve estar um pouco perturbada e ela não vê as coisas que a rodeiam como realmente o são.
—Também já notei, e, se assim for, cada vez será pior!
É o tempo, Manuela, que passa e leva tudo o que tanto cultuamos em exteriorizações.
Ela nunca fez nada de benéfico ao seu Espírito, e hoje se sente perturbada pelo que ela própria colocou em seu coração.
—Eu tinha certeza de que faria algum comentário em desfavor de mamãe!
Sempre o fez! Você não gostava dela!
Ela, que sempre foi minha amiga e me ajudou em todas as minhas necessidades, auxiliando-me com conselhos.
Em vez de reconhecer nela, além da mãe que é da sua esposa, a amiga dedicada que sempre o foi, trata-a assim?
—Manuela, eu a entendo e acho mesmo que nada deveria ter dito.
Desculpe-me, desculpe-me!...
Cláudio retirou-se da companhia da esposa e foi preparar-se para o jantar, aguardando os amigos, tão necessários ao seu coração endurecido pelo sofrimento da incompreensão e da solidão em que se fechava.
Logo mais os encontraria.
O amigo com quem compartilharia, não só do jantar, mas da sua companhia fraterna e de alguém mais com Espírito jovial, na pessoa da filha de Charles, naquela casa tão triste.
Na casa onde nunca tiveram o sorriso de uma criança, como era seu desejo, nem nunca se viu uma só correndo por entre eles, brincando e trazendo-lhes o refrigério para o Espírito.
Isto ele nunca perdoou em Manuela, no entanto, nunca mais se queixou.
Nada mais adiantava — o tempo passara e ela envelhecera, apesar de guardar ainda muita beleza.
Seus cuidados, decorridos tantos anos, precisavam ser maiores, para encobrir as marcas que o tempo deixa em cada um.
Quando Cláudio viu Marie Anne, sentiu uma ponta de inveja do amigo, que, caminhando em sua direcção, trazia consigo aquela flor de candura.
A linda jovem dava o braço ao pai, como se quisesse um apoio para resguardá-la do desconhecido.
Era tímida, sobretudo num ambiente estranho.
— Esta, Cláudio, é a minha muito amada Marie Anne, a filha querida do meu coração, a que tem sido o alento para a minha vida, desde a partida de Juliete, minha esposa.
Marie Anne simpatizou com Cláudio, que a olhava com ternura paternal.
Ele não se sentiria mais tão sé naquela casa, poderia conversar com alguém, e isto o alegrava.
Quando cumprimentou novamente Manuela, Marie Anne referiu-se à sua beleza e pediu a Cláudio que lhe dissesse.
Ao receber o recado, notou-se, em seu rosto, um sorriso de satisfação, demonstrando ter atingido o seu objectivo, que era sempre o de exibir e procurar conservar a beleza que seu físico abrigava.
O jantar transcorreu com conversas, referências várias e algumas recordações de Charles — factos que lhe vinham à mente, de quando ali estivera há tantos anos...
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Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 22, 2018 7:58 pm

Logo após, como se tratava da primeira noite que passariam naquela casa, foram conduzidos ao salão, embora mais nenhum convidado houvesse.
Era uma forma de homenageá-los, colocando-os à vontade, e de mostrar a Marie Anne mais uma parte da casa que, oportunamente conheceria toda.
Acomodados em um conjunto de poltronas, colocadas a um canto do salão, a conversa continuou agradável para Charles, Cláudio e até para Marie Anne, que também participava.
Manuela, contudo, estava alheia...
Vez por outra Cláudio dizia-lhe alguma frase em português, evitando que se sentisse tão isolada, pois sabia, se assim ocorresse, seria sobre ele que ela descarregaria a sua ira.
Muitas recordações foram trazidas, das quais Marie Anne pouco participou.
O tempo de Paris enquanto ainda estudantes, e muitas acções daquela época, quando eram impelidos pelo entusiasmo da juventude.
Com o passar dos anos, porém, parecia-lhes impossível tê-las realizado, conquanto nelas nunca tivesse havido nenhum erro.
Lembraram-se da primeira vez em que Charles viera a Portugal a trabalho, e de como era a vida na casa, naquele tempo de tantas festas, das quais ele pudera participar.
Lembraram-se daquela que havia partido, e Charles recordou-se até da ajuda que ela lhe dera com o seu francês, lembrando-se, consternado, da sua moléstia e da sua partida.
Cláudio não se esqueceu de dizer também que, naquela época, foi o melhor que podia ter lhe acontecido, pela sua existência tão triste, tão só e isolada em si mesma.
— Foi uma libertação! — considerou ele.
Ocuparam algum tempo nessas recordações, até que chegou a hora de recolherem-se.
A viagem tinha sido estafante para os hóspedes, e o repouso lhes era necessário.
O dia seguinte os aguardava, e, Marie Anne, ansiosa, ao se despedir do pai, perguntou-lhe:
—Como vamos passar o nosso dia, amanhã, papai?
—O amanhã ainda não chegou!
Se você estiver bem descansada, eu a levarei a um passeio.
Quero mostrar-lhe um pouco da cidade.
Como vamos permanecer bastante tempo, faremos o que desejarmos!
Todavia, antes de sairmos, quero dar um passeio aqui mesmo!
—Por quê, papai?
—Você observou o belo jardim desta residência?
Pois bem, desejo fazer um passeio bem demorado e bem cuidadoso por ele!
—Por que cuidadoso?
—Quero examinar todos os seus detalhes, encontrar nele todas as flores que me recordem a época em que aqui estive!
Quer acompanhar-me?
Conversaremos enquanto o realizarmos!
— Gostaria muito, é só você me esperar!
Quero que me fale mais de quando aqui esteve, e, pelas conversas desta noite, quero saber sobre aquela pessoa a quem vocês se referiram com tanta ternura, e que partiu naquela ocasião!
— Poderemos conversar sobre ela, mesmo porque, o jardim da casa era o seu lugar predilecto!
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Mariana ou Marie Anne? - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti - Página 3 Empty Re: Mariana ou Marie Anne? - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 22, 2018 7:58 pm

12 - O CARAMANCHAO
A manhã surgia cheia de expectativas para Marie Anne, que nada ainda tinha podido ver da terra que visitava, nem da casa onde se hospedava.
Lembrava do passeio pelo jardim que o seu querido pai lhe prometera e não queria perdê-lo por nada.
Assim, quando ouviu bater à porta do seu quarto, já estava pronta.
—Bom dia, filha querida!
—Bom dia, papai! Estou ansiosa para realizarmos o passeio que me prometeu, e ainda mais para ouvir a história daquela jovem a quem se referiram ontem.
—Desçamos para o nosso café; depois faremos o passeio.
O céu estava muito azul, e uma aragem fresca, própria das manhãs primaveris, envolvia-os, balançando muito de leve as flores, como se fosse a saudação de cada uma, recebendo os visitantes que as admiravam.
Marie Anne deu o braço ao pai e começaram a andar por entre os caminhos que separavam os canteiros, conversando, conversando, ora um chamando a atenção do outro para qualquer detalhe do jardim, ou mesmo para alguma espécie de flor desconhecida.
Iam ouvindo o canto dos pássaros, que, naquela manhã, como em todas as outras, se faziam presentes, festejando a aragem fresca e o céu azul, agradecendo a Deus, com seu canto, tanto esplendor que a natureza lhes permitia visualizar.
Sem se aperceber, Charles foi conduzindo a filha àquele local tão aguardado por ele.
O pequeno caramanchão, todo envolto por trepadeiras floridas, cujos cachos pendentes estavam plenos de beleza, o que admirou muito a Marie Anne.
—Que recanto mais agradável, papai!
Olhe, aqui tem um caramanchão! - exclamou, revelando surpresa.
Veja como está florido!
Podemos entrar um pouquinho nele?
—Por que não, filha!
Marie Anne desprendeu-se de Seu braço e, mais apressada, correu para o seu interior, enquanto Charles a seguiu calma e pausadamente, querendo trazer de volta aqueles momentos em que lá estivera conversando com Mariana, há tantos anos atrás... Não adentrou!
Parou à porta, examinou tudo muito bem, e verificou que sua filha já se encontrava deliciosamente sentada em uma cadeira, querendo usufruir daquele santuário, tanta era a paz que ele guardava.
—Eu atrapalho-a, senhorita?
—Não, o senhor não me atrapalha.
Seja bem-vindo!
Será um prazer conversar com o senhor.
Apenas estava aqui descansando um pouco...
Pode entrar e me fazer companhia que gostarei muito!
A brincadeira que fizera com Marie Anne deixou-o chocado pela resposta.
Por que ela respondera de forma tão semelhante ao que já ouvira há tantos anos atrás?
—Entre, papai, por que tanta cerimónia? — tomou a falar-lhe.
—Estava apenas brincando com você.
Estávamos no reino do faz de conta....
— Entre! Fiquemos aqui um pouco, enquanto você me fala sobre o que desejo saber.
—Sim, filha.
Acomodando-se em uma cadeira perto de Marie Anne, começou a narrar o que ocorrera naquela ocasião, desde que chegara à mansão dos Sousas.
Contou-lhe como Mariana era, como 0 ajudou e porque vivia tão separada de todos.
A medida que ia ouvindo a narrativa, uma ternura imensa tomava o coração do pai, e ela percebeu, ele havia se afeiçoado muito àquela criatura sobre a qual falava e alegrou-se desse carinho que ele tivera para com ela.
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Mariana ou Marie Anne? - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti - Página 3 Empty Re: Mariana ou Marie Anne? - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 23, 2018 8:42 pm

—Papai, você simpatizou muito com ela, e, pelo que me contou, ela não possuía o físico perfeitamente normal, mas era uma pessoa admirável, não é verdade?
Você se apaixonou por ela, naquela ocasião?
—Que pergunta, filha!
Não me apaixonei, mas senti um afecto tão grande, que nem mesmo consegui explicar.
Penso que não a via com a aparência real, mas via o seu Espírito!
Além de tudo, um outro fato a fazia sentir-se desprezada o de ser colocada sempre em comparação com a beleza radiante da irmã.
Contudo, enquanto a irmã possuía só uma bela aparência, ela não era bonita, mas o seu interior, com a vida tão difícil, tão aniquilada, era grandioso!...
Ela era muito culta, e este caramanchão o seu lugar predilecto!
Aqui passava a maior parte do seu dia, envolta pelas leituras, fugindo da realidade e convivendo com as personagens das estórias que lia, viajando sempre com elas para os locais em que a levavam.
—Ela deve ter sido uma criatura admirável!
Eu também me sinto muito bem aqui!
Você contou-me muitas coisas, mas falta uma...
—Já lhe contei tudo o que ocorreu naquela época!
—Sim, disse tudo, só não me disse o seu nome!
—Não sei se devo, se irá entender!...
Não sei como o receberá!
— Diga-me!
Que importância tem seu nome para que eu possa não entender?
— É... filha... o seu nome...
Começou falando de um modo reticente, mas, após pequena pausa, tomou coragem e completou:
foi o mesmo que dei a você, quis fazer-lhe uma homenagem!
Quem sabe se ela, disso tiver conhecimento, não ficará feliz?
—Pois saiba, estou feliz e agradecida!
Só prova o carinho que teve para com ela.
— Você não se importa?
— Não, papai, pelo contrário, sinto-me também homenageada!
As palavras de Marie Anne foram de muita alegria para Charles por revelarem compreensão.
—Depois que ela partiu, você logo voltou a Paris?
Os familiares, como disse, parece não terem se importado e até sentiram-se aliviados.
—Não posso afirmar com certeza, entretanto, foi o que deduzi!
Aquela criatura que julgavam, atrapalhava-os e envergonhava-os, não mais estaria entre eles, se bem que ela sempre soube o seu lugar e não os perturbava.
—A sua história, a narrativa de factos reais aqui desenrolados, deixou-me feliz, pois mais uma vez pude conhecer o seu verdadeiro carácter.
Você, jovem naquela época, podia não ter se sentido atraído para ela, que não era bonita e ainda possuía problemas físicos, entretanto não se importou, não a discriminou!
Procurou ver o seu coração, e empenhou-se em desfrutar da sua companhia, com todo o conhecimento que ela possuía e tantos elementos para manter uma conversação agradável.
Estou muito feliz por você, papai!
—Bem, filha, deixemos este caramanchão e continuemos o nosso passeio pelo jardim! Mais tarde, se pudermos, sairemos um pouco.
Agora, pela manhã, já é tarde.
— Ah, papai, sinto-me tão bem aqui, sinto tanta paz ouvindo o canto dos pássaros e rodeada por todas estas flores!...
Quero voltar mais vezes!
Quando não tiver nada para fazer, quero pegar um livro e passar, neste lugar, algum tempo lendo e desfrutando desta tranquilidade.
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Mariana ou Marie Anne? - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti - Página 3 Empty Re: Mariana ou Marie Anne? - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 23, 2018 8:42 pm

Suponho que ninguém mais vem aqui, depois que ela partiu.
—Nesta casa nunca houve crianças?
O seu amigo não tem filhos?
—Não, Marie Anne.
Manuela, a sua esposa, nunca os quis.
Pensando apenas em sua beleza, não desejava perturbá-la.
Agora, decorridos tantos anos, a casa ficou nesta solidão que você mesma viu.
Deve ser muito triste!
Teriam tempo já de ver crianças enchendo a casa de alegria, como netinhos queridos, filhos de seus filhos, se os tivessem tido.
Cláudio lamenta essa situação e vê-se triste e só.
Nunca combinou bem com a esposa e a convivência entre eles tem sido difícil.
—Muito diferente de nós, lá em casa, quando ainda tínhamos mamãe, não é verdade, papai?
— É verdade! Nós fomos sempre unidos e você completou a nossa alegria.
Veja, filha, com a partida de sua mãe, o que teria sido de mim, não fosse você? Pense bem, como seria a minha vida?
Mas, graças a Deus, a sua companhia tem sido a alegria e a força de que necessito para continuar vivendo.
—Bem, papai, deixemos de tristezas e continuemos o nosso passeio.
Alguns dias foram decorridos depois disso, período em que Charles levou Marie Anne conhecer muitos pontos da cidade.
Retomou para ver locais que visitara há muitos anos atrás, e encontrou até pessoas com quem trabalhara.
Conheceu outros pontos que, naquela época, não existiam, porque o progresso, embora lento ou de forma mais acelerada, sempre se faz.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 23, 2018 8:43 pm

13 - DE ESPÍRITO PARA ESPÍRITO
Manuela não estava muito à vontade com os hóspedes, pois, nos momentos em que Cláudio se encontrava ocupado com as suas obrigações junto ao governo, ela sentia-se só, sem saber o que fazer.
Muito poucas palavras eram trocadas e ela ficava preocupada.
Esmerava-se em sua aparência, e a cada dia queria fazer-se mais bela e diferente, através dos trajes e dos arranjos que usava.
Num desses dias em que se encontravam a sós em casa, com muita dificuldade de entendimento, Charles perguntou a Manuela por sua mãe, desejando saber se lhes era permitido vê-la.
— Quem sabe ela me reconhecerá! — exclamou.
Marie Anne também gostaria de visitá-la.
Manuela, não vendo nenhum impedimento, levou-os até os aposentos onde sua mãe se encontrava.
Quando entraram, a cena que viram comoveu-os profundamente.
Uma velha com os cabelos muito brancos, bem diferente daquela senhora orgulhosa que Charles conhecera, estava deitada entre lençóis de linho, tendo ao lado lima criada ao seu dispor.
Quando percebeu a entrada de algumas pessoas, perguntou:
É você, Mariana?
Faz muito tempo que não vem me ver!
O que aconteceu?
Que bom, hoje você está aqui!
Tenho andado muito triste, tenho pensado muito, e quero que você vá à próxima festa que vamos dar.
Não quero mais vê-la escondida!
Procure a modista e peça que lhe faça um lindo traje!
A reunião será muito bonita e você ficará junto de mim.
Está bem assim, Mariana?
— Mamãe, por que está dizendo isso?
Mariana já não está mais connosco!
Você sabe, ela partiu há quase trinta anos!
— Não, filha, Mariana está aqui, olhe-a, ali! — afirmou, apontando Marie Anne.
Como está bonita!
Ela não é mais aquela mocinha feia!
Agora é bonita e quero que vá connosco à festa.
Ficaremos todos juntos!
Ela já é tão bonita quanto você!
— Charles, desculpe-me, mamãe não está mais no seu juízo perfeito!
Há dias venho percebendo, porém, como hoje, nunca a tinha visto!
Não sei se a entenderam; não sei se estão me entendendo, mas eu contarei a Cláudio  quando chegar, e ele lhes explicará o que ocorreu!
Marie Anne, sem nada compreender, aproximou-se da velha, curvou-se e deu-lhe um beijo na testa, ouvindo de volta estas palavras:
— Obrigada, minha filha!
Peço que me perdoe por aquele tempo em que não permitia a sua participação nas nossas reuniões!
Agora quero que fique sempre connosco!
Você estará em todas as festas, em todas as recepções...
A situação era muito estranha para Manuela, que se sentia perturbada.
Pegando no braço da mocinha, puxou-a, chamando também Charles para se retirarem.
Trocaram algumas palavras que não foram entendidas e deixaram o aposento.
Manuela, chocada, confusa, atribuindo aquela fala à demência já notada em sua mãe, em alguns momentos, chegava à conclusão de que essa insânia já era total.
Marie Anne nada entendeu e Charles, que conhecia uma ou outra palavra, não tinha o todo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 23, 2018 8:43 pm

Aguardaria a chegada de Cláudio, pois era o único com condições de explicar-lhes o acontecimento.
Os olhos do Espírito são, às vezes, mais agudos que os olhos do corpo, quando nos sentimos doentes, conforme ela se encontrava.
Depois de muitos anos vividos, o passado retoma à nossa mente, sobretudo se temos a oportunidade, através do repouso a que a enfermidade nos obriga, de reflectir bastante.
Se já um pouco modificados nos encontrarmos, compreendendo que envelhecemos sem nada termos plantado de bom para uma colheita farta, verificaremos que as nossas antigas convicções de nada nos valeram.
E, mesmo estando um tanto inconscientes e afastados da realidade, o remorso nos toma. Graças a Deus quando isso acontece, e era o que estava ocorrendo com a velha senhora.
Ela tivera uma vida infeliz aos olhos dos que valorizam o afecto, a verdadeira união de família, a comunhão de sentimentos nobres, porque nada disso realizou.
Sempre trabalhou estimulando aparências, desprezando a filha mais necessitada para exaltar a outra, a que era bela, e agora se via envolvida por um grande remorso.
Eram os olhos do Espírito, presentes nela, naquele instante, pois vislumbrou sua filha Mariana, a verdadeira em Espírito.
Os Espíritos sempre se reconhecem, apesar da aparência que o corpo físico toma.
Ele é sempre a essência primeira, duradoura e inconfundível aos olhos daqueles que dele se aproximam, quando em Espírito.
Nada disso eles poderiam compreender, e atribuíram o facto à demência própria de sua senilidade.
O resto do dia findou-se e Cláudio voltou das suas obrigações.
Logo foi colocado a par do sucedido, explicando tudo a Charles e Marie Anne.
Mas, como nem mesmo ele compreendia bem, acabou por concordar com Manuela que sua mãe deveria ter piorado muito.
Pai e filha estranharam, porém, não se preocuparam.
Também nada entendiam.
O que aos olhos dos encarnados se apresenta de uma forma, pela limitação das suas possibilidades, o lado espiritual, pela amplitude dessas mesmas possibilidades que lhe permitem um entendimento maior, tem outras explicações e argumentos.
A maioria das pessoas não pensa que a vida continua, que vivemos muitas vidas e vamos ao Mundo Espiritual e retornamos quantas vezes forem necessárias ao Espírito.
Não imagina que, através das múltiplas existências, ressarcimos os débitos contraídos, pois sempre os temos, em maior ou menor escala.
Por isso, devemos viver de modo a que cada vez mais os nossos Espíritos evoluam, caminhando em direcção ao Pai Maior, seguindo os exemplos que seu filho, o nosso muito amado Mestre Jesus, veio nos trazer através dos seus ensinamentos e dos exemplos de vida que colocou em suas parábolas.
Nunca devemos deixar perder a mais ínfima oportunidade de fazermos o bem, de sermos bons, caridosos, humildes e desprendidos das futilidades supérfluas da vida, porque, dos pequenos actos é que vamos aprendendo e nos exercitando, para, um dia, alcançarmos os grandes.
Quando a eles pudermos chegar, tenhamos a certeza, o desprendimento necessário ao Espírito realiza-se, e o nosso progresso está caminhando connosco, em direcção ao Pai.
Nada disso parece verdadeiro aos apegados somente às aparências.
A enfermidade daquela senhora foi a oportunidade para que o seu Espírito pudesse pensar e reflectir, e, por isso, muitos factos voltavam-lhe à mente.
Tudo o que fizera de errado, o que valorizara numa filha e desprezara na outra, ela não tinha condições de avaliar conscientemente, através de um cérebro activo, pois já não o tinha tão lúcido como antigamente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 23, 2018 8:43 pm

Entretanto, como nada fica perdido, o seu Espírito ali estava participante e lembrando-lhe de todas as suas acções.
Mais alguns dias de paz para todos, decorreram, naquela casa, durante os quais, em muitas oportunidades, Marie Anne, após escolher um livro na vultosa biblioteca que possuíam, escarninhava-se para o caramanchão, depois de uma volta pelo jardim, admirando as flores.
Certa vez, comentou com o pai, dizendo:
— Papai, tão habituada estou a passar umas horas naquele caramanchão, lendo, após uma volta pelo jardim, que, ao regressarmos à nossa casa, não saberei como fazer!
Sentirei muita falta daquele recanto, já integrado em mim e onde desfruto de tanta paz, que me será difícil continuar sem ele.
—Tenho notado que você passa muito tempo lá e, às vezes, até sinto a sua falta.
—Quando isso acontecer, você sabe onde estou.
Vai ao meu encontro, e, ao invés de ler, conversaremos.
Se quiser, também poderá ler em minha companhia.
—Não havia pensado nisso!
Da próxima vez eu o farei.
Contudo, não é bom apegar-se tanto àquele lugar, pois, em nossa casa, não o temos.
Nem mesmo jardim possuímos lá, a não ser alguns pequenos vasos de flores.
—Eu sei, papai!
Quando retomarmos, a nossa vida será diferente.
Tenho as minhas ocupações, as minhas amizades, a rotina da nossa vida voltará, e apenas me lembrarei daquele local, com muito carinho.
Quem sabe, em algum momento, quando sentir necessidade de um pouco de paz, de tranquilidade, eu não possa vir aqui em pensamento, passear entre as flores e descansar, depois, no caramanchão...
Será o efeito, benéfico da mesma forma, papai?
—Acredito que sim.
O pensamento comanda o corpo e as acções, por isso, mesmo em pensamento, podemos visitar lugares que fazem bem ao nosso Espírito.
Você não vê quando nos lembramos de pessoas, com muito carinho, como o fazemos com sua mãe?
Assim também podemos nos lembrar de locais e nos transportar a eles em pensamento, sentindo o bem-estar que nos proporcionam.
—Era isso mesmo que estava imaginando.
Falando nisso, papai, quanto tempo vamos ficar aqui?
—Ainda não sei.
Chegamos há tão pouco, não é verdade?
—Mas já estou saudosa.
Penso, às vezes, que saímos e deixamos mamãe sozinha em casa, porém, rapidamente me lembro de que ela já não está mais lá...
As conversas entre pai e filha eram sempre tão amoráveis, pois um grande afecto os unia, revelando o prazer que um desfrutava na companhia do outro.
Alguns dias mais e Marie Anne perguntou a Cláudio se não podiam retornar para uma visita à mãe de Manuela.
Comprovariam se ela estava mesmo com a mente perturbada ou se algum problema causado pela sua presença, fizera-a lembrar-se da filha.
Cláudio respondeu-lhe que poderia ir quando quisesse, acrescentando que não fora a sua presença que a fizera recordar-se de Mariana, pois ambas eram muito diferentes.
Podemos ir agora, então?
—Vou consultar Manuela que está mais em contacto com a mãe, e poderá dizer da possibilidade ou não da visita.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 23, 2018 8:43 pm

Consultada, Manuela não viu nenhum inconveniente, considerando que a visita seria uma forma de testá-la novamente.
Assim, todos, até Cláudio, dirigiram-se ao aposento dela.
Ao entrarem, ela se encontrava meio sonolenta, mas foi logo despertada por um beijo de Marie Anne em sua fronte.
—Oh, minha filha, é muito bom que tenha vindo!
Eu senti a sua falta estes dias...
Por que demorou tanto?
Já lhe pedi perdão, lembra-se?
Poderia ter vindo mais vezes.
Fique um pouco aqui, comigo!
Ah, Mariana, eu a vejo tão bonita, como você está mudada!
A jovem nada entendia, mas Cláudio, presente, foi traduzindo o que a velha falava.
Marie Anne desejou dizer-lhe algumas palavras de afecto, mas sabendo que não seria compreendida, conteve-se e afagou os seus cabelos, pois que gestos todos entendem e sabem quando demonstram carinho.
Enquanto isso, a velha continuou a dirigir-se a ela, sem dar atenção a mais ninguém.
—Ah, Mariana, seu pai gostaria muito de vê-la, também, como está agora!
Lembra-se como ele lhe trazia muitos livros?
Naquela ocasião eu ficava feliz quando você se afastava para suas leituras, assim não nos incomodava nem nos envergonhava em nada.
Agora, eu é que me envergonho diante de você, por tudo o que lhe fizemos.
Deve ter sofrido muito, não é mesmo?
Sei que um dia poderá perdoar-me, mas perdoe também a Manuela que não gostava de você!
Manuela, ao ouvir seu nome, repreendeu a mãe, dizendo-lhe asperamente:
Chega, agora, mamãe!
Você não deve falar dessa maneira!
Sabe que Mariana partiu há muitos anos e não precisava dizer se eu gostava ou não dela.
É melhor nos retirarmos!
—Não precisa ficar brava, Manuela!
Eu a entendo, você não gostava dela, mas lhe digo — se ela partiu, agora retomou, porque quem está aqui comigo, afagando-me os cabelos, é a nossa pequena Mariana, e tão bela quanto você!
Mais uma vez aquela atitude causara muita estranheza a todos, e até Marie Anne não podia compreender bem por que lhe ocasionava tal impressão.
Quando ela não estava presente, essa atitude incoerente não era tão percebida, senão em algumas ausências rápidas da realidade, e nada mais.
Todos se retiraram, e Marie Anne ainda pôde ouvir os seus apelos, pedindo-lhe que sempre a visitasse, para a sua alegria.
A sua presença significaria o seu perdão, e, se se ausentasse de vez, concluiria que ainda não a tinha perdoado.
A situação ficara difícil, não só para Manuela, mas para todos.
Ninguém entendia o que se passava, a não ser os que podem ver além dos olhos do corpo.
Se pudessem, verificariam que Mariana realmente ali estava, tão somente em Espírito, vivendo uma nova oportunidade na Terra, com outro corpo.
Entretanto, nem esses a compreenderiam, pois quando voltamos, tudo o que já ocorreu connosco em outras vidas, nos é vedado conhecer ou recordar!
Não é benéfico ao Espírito, que procura caminhar, não mais apoiado no que já fez ou já foi, mas trazendo, fortemente, novos propósitos, sem, contudo, reconhecer a razão deles.
Assim acontecia com Mane Anne.
Simpatizara com a velha pela forma como a tratara, sentira compaixão pelo que lhe dizia e pelos sentimentos tão íntimos ali expostos, mas imaginava que somente a sua juventude a confundira com a filha, a despeito da diferença entre ambas, o que era atribuído à sua inconsciência senil.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 23, 2018 8:43 pm

Apesar da estranheza, fizeram uns poucos comentários após terem se retirado dos aposentos, e o assunto estava esquecido.
Não lhe deram atenção, pois nada compreendiam, e Manuela, não muito apegada a assuntos lúgubres — como o considerava — disse, mostrando muito entusiasmo:
— É hora de esquecermos esse acontecimento triste.
Mamãe está muito velha e, de pessoas velhas e enfermas, nada se espera, a não ser que piorem cada vez mais.
Não é por isso que devemos ficar tristes também.
Ela está amparada, bem assistida e nossa vida deve continuar.
Estava pensando em fazer, em nossa casa, uma pequena reunião festiva para alegrar um pouco o ambiente e propiciar, aos nossos queridos hóspedes, um pouco de alegria.
A nossa casa é muito silenciosa, muito triste, e um pouco de arruído só fará bem.
Cláudio explicou a Marie Anne e Charles o que Manuela pretendia, e, à medida que ia falando, viu os olhos da jovem adquirirem um brilho novo de alegria e entusiasmo, e, antes que fizessem qualquer comentário, ela falou:
— Eu gostaria muito, senhor Cláudio.
Agradeça a Manuela por nós!
Aguardarei essa reunião com muita ansiedade.
A reunião não seria nos moldes das realizadas nos tempos idos, porque aquelas amizades do passado muitas haviam se perdido pela falta de contacto social a que se viram reduzidas, embora, vez por outra, pequenos encontros eram realizados na casa, sobretudo para receberem companheiros de Cláudio, figuras preeminentes do governo e que deveriam ser homenageadas.
— O salão será reaberto! — prosseguia, entusiasmada, Manuela, Quero trazer para ele, não só aquelas pessoas que privam da nossa amizade mais antiga, mas também a euforia da juventude.
Faremos, assim, uma homenagem à jovem que ora se hospeda connosco, e traremos de volta um pouco da alegria juvenil ao nosso lar.
Que acha Cláudio?
Ah, quanto Cláudio teria para lhe dizer!
Quantas mágoas foram reavivadas naquele momento, por ela mesma.
Inconscientemente falava da tristeza a que a casa fora reduzida, não se lembrando de que aquela alegria juvenil a que se referia, ali não existia por sua própria culpa.
Quanto Cláudio podia ter lhe dito, mas, de que adiantaria?
Só serviria para que ela descarregasse sobre ele a sua grosseria, e isso não seria bom diante dos hóspedes.
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14 - A FESTA
Os preparativos para a festa, segundo Manuela, simples, estavam sendo providenciados.
Os convites, embora reduzidos, foram feitos.
Músicos, para animá-la, foram contratados.
A casa seria aberta como há muito não acontecia.
Os amigos surpreenderam-se, mas ficaram contentes pelo convite dos Sousa Alves, como então eram chamados.
O cargo que Cláudio ocupava era de muito destaque no país além da riqueza, antes pertencente às duas importantes famílias, agora concentrava-se toda em uma só.
Membros do governo também compareceriam.
Não podiam ser esquecidos.
Era o prestígio que deveria continuar amparando Cláudio.
Assim, uma reunião que, da primeira ideia, seria simples, apenas para congregar uns amigos e se distraírem um pouco, começou a crescer, crescer, e já se vislumbrava nela um grande acontecimento social.
Marie Anne estava exultante!
Nunca participara de nenhuma festa dessa natureza.
Só conhecia as festinhas simples e rotineiras, que se realizavam, às vezes, em casa de amigas, e nada mais.
Como será uma festa desse porte? — indagava-se, curiosa.
O salão estava sendo decorado, conforme o acontecimento requeria.
Papai, estou preocupada!
Como vou comparecer a uma festa dessas?
Tenho medo de não saber por Anne!
E o vestido?
Nada possuo adequado ao que estou prevendo.
—Não gosto de aparências, você sabe disso.
Devemos é valorizar as boas qualidades de cada um, porém, eu a compreendo.
Também não quero vê-la vestida de modo a não condizer com o ambiente, com os outros convidados e mesmo com a própria Manuela, ainda mais numa ocasião dessas, em que estará em sua companhia.
Não se preocupe!
Falaremos com ela e providenciaremos o que lhe for necessário.
Também nada trouxe, nem tenho trajes que me levem a essa festa bem aparentado, mas me arranjo eu com Cláudio.
— Então Manuela pode orientar-me?
—Sim, filha, conversaremos quando Cláudio estiver presente, e ele nos ajudará a lhe explicar.
Se essa festa for conforme ela disse, em nossa homenagem, sobretudo em sua, deverá comparecer na altura.
Todos a olharão e não quero que façam o menor comentário a seu desfavor.
Entraremos juntos e teremos, para você, as atenções dos presentes, não é o que deseja?
—Também não é tanto assim!
Não desejo todas as atenções, nem todos os olhos para nós, mas também não pretendo que nos olhem por não estarmos adequadamente vestidos.
Estando igual aos outros, já fico contente.
HEÉ| Providenciaremos o que for necessário, no entanto, tenho a certeza de que nada disso precisará!
Só a sua juventude angélica, a sua beleza, serão suficientes para atrair a todos e deixar seu pai muito enciumado.
—Ah! papai, não precisa ter ciúme de mim!
Você sabe que é o centro das minhas atenções, o motivo principal de eu viver, e a quem me dedicarei sempre.
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Mariana ou Marie Anne? - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti - Página 3 Empty Re: Mariana ou Marie Anne? - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 23, 2018 8:44 pm

E espero, estejamos juntos por muito tempo ainda.
A sua companhia é a minha alegria e, dedicar-me a você, o meu prazer maior.
— Você diz isso enquanto não chega aquele que a roubará de mim!
—Ninguém me roubará de você!...
O meu coração é muito grande!
Nele, o seu lugar já está tomado, e, se algum dia, um amor aparecer em minha vida, haverá também lugar para ele, sem que tome o seu! Digo-lhe mais, se a minha dedicação a você tiver que ser sacrificada por alguém que surgir em minha vida, embora eu vá sofrer, esteja certo, nada nos afastará um do outro.
Pelo contrário; afastarei todo aquele que me impedir de estar em sua companhia!
Não tenha receios e nunca duvide do meu amor!
—Ah, filha, estávamos apenas conversando e eu fiz uma brincadeira.
Sei da sua dedicação e do seu amor, mas seu pai está ficando velho, para não dizer que já o sou, e não quero prejudicar a sua vida, o seu futuro.
O tempo passa, eu partirei e, se assim proceder, ficará sozinha...
Você deve cuidar de sua vida, de ser feliz, sem se preocupar em demasia comigo.
Tais preocupações já rondavam o Espírito de Charles, mas nunca tivera coragem de dizer. Sua filha era uma jovem muito bonita, e logo apareceria aquele que a levaria consigo.
Nunca se oporia, a menos que o pretendente não fosse merecedor do seu afecto.
Compreendia muito bem o amor, pois sentira-o e fora feliz com á esposa, e queria que também Marie Anne, um dia, encontrasse um companheiro digno e honesto para ampará-la, protegê-la e amá-la muito, pois ela o merecia.
De um simples vestido, a conversa tomara um rumo que demonstrava a sua preocupação de pai, e mais, estava antevendo, naquela festa, o motivo de todas essas colocações.
Sem o saber, inconscientemente já o admitia e temia, mas, se as palavras da filha o tranquilizavam de um lado, preocupavam-no de outro.
Não queria ser, de forma nenhuma, um empecilho a Marie Anne.
A vida precisa seguir o seu curso normal.
O aparecimento do amor, para os jovens, é um momento importante, e, quando é correspondido com a mesma intensidade, a alegria é grande.
A felicidade que os toma é aquela que, mesmo vivendo na Terra, com os pés no chão, se sentem flutuar, tanto o enlevo que a companhia de um faz ao coração do outro.
Ele o sabia e temia, mas conhecia bem a filha.
Após, então, essa conversa, tinha a certeza, ela nunca o abandonaria, mas também não era isso que ele desejava.
O amor nos traz a alegria do enlevo, da felicidade, porém, quando proibido ou impossível, traz-nos uma grande infelicidade.
Era o que ele não queria para a sua dedicada filha, que tinha todo o direito de ser feliz e o seria.
Ele tudo faria para isso, em qualquer momento de sua vida, mesmo com o sacrifício da sua pessoa.
O que importava, agora, era somente ela e nada mais...
Tudo pronto e o grande dia chegou.
Marie Anne teve o seu lindo traje, do qual Manuela fez questão de se encarregar, como se o fizesse para si própria, nos velhos tempos, com o mais elevado requinte.
Quando ela se apresentou, diante de Charles, o seu olhar de espanto e de admiração foi grande.
Não que não reconhecesse a beleza da filha querida mas, vestida daquela forma e tão bem arranjados os cabelos e o rosto, nunca a tinha visto e deslumbrou-se.
—Não, minha filha, penso que não devo ir a essa festa!
—Por que papai?
Não gostou?
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Mariana ou Marie Anne? - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti - Página 3 Empty Re: Mariana ou Marie Anne? - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 23, 2018 8:44 pm

—Você perturbará muito!
Não dará paz aos rapazes, e o meu trabalho, para protegê-la, será muito grande!
Por isso, não devemos ir...
—Ah, papai, deixe de brincadeiras!
Eu não via a hora da festa chegar, e agora, não venha com gracejos dessa natureza!
Fale sério, como estou?
—Linda! Mas que irá perturbar os rapazes, irá, não é brincadeira!
—Não diga isso!
Eu vou ficar com você, já lhe falei!
—Sim, ficaremos juntos, contudo, a festa é em sua homenagem, e dará também o prazer da sua companhia a todos que a solicitarem, principalmente para uma dança, se o quiserem.
—Mas a primeira é sua!
Não dançarei com ninguém antes de dançar com você!
Ela está reservada desde que a festa foi idealizada.
—Dar-me-á muita honra e muita alegria, filha!
Manuela e Cláudio, ao se dirigirem ao salão onde fariam as honras da recepção aos convidados, pediram a Charles e a Marie Anne que os acompanhassem, a fim de serem apresentados a cada um, à medida que fossem chegando.
Pouco a pouco o salão foi ficando repleto, a música no ar alegrava o ambiente, e tudo decorria como Manuela previra.
A alegria era visível em cada rosto e espalhava-se pelo salão...
Muitos rapazes compareceram, muitas jovens bonitas, mas nenhuma tão bela quanto Marie Anne, na inocência de seus quinze mos, no frescor de suas faces juvenis e na beleza de seu traje. Marie Anne chamava a atenção de todos.
Mesmo aqueles que lhe haviam sido apresentados, não se furtavam de continuar olhando-a.
Ela permanecia firme junto do casal que a hospedava e do pai em quem se apoiava, e era o centro das atenções, para quem convergiam todos os olhares.
Estava aturdida.
Nunca participara nem vira nada como o que se realizava ali, naquela noite.
Muitos rapazes disputavam-na com o olhar, mas não se atreviam a chegar.
Ninguém ainda estava dançando.
A um canto da sala, uma grande mesa fora colocada, sobre a qual finas iguarias estavam à disposição daqueles que não se deliciavam mais com a dança, e viam no comer o seu prazer maior.
Quando a chegada de convidados se asserenou, e a maioria se encontrava em pequenas rodas conversando, eis que Manuela e Cláudio, seguidos por Charles e Marie Anne, dirigiram-se ao centro do salão para a primeira dança.
Estou nervosa, papai!
Penso que não conseguirei dançar!
Tremem-me as pernas!
— Não se preocupe!
Imagine que estamos em casa e acalme-se. Você se sairá bem!
A orquestra que havia parado, esperando-os, a um sinal de Cláudio, reiniciou os seus acordes e a dança começou.
Por um pequeno espaço de tempo, apenas os dois casais rodaram pelo salão, porém, aos poucos, os outros foram se achegando, achegando e logo todo ele estava repleto de casais dançando e sorrindo felizes.
Depois de algum tempo, Marie Anne disse ao pai que gostaria de parar, estava cansada.
— Mas já, filha? Mal começamos!
— É só um pouquinho, depois continuaremos!
Você sabe, não estou acostumada e preciso de um intervalo para descanso.
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Mariana ou Marie Anne? - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti - Página 3 Empty Re: Mariana ou Marie Anne? - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 24, 2018 8:14 pm

Entretida junto do pai, ela ainda não havia notado, entre todos os rapazes, um que a olhava insistentemente, como que atraído por um ímã que o impedia de desprender seus olhos dos dela.
Charles, porém, já havia percebido, mas, arguto e receoso, nada disse.
Do momento em que eles pararam e se dirigiram para um dos lados do salão, a fim de não perturbar os que dançavam, ela percebeu aquele olhar insistente e ficou perturbada.
— Papai, há um rapaz que está me deixando encabulada, não tira os olhos de mim! Eu não sei mais como ficar. Que insistência!...
— É assim mesmo!
Eu já havia percebido!
Há muito tempo ele está olhando-a desse modo!
Cláudio e Manuela, fazendo também uma pausa, aproximaram-se.
Discretamente, Charles perguntou a Cláudio a respeito do rapaz, enquanto Manuela fazia algum comentário sobre a dança, com Marie Anne.
Embora ela não entendesse viu o entusiasmo em seus olhos.
—Eu o conheço, sim!
É o filho de um companheiro do governo — rapaz culto e muito bem preparado!
Estudou, como nós, em Paris e está agora, aqui, aguardando uma oportunidade para também se encaixar na carreira política.
Para ele será fácil: tem o pai para abrir-lhe as portas.
É questão apenas de oportunidade.
Mas por que está interessado no jovem?
—Não sou eu, é ele quem não tira os olhos de Marie Anne!
Um convidado, aproximando-se de Cláudio para uma conversa rápida, interrompeu o que diziam.
À sua retirada, os dois casais foram para um local mais afastado do burburinho das danças, e logo juntou-se a eles o referido companheiro de Cláudio com sua esposa, o filho e uma filha.
Já haviam sido apresentados, mas a insistência do rapaz junto ao pai, foi tão grande, que ele precisou simular alguma necessidade momentânea, para introduzir o filho nos meios de Marie Anne.
Uma conversa banal foi logo entabulada.
A jovem, que havia; percebido o interesse do rapaz, ficou constrangida vendo-o aproximar-se, e deu logo o braço ao pai, como se precisasse de um apoio firme para o seu coração virgem de amor.
—Pois então vocês são de Paris? — perguntou o pai do rapaz. — respondeu Charles.
O jovem continuou ali, sem nada dizer, mas, num impulso, pois não podia perder a oportunidade, falou a Marie Anne, num francês muito correto, que também conhecia Paris, pois era onde havia estudado.
Marie Anne, ouvindo-o falar a sua própria língua, encantou-se e sorriu para ele, que se alegrou do seu sorriso, e tomando coragem, o jovem convidou-a para dançar.
Antes de responder, ela dirigiu um olhar ao pai, como que pedindo licença e a sua opinião.
Charles não se demorou, soltou-a de seu braço, dizendo-lhe:
— Vá, minha filha, acompanhe o rapaz nessa dança!
Eu a esperarei, aqui!
Um tanto receosa, pois nunca vivera experiência igual, Marie Anne lançou um último olhar ao pai, cuja fisionomia demonstrou que deveria ir.
Os olhos do rapaz brilharam muito, e, oferecendo-lhe o braço, levou-a ao centro do salão.
Nos primeiros instantes, apenas dançavam; nenhuma conversa, nenhuma palavra...
Somente a emoção da dança, o ouvir da música, a atenção nos passos que deviam dar.
Entretanto, quando a serenidade se fez, quando a primeira emoção passou, algumas palavras foram trocadas para um começo de conversa.
As mesmas utilizadas por todos que partilham desse enlevo.
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Mariana ou Marie Anne? - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti - Página 3 Empty Re: Mariana ou Marie Anne? - Eça de Queiroz/Wanda A. Canutti

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 24, 2018 8:14 pm

Ele elogiou a sua beleza e, mais que isso, a sua candura, falando-lhe do prazer de estar em sua companhia.
Marie Anne, no início, ouvia sem responder, mas o seu íntimo estava alegre.
Alguém a cortejava, dizia-lhe galanteios, falando de modo tão claro a sua língua, que o seu círculo, até então tão restrito, apenas o pai e Cláudio, estava sendo ampliado por ele o jovem que a tinha nos braços.
O coração das jovens é romântico e sonhador, e o de Marie Anne não era diferente.
Ela sonhava, por que não?
Esperava também, como toda jovem, a chegada daquele que invadiria o seu coração.
Mas não podia, naquele momento, deixar-se envolver por esses pensamentos, só porque ele a convidara para dançar.
Não deveria sonhar nada além da dança.
Assim rodavam e a conversa continuava.
Ele perguntou-lhe sobre Paris, onde permanecera por alguns anos, e de onde se via afastado desde que concluíra o seu curso.
Conversavam e dançavam até que, num dado momento, perceberam que a música havia parado.
Ele a conduziu até o pai, agradecendo-lhe pela dança, mas, como seus familiares ainda permaneciam no mesmo lugar, pôde ficar junto dela por mais algum tempo.
—Sua filha é encantadora, meu senhor!
Obrigado por permitir que dançasse com ela!
Logo a música recomeçou.
Ele a convidou novamente, porém Marie Anne pediu que esperassem mais algum tempo.
Não estava acostumada a tantas danças e se cansara.
Os outros rapazes, sequiosos também de merecerem a sua atenção, viram-se tolhidos, sem nenhuma oportunidade de se achegarem.
— Se não quer dançar, por que não damos uma volta?
Conversaremos mais à vontade, apenas ouvindo as músicas!
Marie Anne pediu licença ao pai e saíram pelo salão.
Caminhando entre as pessoas, ela sempre tinha um sorriso àqueles que a olhavam, mas a sua companhia constante foi o jovem.
Paulo — esse era o seu nome — convidou-a para uma volta pelo jardim, naquela noite, todo iluminado.
Ela recusou-se, não queria deixar o salão.
Confiava nele, mas o conhecimento era muito recente.
—Não, não quero afastar-me daqui!
Não devo deixar papai preocupado.
Mesmo à distância, sei que está nos observando.
—Pelo que me parece, você é muito ligada a seu pai.
—Sim, ele é tudo o que tenho agora, e eu, tudo o que ele tem!
Por isso, nós nos entendemos bem e queremos sempre estar um com o outro, desde que mamãe partiu.
—Então você não tem mais sua mãezinha?
—Não, ela partiu há não muito tempo.
Este é, também, um dos motivos desta viagem.
Papai queria distrair-se um pouco, rever amigos antigos e rever Lisboa, onde havia estado há muitos anos atrás.
—Ah! Então seu pai já conhecia a minha terra?
— Sim, já esteve aqui realizando um trabalho.
— Esta cidade não lhes pode oferecer o que Paris oferece.
Temos muito ainda que progredir para nos igualarmos a vocês.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 24, 2018 8:14 pm

— Não é preciso que nos igualemos.
Cada local tem as suas peculiaridades, dentro das possibilidades que lhe são oferecidas, e todos são adoráveis!
Basta, os aceitemos e saibamos compreender as suas limitações.
—Os governos empenham-se, porém, uma boa administração faz o progresso caminhar mais rápido.
—E verdade, mas não se esqueça, esse progresso caminha de acordo com os recursos que o país oferece.
Mas por que estamos nós, agora, a falar de política, de administração? — perguntou-lhe Marie Anne.
— Eu pretendo fazer parte do governo e, sem querer, este assunto, que me fascina, surge em meio a qualquer conversa, tanto é o meu desejo de fazer este país progredir.
Cada um contribuindo com a sua parte, o trabalho toma-se grande e imo, e o progresso advirá.
Quem sabe não estão apenas aguardando a sua colaboração, não é mesmo?
Não faça gracejos, Marie Anne!
O assunto é por demais sério, mas entendo, não é sobre o qual você mais gosta de falar.
— Não que não goste.
Nada entendo de política, por isso não tenho condições de discutir.
Gostaria de voltar para junto de papai.
Ele deve estar apreensivo.
— Daqui onde estamos você pode vê-lo.
—Sim, entretanto gostaria de retomar.
—Não quer mais dançar comigo?
— Poderemos dançar, sim, mas primeiro vamos até ele, não quero deixá-lo muito tempo só.
— Ele não está só.
Veja, está numa roda conversando.
— Sim, irias quero ir até lá.
—Pois então vamos.
Naquela noite, Marie Anne não dançou com mais ninguém, apenas com Paulo, Paulo, Paulo...
Ela desejou dançar algumas vezes com o pai, porém, ele atendeu-a só uma vez.
De resto, permaneceu conversando com pessoas que o rodeavam e entendiam a sua língua.
Um estrangeiro quando chega a uma roda, é sempre alvo de atenções, sobretudo daqueles que falam a sua língua e querem demonstrá-lo.
Assim aconteceu com Charles, que foi muito assediado pelos convidados de Cláudio, sabedores da homenagem ao amigo recém-chegado da França.
A festa decorria, as horas passavam e os casais rareavam-se...
Alguns já se despediam e Paulo continuava com Marie Anne.
Ela sentia-se feliz na sua companhia, e ele estava também com o coração enlevado por ela.
Quando sentiu o passar das horas, e deveria retirar-se, foi ficando consternado.
—Marie Anne, logo mais preciso deixar esta casa, e não gostaria que minha retirada fosse marcada por uma ausência muito prolongada.
Como farei para vê-la outra vez?
Por tudo o que lhe disse, deve ter percebido, você tocou o meu coração e não quero perdê-la...
—Gostaria também de tornar a vê-lo.
A sua companhia alegrou-me a noite, porém, não estou em minha casa e não posso convidá-lo.
Você deve conversar com Cláudio e Manuela.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 24, 2018 8:15 pm

15 - CIUME INEXPLICÁVEL
A noite do baile findou.
Todos os convidados se retiraram, restando apenas um, que ficou junto de Marie Anne.
Ele não queria deixá-la, sem antes pedir autorização a Cláudio para voltar outras vezes.
Ao solicitar, obteve não só o consentimento, mas a polidez e a delicadeza do anfitrião fizeram-no sentir que a satisfação de sua presença seria toda deles, os donos da casa.
Que os visitasse quantas vezes o desejasse, pois sempre seria bem-vindo.
Manuela estava feliz.
Tinha podido, naquela noite, passear entre os convivas a sua beleza de matrona ainda jovem e bonita...
A felicidade de Marie Anne não era menor, apesar dos motivos diferentes — a companhia de Paulo durante toda a festa!
Cláudio não via, nessas ocasiões, nada mais que o interesse de manter reunidos os amigos que faziam parte do governo, comungando num mesmo ideal.
Uma reunião assim, amigável, fora do ambiente de trabalho, solidificaria mais as bases, e a sua segurança no cargo seria maior.
Não que fosse ambicioso por cargos, nem deles necessitava para a sua sobrevivência, pois seu património financeiro era invejável a qualquer mortal do país.
Todavia, acima de tudo, era um idealista e entregava-se à sua tarefa, lutando pelo interesse dos menos favorecidos, como se fora um deles.
Transportava para o seu cargo, para as suas actividades, tentando esquecer, todas as frustrações em relação ao seu casamento, fazendo-o por não poder lutar em casa, nem querer levantar problemas que seriam insolúveis.
Lutava para defender os necessitados, com amor, com ardor, e muito já havia conseguido.
Era querido por aqueles que acompanhavam as actividades dos participantes do governo, pois sabiam, possuíam nele, alguém lutando por seus direitos e ideais.
Charles apenas cumprira uma obrigação social.
Não gostava muito dessas reuniões, mas o dever de acompanhar a filha, a satisfação mesma de estar com ela, tomaram-no feliz por vê-la feliz.
—Filha, vejo que a festa lhe fez muito bem.
O brilho de seus olhos é outro, e algo imperceptível aos que não a conhecem bem, está mexendo com o seu coração que, para mim, não tem segredos.
Nada há que eu não perceba nele...
-— Tem razão papai, gostei muito da festa.
Para você, ela limitou-se apenas a uma pessoa, não é verdade?
— Ah, papai, isto não é verdade!
Fiquei em sua companhia, e só não dançamos mais porque você mesmo não quis!
Andei por entre todas as pessoas, procurei sempre lhes transmitir, embora sem poder lhes falar, pelo menos um sorriso de agradecimento por estarem partilhando connosco da reunião.
—Sim, sim, eu entendo....
Contudo, não respondeu a minha pergunta.
—Eu sei o que quer dizer.
Fala do meu amigo Pardo.
Foi bom tê-lo conhecido e ter podido conversar com ele durante todo o tempo.
Do contrário, eu ficaria à margem de tudo.
Não quero dizer que a sua companhia não me seja agradável, sabe o quanto eu gosto de você, mas é bom conversar com outra pessoa, sobretudo jovem como eu!
Paulo foi muito respeitoso.
Sabia que ele pediu licença a Cláudio para voltar outras vezes?
—Eu os vi conversando e imaginei que estivesse apenas se despedindo...
Na realidade estava, mas aproveitou para essa solicitação.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 24, 2018 8:15 pm

—Então é esse o motivo do seu contentamento?
—Nada se pode esconder de você, não é mesmo?
Não se preocupe, quando ele vier, se realmente voltar, você estará comigo, conversaremos todos juntos.
Será apenas uma visita de carácter social.
— Tudo começa em forma de actividade social, mas depois, só Deus o sabe...
— Você leva as coisas muito longe.
O futuro a Deus pertence.
Não se esqueça de que não moramos aqui.
Mais dia, menos dia, regressaremos à nossa casa, da qual já estou saudosa, e a nossa vida, lá, continuará como antes; não se preocupe.
—Assim espero, filha, que, ao retomarmos, seja a mesma, sem levar mágoas nem tristezas no coração.
Não se deixe apegar a pessoas que não lhe podem dar o que merece!
—Você está se preocupando,, à toa.
Existe apenas a vontade de concretizar, em bases mais sólidas, uma amizade, nada mais.
Bem, vamos dormir.
Eu estou muito cansada, e quero, amanhã, levantar bem tarde.
Charles procurou conversar com a filha, amigavelmente, mas não deixou de sentir uma grande preocupação.
Não queria vê-la sofrer e sabia, se o jovem continuasse a visitá-la, um afecto poderia surgir.
Marie Anne era muito sensível e seu coração não resistiria.
Tinham o lar distante, as suas raízes, a lembrança da mãe presente em todos os objectos da casa...
Como seria? Preocupou-se muito, conquanto soubesse, ainda eram preocupações infundadas.
Não que não desejasse que Marie Anne tivesse a sua própria vida, o seu afecto, o seu companheiro.
Ela merecia ser feliz, ele já estava envelhecendo e era apenas o pai, entretanto, sem querer pensar, pensava muito.
Não conseguiu dormir aquele resto de noite, e bem cedo, embora ainda todos permanecessem no leito, ele já estava em pé, passeando pelo jardim da casa.
Sem perceber, chegou ao velho caramanchão.
Queria reflectir em todas essas preocupações, normais na vida de um pai, mas não quando tão antecipadas aos acontecimentos.
Seus pensamentos eram tantos, e o local, propício a que eles crescessem cada vez mais, dominando-lhe a mente.
Tentou reagir, erguendo a cabeça e pedindo o amparo de Deus para que não deixasse o ciúme tomar conta de seu coração.
Não era normal, não podia ser normal.
Levantou-se e saiu.
Voltou a caminhar por entre o jardim, rogando a Deus a sua ajuda.
Ele esperava, um dia, enfrentar essa situação, mas não imaginava que a sua reacção interior fosse tão forte, que o ciúme da filha querida fosse tomar conta tão intensamente de todo o seu ser.
Teria que reagir e por isso orava, com palavras que lhe vinham do fundo do coração:
Meu querido Deus, vós que tendes sempre me amparado em momentos mais difíceis, vós que trouxestes para a alegria dos meus anos já idos, a ternura da filha querida, vós que, embora tendo levado convosco a minha querida Juliete, deixastes-me a dedicação tão sublime desse anjo que colocastes em meu lar, não me abandoneis neste momento, não deixeis meu coração ser tomado por ciúme tão intenso!
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