LUZ ESPÍRITA
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REDENÇÃO - Victor Hugo / Zilda Gama

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Mensagem  Ave sem Ninho 22/4/2018, 14:49

Ouvia, no sussurro das águas quando movimentadas, impropérios, soluços, gemidos de criaturas supliciadas, a ecoarem-me no intimo em clangores tonitruantes...
Compreendi, pois, o murmúrio das torrentes, o rolar dos seixos em suas mais subtis vibrações...
O que, todavia, mais me tem torturado, superando todos os tormentos passados — é estar segregado de todo o convívio humano, chumbado nestas paragens de treva, lodo, labaredas, gelo...
Quantos milénios tenho assim vivido, senhora?
Um lustro — dissestes? Impossível!
Penso que o mundo de outrora já se desmoronou, já desapareceu no vórtice do incomensurável; que somente existe o caos e sou o único sobrevivente encerrado muna das masmorras do Universo, esquecido de Deus e de toda a humanidade sideral, chicoteado de remorsos e maldições!
Compreendeis, enfim, quanto tenho sido supliciado...
E dizeis haver clemência nas sentenças do Ente supremo?!
Ilusão! Eu é que não mais posso iludir-me.
— Não blasfemes, desventurado Ariel! considera que as torturas a ti aplicadas representam salutar correctivo às tuas crueldades!
Recebes, de ricochete, as desventuras que semeaste na Terra.
Resgatas, penosamente, dívidas tremendas...
A redenção é a conquista da felicidade, por meio do sofrimento.
Teu sofrer não será perpétuo.
Eis como se patenteia a clemência de Deus.
Pune para corrigir; não fere por toda a eternidade, mas somente enquanto o delinquente cumpre a pena divina; finda esta, todos os padecimentos se transmudam em plácidas venturas:
o bombix-mori do infortúnio se metamorfoseia na falena fulgurante da felicidade.
E o Pai abre os braços compassivos para receber, exultante, abctemum, o filho pródigo contrito, que todos somos!
Esgotadas as tuas provas remissoras, aguardam-te consolações perenes, mas é mister que sorvas, até à derradeira gota, a taça das agonias extremas e redentoras!
Esquecerás, então, as fumas do Universo para lhe conheceres os paraísos; a luz em todos os cambiantes; as harmonias em toda a sua plenitude; e teus tormentos serão lembrados com a gratidão do enfermo que, após as torturas de uma intervenção cirúrgica, recobra plenamente a almejada saúde...
— Se aqui viésseis sempre, senhora, eu seria ditoso... mesmo que se me agravassem os suplícios!
Não desejo outra ventura que a de vos ouvir...
— Aqui tenho vindo inúmeras vezes, mas não pressentias minha aproximação porque tua alma tem estado imersa em treva absoluta!
Orava por ti e retirava-me, compadecida dos teus padecimentos...
— Ai! senhora, com sois piedosa e boa! Sempre reconheci a vossa superioridade
moral e foi ela que me fascinou, ao medir a distância que nos separa ainda por muitos séculos.
Eu, a hulha negra, alma caliginosa, sempre amei o diamante luminoso da vossa virtude!
E, no entanto, adorando-vos, quanto vos tenho feito sofrer!
Mas, como me pagastes as angústias que vos infligi com o lenitivo da compaixão! Bendita sejais, pois, e dizei-me:
como proceder para minorar meus martírios?
— Humilhando-te, arrependendo-te dos teus crimes hediondos, resignando-te à expiação que te foi imposta pelo Tribunal divino.
Prepara-te, enfim, para recomeçar uma romagem planetária cheia de escolhos e dores, mas fértil em triunfos psíquicos, se a realizares de acordo com a vontade suprema.
— Obrigado pelo bálsamo com que refrigerais minhalma ulcerada, vulcanizada e comburente de sofrimentos indescritíveis!
Vossas palavras — mesmo quando acusam — são orvalhos divinos que me suavizam os ardores. ..
— Ouve, Ariel, o que vou revelar-te:
dentro em breve iniciarás outra peregrinação penosa e farta de amarguras, mas, quando a consumares, bendirás todos os reveses...
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Mensagem  Ave sem Ninho 22/4/2018, 14:49

— Tirai-me desta região tumular, em que o frio requeima como labaredas e suportarei todos os martírios sem um queixume!
Quero, como outrora, vislumbrar um raio de Sol ou de luar, uma nesga de céu azul, uma ave, uma flor!
— Infeliz! o que imploras não te pode ser concedido:
lavraste contra ti mesmo a sentença atroz, pois a infligiste a teus míseros vassalos, que atulhavam masmorras húmidas, asfixiantes, tenebrosas!
Já te não lembras dos seus gemidos num infecto calabouço, entanguidos de frio e debalde clamando compaixão?
Não foste tu, quem, com a própria mão extinguiste a luz da vida física, arrojando-te ao báratro de uma voragem?
— Sim, mas, que havia de fazer da minha inaudita desventura, quando a vida se me deparava intolerável?
Impossível suportar o tormento moral em que estava mergulhado!...
Ouvi-me, agora, eu vos imploro.
Quero extravasar o cálice das torturas...
Não vades sem deixar que esgote o fel que amargurou toda a minha finda encarnação, confessando-vos tudo o que sofri por vossa causa...
Jazia, senhora, gravada em minhalma, a escopro ardente, a vossa imagem incomparável, de muitos séculos.
Ela foi avivada desde que vos encontrei na principesca habitação, pelo farol das reminiscências indeléveis...
Reconheci-vos imediatamente e, desde então, começou o suplício inenarrável!
Para conquistar vossa afeição é que tenho cometido incalculáveis desatinos...
Quando soberano de Persépolis, mandei matar vosso noivo.
— Sou, este mesmo René que aqui está a meu lado e ao qual feriste pela segunda vez, mortalmente, em Arras...
— Que dizeis, senhora?
É bem verdade que Marcos Donati e René Dusmenil são a mesma criatura?
E atendeste ao meu apelo, Marcos?
Não vos repugna a minha presença?
Não? Quanto és magnânimo!
Deixa rojar-me a teus pés...
Perdão! Perdão, Marcos!
Eu não te matei nunca, porque só matei a própria ventura, a paz da minha consciência!
Quão mais afortunado és, com o seres vitima e não algoz!
— Tranquiliza-te, Hamed — disse-lhe René comovido e apiedado —, estão extintos os pesares do passado, que foram o Jordão bendito que me purificou as máculas da alma.
Já te perdoei o que me fizeste padecer.
Não a mim, mas à Majestade Suprema, deves implorar perdão...
Prometo auxiliar-te para que ascendas ao Céu...
Hamed, soluçante, tacteava as sombras, buscando aproximar-se de René e sentindo avolumar-se-lhe no intimo um oceano de reminiscências dolorosas.
René, compadecido, estendeu-lhe a destra radiosa.
Tanto fulgor se desprendia da sua fronte estelar, que Ariel conseguiu ver-lhe as nobres feições, aureoladas de um claror divino...
— Oh! formoso quão generoso René Dusmenil!
Quero digas novamente que me perdoaste o haver-te imolado de saudades, privando-te das carícias de tua santa mãezinha!
Oh! a recordação desse crime hediondo é qual víbora de fogo que me punge incessantemente a alma!
— Não revolvas mais o passado com o estilete das recordações, Ariel!
— Como esquecê-lo, Marcos, se não há para mim mais que o mundo subjectivo?
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Mensagem  Ave sem Ninho 22/4/2018, 14:49

Se o Presente e o Porvir estão murados de espessas trevas?
Que sou eu no Universo, Marcos, senão o mais miserável de todos os seres, um abismo de culpas, um oceano de remorsos, um infinito de dores sem esperança de lenitivo?
Cerca-me esta penumbra que já se infiltrou no meu espirito até ao mais profundo recesso...
Quero fugir a este martírio e não posso.
Quero correr velozmente, libertar-me destas paragens execradas e vejo-me chumbado ao solo; quero rugir trovejante para que me escutem e a voz se me esvai na garganta, como liquido em frasco estilhaçado; os sentidos estão amortecidos, restando-me apenas a sensibilidade de tudo o que me toca e faz vibrar, estremecer as fibras da alma e a audição apuradíssima, para só ouvir os gritos e soluços de minhas vítimas, como que impregnadas no meu próprio eu.
Inexprimível, também, o meu tacto, que se subtiliza dia a dia para sentir, ora o gelo polar que me cerca, ora as chamas comburentes que me devoram... o quê?
A alma, o amianto divino, deixando-a sempre intacta e mais viva, mais apurada para o sofrimento...
— Mas, tudo isso que te suplicia existe no teu intimo unicamente, Ariel!
É a sequência, a repercussão do passado culposo.
— Então não há mérito no meu padecer, Marcos?
Não há atenuantes para meus crimes?
— Não, enquanto não te humilhares, não reconheceres a integridade da Lei suprema, não elevares o pensamento às regiões siderais, em busca do Juiz universal...
— Mas, como dominar os impulsos rebeldes do meu espirito — jazida inesgotável de sentimentos indómitos e violentos, que defluem dela sem que a vontade os possa paralisar?
— Implora do Alto a força psíquica para os domar, e o conseguirás, Ariel!
— Ouve-me, René, para que compreendas o meu já milenário martírio...
A loucura apoderou-se de mim desde que deparei com essa criatura que ai está a teu lado!
Como dormitava em minha mente a reminiscência indelével das suas feições angélicas!
Como recordei sua voz, seus gestos, sua altivez!
Como desejei, novamente, um trono para depor a seus pés, súbditos e reinos, como outrora!
Mas, ai de mim — ela era outra, intangível pela virtude!
Vi-a venturosa, junto do seu bem-amado, o meu benfeitor!
Muitas vezes, segui-os louco de ciúme, rastejando qual ofídio mal machucado, pelas aleias do parque, quando os via enlaçados, ditosos, fruindo as delicias da tarde ou os encantos do luar...
Queria aproximar-me, já de braço alçado para os apunhalar de um só golpe, mas uma força sobre-humana me tolhia e obrigava a retroceder, vergando-me o busto, como vergam os furacões as palmeiras do Saará!
Ah! como se me lacerava o coração ao ver a ventura límpida e profunda daquele vosso bendito lar!
Quanto desejava ser amado na Terra, por uma esposa e um entezinho belo, cheio de candura, para beijar-lhes as frontes imaculadas!
Esta ventura inebriante de possuir um lar próprio, um pedacinho do céu no mundo vil, foi-me interdita neste orbe, do qual só conheço as amarguras e os dissabores...
Sentia-me execrado e repelido onde quer que fosse ...
— Era a Justiça divina que se exercia com austeridade, para punir quem manchava lares honestos, repudiava esposas e filhos espúrios, não cria no amor senão como gozo carnal — disse Heloísa com tristeza!
— Tudo, porém, suportaria com heroísmo, se não vos houvesse reconhecido, senhora!
Vossa presença, a harmonia e ventura do vosso menagem, fascinavam-me e vós, senhora, fazendo recrudescer meu sofrimento, manifestáveis asco por mim, evitáveis-me como se eu fora um crocodilo...
— Eram as reminiscências do que já me tinhas feito sofrer e o pressentimento do que ainda me reservavas, o passado e o porvir que levantavam entre nós impenetrável muralha de ódio.
— Poderíeis ter evitado aquela grande desventura.» e a minha perdição, se me houvésseis atendido naquela tarde inolvidável em que ameacei tirar-vos a vida, num momento de loucura e desespero supremos!
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Mensagem  Ave sem Ninho 22/4/2018, 14:49

Fostes impiedosa!
Porque recusastes o que vos implorei com humildade?
Um ósculo, apenas, e teríeis feito a minha felicidade sem sacrifício da vossa.
Ter-me-ia suicidado em seguida, deixando-vos livre...
Repelindo-me ofensivamente, causastes a minha e a vossa ruína! Vivi
insaciado, desprezado, desditoso...
Um ósculo, para mim, era a ventura suprema!
Se vos tivésseis compadecido, eu teria morrido abençoando-vos, ao passo que o vosso desprezo fez de mim um celerado...
— Não me arrependo de haver assim procedido.
Ariel! — disse Heloísa com austeridade.
No Código da honra e da Virtude não há artigos nem parágrafos para serem transgredidos!
São preceitos de bronze, não há camartelo que os destrua.
A mulher honesta não faz concessões aos que a investem, sem cometer um erro grave.
Quando ama e preza o companheiro ao qual jurou lealdade absoluta diante de um altar, em nome de Deus, não deve vacilar entre a infelicidade e o sacrifício.
Entre a desonra e o martírio, preferi o martírio.
Achei conforto em meio às minhas agonias, em minha consciência impoluta, alva como as camélias.
Passei pela prova da lealdade, como afirmaram meus Protectores siderais, e, de joelhos, já agradeci ao Pai magnânimo o me haver concedido ensejo de reabilitar-me das perfídias do passado, vencendo a aspérrima expiação que me foi imposta pela Alçada divina...
— Como pressinto que ainda me desprezais, senhora! — bradou Ariel exasperado.
— Não, pobre Hamed! Acalma-te.
Isso é apenas a recordação do sofrimento passado, que irrompe como um Etna, da alma, incendiando-a e fazendo-a trepidar em seus mais íntimos refolhos!
És um desditoso, bem sei, e causam-me penas os teus padecimentos.
Perdoa-me o que te hei feito sofrer.
Esqueçamos o passado tenebroso.
Para mim não és mais um adversário, mas um enfermo psíquico, digno da minha piedade, e que desejo ver curado e liberto das paixões nefastas, para ser librado às mansões de paz.
Porque relembrar-me o que já está consumado?
Falemos do porvir que te aguarda...
Ouve, Ariel: longa e dolorosa vai ser a tua próxima encarnação.
O vácuo, o desalento, o desespero que guardas em teu intimo, só se dissiparão no desempenho de árdua prova e na conquista de acrisoladas virtudes.
Esquece o passado hediondo.
É mister que te humilhes, que sejas compassivo com os desditosos, que adores a Deus mais que às suas criaturas...
Se executares até ao fim a severa mas profícua sentença que te foi imposta pelo Tribunal divino, adquirirás méritos que te darão jus a muitas venturas, em vão sonhadas até agora.
Acompanhar-te-emos daqui por diante, onde quer que estejas.
Perceberás inúmeras vezes o nosso benéfico influxo.
Teus dedicados Mentores espirituais há muito porfiam em te arrancar do báratro das ignominias.
Seremos, eu e René, desvelados auxiliares desses compassivos Protectores.
Quando, pelas lágrimas, pela contrição, pela prática do Bem e do Dever resgatares todos os teus delitos, eu te concederei o ósculo que me imploraste com a alma empeçonhada de paixão e sentimentos ultrizes, porque fá-lo-ei então ao convertido da Virtude, ao irmão redimido, purificado pelo martírio e apto a ingressar nos mundos radiosos que desconheces...
— Que ouço, senhora?
Acaso não enlouqueci por excesso de inauditos padecimentos?
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Mensagem  Ave sem Ninho 23/4/2018, 14:52

Vós, a imácula, nobre, formosa rainha do céu, prometerdes ao precito, ao misérrimo farrapo humano, ao maldito, ao encarcerado das trevas eternas um ósculo de luz?
Deliro certamente!
— Jesus, o pulcro Nazareno, permutou o asqueroso beijo da perfídia do Iscariote, quando ele se redimiu, por um ósculo sublime de amor e perdão.
Quero imitar o excelso Redentor.
Saberei cumprir o prometido.
Quero comprar a tua redenção com esse beijo pelo qual anseias há muitos séculos...
E Deus permitirá que o consiga!
Ainda ficarás envolto em sombras por algum tempo, até retomares um invólucro carnal!
— Horror! horror!
Como hei-de ver-vos, então?
— Com a visão psíquica.
Pressentir-me-ás e ouvirás minha voz nos momentos mais angustiosos.
— Resigno-me agora com o destino, por mais acerbo que Beja!
Nunca mais serei cego.
Sois, para mim, o sol, a luz, a alvorada!
Cego serei, unicamente — mesmo que Parabram me conceda aos olhos o lume das estrelas — se me abandonardes, senhora!
— Insânia! Não digas blasfémias.
O Sol que luctífica a alma é o Astro-Rei do Universo — DEUS!
Ama-o a ele, unicamente, com esse sentimento profundo e vibrante.
Humilha-te, Ariel. Prosterna-te.
Quero ensinar-te a orar, a seres grato ao Criador, a alcandorar o espirito &s regiões serenas da Criação.
Vamos, repete as minhas palavras:
"Senhor, perdoai-me!
Permiti conquiste a luz espiritual — lâmpada divina que ora me falta — a fim de que seja honesto, justo, humilde, submisso aos vossos desígnios!
“Pai magnânimo, compadecei-vos de quem deseja ser vosso servo, vosso filho, herdeiro das maravilhas do Universo, adquiridas com as moedas luminosas do Bem, das Lágrimas, do Dever e da Virtude!
Dai-me resistência contra o Mal, resignação nos dias de ásperos reveses, ânimo sereno, carácter integro!”
Ariel docilmente repetiu-lhe as palavras com emoção e veemência, genuflexo, mãos enclavinhadas, fronte erguida para o Céu, que lhe pareceu fendido por um sulco de rútilas esmeraldas.
— Ainda voltarei algumas vezes a esta lúgubre região — falou-lhe Heloísa compadecida — antes que retornes à gleba terrestre, encerrado no estojo carnal!
— Mais cruel vai-me parecer este desterro depois que tive a ventura de ouvir as vossas piedosas exortações.
— Este isolamento em que te encontras é imprescindível ao teu burilamento espiritual.
Deves aproveitá-lo utilmente, elaborando planos futuros de altruísmo e remissão.
Abençoa estes magnos instantes de expiação salutar, firmando em teu íntimo o voto veemente de jamais transgredires as Leis excelsas, e de venerar e amar, sobre tudo e todos, o Ente Supremo, alheando-te das paixões mundanas!
Adeus! Não te olvidaremos em nossas preces...
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Mensagem  Ave sem Ninho 23/4/2018, 14:53

CAPITULO V
Por momentos, no íntimo de Dusmenil reinou um silêncio polar.
Dir-se-ia que os ruídos da Criação, perceptíveis à audição quintessenciada dos desmaterializados, cessaram inopinadamente.
Calou-se a voz melíflua da Entidade que com ele confabulava e lhe repetiu, em surdina, todo o diálogo de Heloísa, René e Ariel.
Um inefável bem-estar o empolgou suavemente.
Depois, repentino clarão fê-lo descerrar as pálpebras imateriais, que, até então, lhe pareciam unidas, coladas por um poder invencível e desconhecido.
Tenuíssimo fulgor, de matizes róseo-esmeraldinos, incidiu sobre ele, abrindo-se no Firmamento um viaduto inclinado até ao local em que se achava estirado.
Quebrou-se o silêncio, abruptamente, e ele percebeu vibrações de flautas, violinos, harpas e clarins argentinos, que desciam em Niagaras sonoros, do Espaço à Terra, consorciadas a vozes que deveriam ser emitidas por mágicas toutinegras, cujas gargantas tivessem a contextura do veludo ou da pelúcia divinos.
Salmodiaram um cântico em homenagem ao Soberano universal.
Nunca ouvira tão maravilhoso recital.
Ergueu-se ágil, erecto, fitando a amplidão sidérea, inebriado das estranhas e mágicas modulações dos instrumentos e dos artistas etéreos.
Sentia-se asserenado, leve.
Cessara o mundo subjectivo.
Despertado para a vida psíquica, percebeu apuradas, quintessenciada, todas as faculdades anímicas.
— Onde estou? — interrogou perscrutando todos os detalhes do local em que se achava.
Que região será esta? Em qual dos continentes me encontro?
Eu, que percorri quase todos, desconheço este.
Onde encontrarei Heloísa e René?
Estava na crista de gigantesca cordilheira nimbada de nuvens nevirosadas, semelhando os ninhos de todos os beija-flores terrenos, desfeitos para a construção de um único, de dimensões infinitas, por abrigar todos os pássaros do Empíreo.
Alvorecia.
Julgou que os artistas celestes, com os pinceis molhados em ouro e rubis liquefeitos, desenhassem na orla do horizonte paisagens ideais, painéis rafaélicos para um certame de numes.
Havia, à sua frente, um revérbero azul, como que projectado por farol de safira, embasado nalguma estrela coruscante, e anunciando a aproximação de luminosa galera.
Fascinado, ajoelhou-se por instantes, juntou as vibrações do próprio pensamento às dos rapsodos do Infinito.
Um súbito contacto de mão diáfana, no ombro esquerdo, fê-lo voltar-se e revelou, a seu lado, imaterial entidade de formosura e majestade impressionantes.
Trajava à romana, do tempo dos Césares, com um peplo de neve irradiando reflexos prismáticos.
— Gastão Dusmenil — disse-lhe ela, osculando-lhe a fronte maternalmente —, eis-te de novo desencarnado!...
Eu te saúdo, irmão querido, e felicito-te, pois adquiriste méritos valiosos em tua jornada terrena.
Conquistaste a mais bela e preciosa das promoções — a de entidade sideral.
À Terra só voltarás em missões elevadas.
Já recordaste, no ádito da alma, tudo que fizeste e padeceste nos séculos transactos e desnecessário é reiterar o que não ignoras.
Enquanto estiveste entorpecido, percorreste mentalmente toda a gama dos teus avatares, desde o início.
És um Espirito adestrado nos prélios da Dor, do Dever, da Honra.
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Mensagem  Ave sem Ninho 23/4/2018, 14:53

A prova real, tirada por Deus, o Matemático incomparável, compulsando o mérito e demérito de cada ser, ao consumar cada etapa planetária, acusa o resgate de todos os teus débitos!
Foste eficazmente punido para que pudesses remir o delito da traição, do egoísmo, da insensibilidade ao sofrimento alheio, mas, graças ao influxo do Alto e da nobre Heloísa de Argemont, amortizaste o derradeiro ceitil de tuas dividas tenebrosas...
Já compreendeste o que ocorreu no castelo em que vivias ultimamente e por diversas vezes cogitaste do desditoso infante que acolheste, repudiado por pais desnaturados — Núbio, que é a reencarnação de Ariel...
Já o tinhas suspeitado e soubeste ser cristão tratando-o como filho, acarinhando-o, protegendo-o...
Perdoaste-lhe, assim, o crime execrável que praticou contra a casta Heloísa e que te destruiu toda a ventura terrena, sempre efémera.
Aliados que fostes, outrora, em sucessivas existências, para consecução de muitas iniquidades, feridos de ricochete os vossos corações pelas dores que semeastes, pelas venturas que esfacelastes, pudestes galgar posição de realce, conhecestes a prosperidade e o conforto material, porém, tu, mais cedo que ele, entraste na senda recta do Dever; mas, ai de ti! — tinhas a alma vinculada à dele em liames forjados pelo passado tenebroso...
O receio de seres traído, que te torturava em solteiro; o juízo pessimista que fazias da lealdade feminina, fundavam-se na intuição da sentença que contra ti fora exarada pelo Supremo Tribunal divino, para resgate dos perjúrios e falsidades que cometeste, infelicitando lares honestos, noutros tempos.
Há seres evoluídos que pressentem o futuro — tal como o marujo encanecido nas lides oceânicas prevê a aproximação das procelas...
Todos os crimes, perpetrados ou imaginados, ficam nos arcanos do Espirito,
pirogravados indelevelmente, e, muitas vezes, a criatura tem conhecimento prévio do que lhe vai suceder em novo avatar, da sentença dolorosa que lhe foi imposta para ressarcir suas faltas, e, por isso, pressente o porvir em horas de calma, ou de exteriorização psíquica.
Eis porque os seres já aprimorados espiritualmente profetizam acontecimentos futuros, desde crianças, e, geralmente, são melancólicos, não entram no plano material despreocupados, mas entristecidos e antevendo a execução da pena que vieram cumprir, a fim de se redimirem.
Os últimos embates das existências planetárias são sempre os mais dolorosos, a fim de que seja aferida a perfeição da alma já prestes a desferir o voo definitivo.
Foste injusto com tua esposa Heloísa, mas reparaste essa falta penosamente; sofreste com denodo as suas consequências, padeceste talvez mais do que o emparedado de um presídio insular, isolado, faminto, a recordar incessantemente todas as venturas desvanecidas além, num recanto de encantado continente, pressagiando um futuro de sombras, desilusões, dores inconcebíveis.
Influenciado por teus Mentores e por Heloísa — Espirito fúlgido baixado à Terra apenas para resgatar o último ceitil e tendo já nítidos na mente todos os deveres da mulher cristã —, terminaste a tua trajectória terrena praticando o bem, enxugando lágrimas, vencendo o condenável egoísmo em que vivias.
Abriste o coração e a bolsa aos desvalidos, aliando-te, como disseste, ao Espirito luminoso de Vicente de Paulo, um dos Nautas divinos, embaixador da Paz e da Bondade, enviado à Terra pela Majestade Suprema...
Não estão consumados, porém, os teus labores terrenos — hás-de ainda, por tempo indeterminado, velar pelo teu velho comparsa de outrora, insuflando-lhe no coração esperança, generosidade, resignação; amparando-o quando esmorecido nos lances acerbos, levantando-o de alguma queda, de algum desvio do dever, porque os resgates impostos ao caluniador e suicida são sempre tremendos...
Recordando as eras transcorridas, tu te comoves até às lágrimas, meu irmão; e mais ainda, ao te lembrares do mutilado Núbio...
Bem compreendo a emoção da tua alma já despertada para os mais subtis e nobres actos afectivos.
Cuidas que o Pai clementíssimo não sofre ao ter de exarar uma severa sentença contra um filho querido?
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Mensagem  Ave sem Ninho 23/4/2018, 14:53

O cirurgião também se compadece do operando, roas, não é forçado a torturá-lo para restituir-lhe a saúde?
Deus é o cirurgião das almas cancerosas, para saneá-las e aformoseá-las.
Há, em todos os seres, o vestígio da sua ciência e da sua bondade.
Cada ser é um mundo em miniatura, microscópico na aparência, mas ciclópico no seu porvir grandioso, onde se elaboram sentimentos, ideias abomináveis e sublimes; todo ser humano é um herdeiro do Monarca mirífico, pois, para quem fez Ele os portentos do Cosmos?
Para deleite de sua visão radiosa?
Para satisfazer indómita vaidade?
Não. Para recompensar os heróis, os vencedores dos prélios planetários!
Filhos dilectos de tão adorável Progenitor, devemos cumprir sem tergiversações os seus indiscutíveis desígnios.
Por qualquer desvio, qualquer infracção às suas Leis Integras e harmoniosas, é mister que, pelo acicate da dor, sejam pungidos os degenerados, os transviados da Virtude, como filhos pródigos de um Pai tão recto e amoroso...
Quando, neste umbroso planeta, ninguém mais delinquir, não mais haverá sofrimentos nem prantos...
Mas, ai! quando raiará essa era de radiosidades e venturas?
No transcurso dos milénios...
A Humanidade é fraca e vacilante, propensa ao Mal, à fatuidade, à incursão dos defeitos morais, e não será sem tremenda refrega que ficará imunizada do contágio das iniquidades...
Estás, agora, em período de repouso.
Deixemos, por alguns dias, esta masmorra de trevas passageiras.
Aqui viremos, porém, inúmeras vezes, no desempenho de missões sacrossantas.
Não cessaremos de laborar, aqui ou alhures.
0 trabalho é o factor do acendramento psíquico.
A inércia, como um pântano, é estéril e prejudicial à saúde — é a estagnação do progresso.
A beatitude não existe no Universo, senão nas almas ignaras, que se acocoram à sombra da ociosidade improdutiva.
Os seres úteis não são os que fogem às lutas da existência, os frívolos, os foliões, os ociosos — mas os que mourejam de sol a sol, os que prestam concurso ao semelhante construindo abrigos, monumentos, obras de Arte, disseminando a instrução, aprimorando os espíritos, aliviando as dores, sulcando os ares e os mares, agindo, enfim, para que a condição do próximo seja, dia a dia, aquinhoada de imensos benefícios!
Só assim ascenderemos às venturosas estâncias onde se acham os evoluídos, os impolutos, os imunizados do erro e do Mal!
Em muitas dessas estâncias encontrarás entre familiares, já intensamente amados em diversos avatares, e que te aguardam ansiosos.
São os eternos satélites de tua alma, ou constelações espirituais em volta das quais gravitas há muitos séculos...
Leio teus pensamentos — que se tornam radiosos na fronte dos vencedores das provas terrenas, qual farol através de cristalino vitral — interrogando-me sobre os seres que idolatras — Heloísa e Rene...
Hás-de revê-los a breve trecho.
Ouvirás, deles próprios, o que percebeste com a audição psíquica, enquanto estavas esmorecido.
Estiveram a teu lado até despertares.
Prolonga-se o momento do vosso encontro, porque, esperando mais longamente uma ventura, ela se torna mais vivida e integral.
Rene e Heloísa são duas almas em marcha ascencional para o Factor de todos os portentos e já possuem nobreza seráfica.
Felicito-te, Gastão Dusmenil, pela execução austera de todos os teus deveres individuais e colectivos, no último quartel da tua recém-finda encarnação, sem o que não serias digno de te associares àqueles seres pulcros.
Venceste galhardamente as provas ríspidas, como os antigos Templários a elas submetidos, a fim de serem julgados dignos de pertencer a uma nobre associação que tinha por escopo a moral, o auxilio mútuo, o bem secreto.
Antes, porém, que te afastes do orbe onde permaneceste tantos séculos, façamos subir nossos pensamentos às paragens etéreas, unindo, as nossas, às vibrações harmoniosas dos menestréis ou bardos siderais...
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REDENÇÃO - Victor Hugo / Zilda Gama - Página 6 Empty Re: REDENÇÃO - Victor Hugo / Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho 23/4/2018, 14:53

CAPITULO VI
Com as formosas e diáfanas mãos entrelaçadas, pensamentos uníssonos, aqueles dois entes enobrecidos nos campeonatos da Dor e do Dever, nivelados pelos mais puros sentimentos, aliaram às sonoridades luminosas do Infinito as suas súplicas e agradecimentos ao Criador do Universo, assim formando uma réstea de luz, do Espaço à Terra sombrosa.
Subitamente, ao influxo da volição, Dusmenil e seu fúlgido companheiro tornaram-se alígeros, desprenderam- -se da cordilheira como flocos de bruma levados pela aragem, sentindo que lhes faltava a força centrípeta e começaram a cindir verticalmente o espaço.
Quando Gastão percebeu atingida a região interplanetária, experimentou uma sensação desconhecida, inebriante, dulcíssima, inefável!
Rápido envolveu-se na luminosidade que vinculava o orbe terráqueo à amplidão sidérea e logo o penetrou indiscritível sonoridade — a mesma que ouvira do alto serro onde estivera pouco antes.
— É a prece — disse-lhe o formoso companheiro — que poe em comunicação as almas de todo o Universo com o seu Criador e Pai, formando um viaduto radioso que transpõe todos os abismos e extensões cósmicas.
— Parece-me — retrucou Dusmenil atemorizado — que, se me faltar vosso apoio, perderei o equilíbrio e serei precipitado num báratro sem fundo!
— Todos assim pensam, irmão querido, quando pela primeira vez, ao termo das tribulações planetárias, ascendem aos paramos etéreos!
Prisioneira da carne por muitos séculos, a alma perde a faculdade de flutuar na amplidão sideral.
As faltas praticadas são lastros de bronze que a prendem ao solo terreno; depois de intensas refregas, da prática do Bem e da Honra, ela se torna imponderável, subtil, alígera, nada mais a detém no planeta, que lhe foge aos pés, mas fica-lhe no intimo vivida, prolongada, a impressão dos grilhões que a chumbaram à Terra!
A volição é potencial divino desconhecido dos perversos e delinquentes, mas não desampara os redimidos, que só a perderiam se concebessem projectos mal sãos, de resto impossíveis, pois que já estão imunizados do Mal.
Contempla, irmão dilecto, sem pavor, por alguns momentos o painel sublime da Criação!
Por instantes, o surto vertiginoso que os impelia no espaço foi detido e, então, qual colibri humano, Dusmenil pôde contemplar a Terra, semi dividida em trevas e radiosidades, como que bailando duplamente ao redor do Sol.
Deste, desprendia-se um jacto dourado — como vaga que se destacasse de um oceano aéro-luminoso — aclarando de um só lado diversas esferas em movimento, em coreografia fantástica de libélulas ápteras, ou mariposas maravilhosas, atraídas por lâmpadas de ouro, ao ritmo de invisível filarmónica.
Uma delas, Saturno, parecendo-lhe envolta em grinaldas de luz — fronte real cingida por diversas coroas de topázios cintilantes!
A Terra pareceu-lhe um dos mais sombrios planetas, mas emocionou-o ao vê-la tão longe, diminuída pela distância imensurável.
Só então compreendeu quanto a amava, estuando-lhe nalma um turbilhão de reminiscências...
Ao contemplar todos os planetas do sistema solar em movimento, supôs estivesse assistindo, dependurado no éter, a um gracioso bailado de elegantes dançarinos, alguns com mantilhas de crepe, outros de escumilha dourada, todos rodopiando airosamente — Salomés divinas — ao redor de um combustor maravilhoso, ou farol celeste, que lhes projectava áureo fulgor, tornando-os mais ou menos radiosos.
Deslumbravam-no as cintilações de Febo em pleno espaço e murmurou atónito:
— Ei-lo em toda plenitude do seu fulgor, como jamais o sonhara!
Apoio é a generosidade indescritível, só comparável à do Soberano universal — distribui óbolos de luz a oito mendigos em trevas, sem receber outra recompensa, a não ser a do preito de admiração que as criaturas lhe consagram...
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Mensagem  Ave sem Ninho 23/4/2018, 14:54

— Sim — respondeu-lhe o Instrutor — o Sol, arquimilionário do Infinito, é consócio da Majestade Suprema, e o Senhor do Erário, das áreas divinas — empresta aos vassalos moedas de luz a 0 %!
Além dos planetas classificados pelos astrónomos terrestres — que têm por limite Neptuno, visto serem deficientes os telescópios planetários — observou Gastão — há outros formando o apolineo cortejo.
Os satélites, ao influxo dos astros centrais, pareciam falenas coruscantes, volteando corolas semi-luminosas, que se destacavam das trevas que as enlutavam do lado oposto do Sol, como se fosse m telas móveis, delineadas por um Corrégio sideral.
— Repara nos portentos da Criação com crescente entusiasmo! — continuou o Mentor de Dusmenil.
Nenhum rumor dissonante, quer provindo da Terra, quer de suas companheiras perpétuas, porque o Epiterno, o Mecânico inimitável, produz os mais formidáveis motores silenciosos para a Humanidade planetária, mas, todavia, plenos de sonoridade para os seres etéreos — ao passo que o homem se esforça em vão para o conseguir, só engendrando maquinismos ruidosos, ensurdecedores às vezes!
Ei-los como trabalham serenamente sob o domínio de Deus, sem se abalroarem; não necessitam de repouso nem reparos; sem serem lubrificados durante milénios, como se cada qual fosse dotado de uma alma imortal como a nossa, de inteligência e raciocínio, desprendendo, não ruídos, mas sonoridades melodiosas, que só os Espíritos purificados podem apreciar!
Escuta, irmão dilecto, essa sinfonia que julgas provir das alturas consteladas, de um recital celeste — cada estrela, cada planeta, cada nebulosa, são cordas de uma harpa maravilhosa, tangidas pelo David Supremo, ou como teclas de um órgão portentoso, sobre as quais perpassassem mãos intangíveis — mas que devem ser de neblina radiosa a desprenderem modulações mágicas, dulcíssimas, sublimadas...
Mas, que digo?
Dedos deíficos que as fazem vibrar? Não!
É apenas o pensamento do Altíssimo, disseminado pelo Universo, que executa incessantemente as mais estupendas e magistrais partituras, pois o seu pensamento luz, aroma, melodia!...
Por instantes, equilibrando-se na amplidão, tolheram o surto maravilhoso, contemplando o assombroso espectáculo sideral, ouvindo as melodias que, a princípio em surdina, depois com o vigor de um crescendo sensacional, evolam-se dos mundos — pomos de rubis, esmeraldas, topázios, que giram graciosamente pelo Infinito.
Indefinível emoção apoderou-se de Dusmenil, que disse ao preclaro Guia:
— Mestre, que são as nossas dores, as nossas amarguras de confronto com as venturas que o Criador reserva em seus Edens luminosos?
— Um nada, irmão querido; no entanto, nos momentos de borrascas morais, elas nos parecem intoleráveis e superiores às nossas energias psíquicas...
A ignorância do futuro que nos aguarda post-mortem é o que prejudica a Humanidade terrena.
Os ensinos erróneos que recebeu, tiram-lhe a esperança de conquistar a felicidade, que, entretanto, é realidade encantadora para todos os seres, indistintamente...
Todos, por meio de provas rectas, do labor, da virtude, do bem, podem atingir a ventura que na Terra debalde procuram e lhes foge como a própria sombra, quando se aceleram os passos...
— Limitados que são os conhecimentos terrenos, Mestre!
Como ficariam assombrados os astrónomos se vissem o espectáculo grandioso que ora se nos depara, formosas que parecem flores — semi-abertos crisântemos de luz suspensos por cordéis invisíveis, bailando numa soirée celeste — e quantos, mais belos, há pelo Espaço, de todos os cambiantes, de todas as nuanças ainda desconhecidas na Terra!
— São as mansões dos Espíritos mais evolvidos, dos que já se aproximaram do Altíssimo.
A cor é. para os seres astrais, de suma importância, pois representa a diversidade de categoria de cada mundo, ou de cada ser.
As promoções ou acessos por grande mérito são feitos com solenidades
indescritíveis na dialéctica humana.
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Mensagem  Ave sem Ninho 23/4/2018, 14:54

— Dizei-me, caro Mestre, do que há muito me preocupa a mente:
É Jesus o mais elevado Embaixador divino baixado à Terra?
Acha-se Ele seleccionado num desses orbes fúlgidos que observamos com admiração crescente ?
— Certamente, irmão querido; apenas te iludiste num ponto:
— Jesus não está seleccionado do imenso rebanho que o clementíssimo Pai lhe confiou — seu pensamento fúlgido é que movimenta esse rebanho e o dirige, no planeta obscuro que ora deixaste.
Há, porém, inúmeras Entidades da mesma hierarquia de Jesus.
Cada qual é responsável pelo domínio que lhe foi outorgado e esforça-se pelo cinzelamento das almas sob sua guarda e protecção.
— Como pois, eu, mísero terrícola, posso, sem a sua permissão, ascender a outro mundo, ao qual me levais?
Não deixo, doravante, de pertencer à alçada do Nazareno?
— Não. Vais para um mundo-academia, dos muitos existentes no Universo.
És um Espírito promovido a outro planeta mais adiantado, mas ainda estás sob a égide do Cristo, pois não só a Terra lhe foi entregue, mas outros orbes com Ele solidários, sob a sua jurisdição.
As almas, depois de purificadas, não têm mais pátria determinada — são camândulas ou pérolas celestes que ficam sob o influxo do Eterno e tornam-se auxiliares eficazes de todas as Entidades da hierarquia de Jesus...
— Sabeis em qual dessas mansões se encontra o imaculado Pegureiro dos peregrinos terrenos?
— Sim. Vês aquela constelação surpreendente, que se destaca por sua rutilância à nossa direita, com aparente contextura de rubis incandescentes?
É lá que se congregam as Entidades seráficas, da categoria de Jesus.
De suas almas radiosas é que partem essas irradiações incomparáveis; seus pensamentos lúcidos devastam os orbes mais longínquos, como se presentes neles fossem.
— Poderei afagar a esperança de poder vê-los um dia?
— Porque não?
O aprimoramento psíquico faz que todos os seres humanos culminem a Perfeição, e, possuindo-a, fiquem aptos a se aproximarem do Soberano Universal e dos seus mais excelsos arautos...
Temos por futuro a Eternidade e nada há que não possamos alcançar no curso dos milénios.
Apenas os rebeldes, os iníquos, os precitos ficam chumbados à Terra. Indefinidamente?
— Não; até que a contrição lhes reponte nos arcanos da consciência...
Depois, sob o látego da Dor, com os prélios do Dever, eles se depuram, tornam-se leves quais aeróstatos, perdem a força centrípeta e ascendem no Infinito!
Dusmenil contemplou detidamente, maravilhado, o solar, observando a rotação e translação de todas as esferas e seus satélites, como equilibrados por malabarista encantado...
Novamente se comoveu fitando a Terra, lembrando o que ali padecera, e mais do desditoso Núbio, que, num abismo de sombras, carpia o seu passamento a regiões tão formosas...
Bruscamente, porém, estremeceu e sentiu invadi-lo estranha sensação de felicidade:
— a esperança de rever os entes adorados, pelos quais derramara tantas lágrimas.
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Mensagem  Ave sem Ninho 23/4/2018, 14:54

CAPITULO VII
— Onde encontrar René e Heloísa? — inquiriu Dusmenil, que, até então, parecia absorvido na contemplação das maravilhas cósmicas para ele desconhecidas.
De que me serviria tudo o que me deslumbra, sem a certeza ou a esperança de os rever, para transmitir-lhes toda a saudade que me borbulha nalma?
Como é falho e egoístico o Paraíso católico, inculcando a ventura e a beatitude eternas do pecador redimido, mas separado, às vezes perpetuamente, dos seres amados, e encerrado per omnia secula nas Geenas?
Considera, agora, a magnanimidade paternal do Criador, que não pune eternamente, mas abre os braços ao pecador contrito, aos filhos pródigos que abandonaram o tecto hospitaleiro e, quando regressam ao lar de amor que Ele edifica em todos os corações, fá-los partícipes de suas estâncias luminosas, disseminadas na amplidão sidérea! O Bem vence o Mal, e este e não aquele é perecível.
Não há punição ilimitada, há, sim, ventura eterna!
Se não fora a coadjuvação inestimável dos mensageiros divinos (vós e todos os amados Mentores da Humanidade), como poderia alguém descobrir o paradeiro dos seres caros, neste oceano infinito de éter e de mundos?
— Pela telepatia, irmão querido. Assim como pensas incessantemente nos entes satélites da tua alma, também eles o fazem e o pensamento é o imã que aproxima os que se amam com fervor, mesmo através de quatriliões de milhas...
Uma inefável harmonia, um elo invisível cinge os Espíritos-amantes, regenerados pela dor e pelo sacrifício.
Uma perfeita solidariedade reina em todo o Universo, unindo todos os seres que pertenceram à mesma família — ao mesmo grupo de membros afins...
Detectives divinos policiam e perscrutam toda a Criação e nenhum ente, e nenhum pensamento lhes é desconhecido...
Abeiravam-se agora de um astro de fascinante beleza, como que lavorado em turquesa luminosa, volteando no Espaço, nimbado de uma fotosfera azul, de suavidade veludosa.
Destacavam-se nele os perfis dourados das serranias, recortes de minaretes, que se salientavam na luminosidade que o circundava, como se fosse m filigranas de ouro e turmalinas mágicas..
Uma sinfonia, executada por maestros celestes, evolava-se do ambiente fosforescente, acompanhada em surdina por verdadeiros menestréis encantados, em volatas dulcíssimas de rouxinóis divinizados.
— Eis uma das estâncias de repouso destinadas aos vencedores das refregas planetárias, dos convertidos ao Bem, dos libertos do Mal! — murmurou o Guia espiritual de Dusmenil.
Penetremos nesse ambiente onde nos aguardam com júbilo.
— Como sabem da nossa vinda, amado Mestre?
— Pois já não to disse, irmão querido?
Por meio da radiofonia universal do pensamento.
Nos mundos inferiores as ideias e as noticias, para serem ventiladas, são gravadas no papel, constituem livros, jornais, revistas; nos superiores são transmitidas através das maiores distâncias.
Formam como que um vinculo radioso, onde se vêem fotografias lúcidas — ligando incessantemente os seres evoluídos, e, onde quer que estejam, esse liame não se rompe e os poe em contacto uns com os outros: basta um pensamento emitido por eles, solicitando a presença de algum, para que os seus irmãos de igual categoria, dispersos pelo Cosmos, logo os compreendam e atendam ao fraternal apelo.
Baixaram docemente sobre a formosa região, indescritível na linguagem humana.
O solo se constituía de extensas planícies e serranias imponentes, como em algumas paragens do orbe terráqueo, mas a sua contextura não se lhes podia comparar:
dir-se-ia de turraalinas azuis, impregnadas de fagulhas douradas!
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Mensagem  Ave sem Ninho 23/4/2018, 14:54

Surgiam solares encantadores, separados apenas por pequenos intervalos, aformoseados por ondulações azuis e jalde, como tauxeados de safiras e topázios, de cintilações incessantes.
Essas graciosas vivendas, esguias e fulgurantes, são arquitectadas com preciosos minérios, dos quais há na Terra apenas migalhas, e, lá, se encontram em blocos descomunais, onde se talham as mansões das Entidades triunfantes nas campanhas do Bem!
Separavam-nas muralhas — que não servem para as desligar, mas para as embelezar — em que predominavam as linhas curvas, parecendo que do solo se erguiam vagalhões azuis, franjados de áurea espuma, como que petrificados em filigranas maravilhosas.
Inefável bem-estar empolgou o Espirito de Dusmenil, emocionado pela esperança de, em poucos instantes, rever os entes pelos quais tanto sofrera.
De relance recordou todas as cenas de ventura e desdita de que se compunham suas existências indelével- mente vinculadas entre si...
Revê-los, poder transmitir-lhes seus pensamentos, traduzir a ternura e a saudade que lhe iam nalma, seria a ventura suprema, a recompensa a todas as dores, agonias e tormentos pregressos.
Detiveram-se no solo em que deslizavam multidões de criaturas esbeltas, de vestes multicores, semelhantes às dos antigos augustais romanos, de plumas de gaze luminosa, escumilhas de suavíssimos tons, com fragmentos de arco-íris transformados em túnicas vaporosas.
Todos formavam alas, braços erguidos empunhando flores etéreas, que
pareciam tecidas em névoas, com todos os matizes dos crepúsculos e arrebóis tropicais, deliciosa- mente perfumadas, a embalsamar o ambiente.
Movimentavam-se airosamente, com graciosos ade- manes, ao som de formosa melodia arrancada de instrumentos esguios, liras como asas de falenas de ouro, lembrando cotovias que sonhassem idilios venturosos.
Todas as moradas resplandeciam em faiscações policrómicas, como que moldadas em gemas rútilas, por arquitectos divinos.
Um palácio de forma circular, encimado por zimbório de translúcidos topázios, destacava-se dos outros edifícios por sua primorosa escultura.
— É aqui — disse o Cireneu de Gastão — que se congregam as mais puras e formosas Entidades, a fim de festejarem a recepção dos recém-libertados das encarnações planetárias, antes de lhes serem designadas excelsas missões espirituais.
Depois, abraçando-o fraternalmente, disse:
— Vamos tomar parte no emocionante festival que, hoje, aqui celebram em homenagem ao exilado que chega da Terra sombria, depois de longa e vitoriosa cruzada.
— Não me julgo digno de assistir a ele — respondeu Gastão comovido, como se estivesse prestes a desmaiar, fitando as vestes imáculas dos convivas.
Esbelto mancebo (como aliás o são todos os habitantes siderais, pois a infância e a senectude são fases transitórias do género humano, inexistentes nas mansões superiores, onde predomina a juventude eterna, aspiração de todos os que se acham nos mundos de trevas e não se resignam a perdê-la em poucos anos!) dirige-se ao recém-chegado e, osculando-o na fronte, falou:
— Irmão bem-amado, eu te saúdo como vitorioso do Mal!
— Não mereço vossas felicitações, formoso mancebo, pois arrependo-me de não haver mais bem cumprido meus deveres terrenos!
— Venceste nobremente as campanhas morais, algumas intensamente dolorosas; bem mereces o acolhimento fraterno que os teus amigos te preparam!
— Vexo-me de comparecer a tão selecta reunião com estes trajes incolores, que me parecem rotos e sujos, em confronto com os vossos...
— Podes ter outros, desde que o queiras e não estejam em desacordo com a tua hierarquia espiritual.
Concentra-te e idealiza a indumentária que desejas, pois o pensamento dos redimidos é força realizadora, desconhecida na Terra, porque aos grilhetas da dor não é permitido possui-la, para não ser utilizada na vingança e no mal, e prontamente a obterás.
Dusmenil obedeceu.
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Mensagem  Ave sem Ninho 23/4/2018, 14:54

Sua túnica singela e desbotada se desfez qual bruma, e outra, regiamente embelecida ao influxo da vontade, substituiu-a, parecendo talhada em crepúsculo de inverno, com tonalidades de ametistas.
Todas aquelas Entidades, airosas e jovens, de fisionomias graves e nobres, entraram a fazer evoluções encantadoras, e suas roupagens multicores
semelhavam flores que bailassem e formassem guirlandas maravilhosas e frases simbólicas, fragmentos de preces ao Criador...
Pela mão do desvelado Mentor, Dusmenil penetrou no majestoso delubro onde se recebiam os conversos ao Bem.
Festoes de flores luminosas ornavam colunas de cristal, de todas as nuanças, que circulavam vastíssimo salão.
Uma tribuna lavorada em jaspe rendilhado, parecendo de espuma petrificada, elevava-se ao centro do anfiteatro, onde se congregavam para os soleníssimos festivais.
Um belo orador já se achava na tribuna e a todos os assistentes sobrepujava, em formosura e radiosidade.
Dir-se-ia que, da sua fronte e tórax, jorrava uma luminosidade de luar opalino, a confundir-se com a do recinto florido e suave.
Quando ele, alongando o olhar e erguendo os braços em prece, evocou a bênção divina, rompeu-se um velário de escumilha dourada e patenteou-se uma orquestra de inúmeros executantes, de vestes níveas, preludiando em surdina uma protofonia tão emocionante e inefável, que Dusmenil inebriado e sensibilizado caiu de joelhos soluçante, recordando naqueles momentos de magnitude um recanto da Terra, um templo de Arras, onde ouvira o gorjeio do Rouxinol Mascarado.
Alçou-o nos braços o mancebo que o recebera e convidou-o a orar com os circunstantes.
De todas as frontes em profunda concentração, desprendiam-se eflúvios argentinos, que formavam sonoridades melodiosas, às quais se conjugavam os instrumentos musicais que resplandeciam na ribalta.
Vocalizações de rouxinóis divinos entoavam um salmo comovente, que vibrou estranhamente na alma sensibilíssima de Dusmenil.
Quando ressoaram, docemente, os últimos acordes da prece surpreendente, osculou-lhe a fronte o lindo jovem que o saudara, seguido de uma entidade feminina, que o imitou.
Ladearam-no ambos, com os braços elevados à sua fronte, empunhando uma grinalda de lilases com reflexos dourados.
Gastão, que parecia prestes a desfalecer de emoção, percebeu lucidamente naquelas duas entidades maravilhosas de nobreza e formosura, por uma sensação de ternura infinita, René e Heloísa espiritualizados, belos, quintessenciados....
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Mensagem  Ave sem Ninho 24/4/2018, 13:59

CAPITULO VIII
Para Dusmenil soara o instante das venturas e compensações, sempre inatingidas no orbe terráqueo...
Todas as suas amarguras, todos os desalentos, desesperos, prantos, sonhos desfeitos, esvaeceram-se como por magia e, num relance, transformaram-se em suaves prazeres, em ternura imensa e amor infinito por aqueles dois seres dignos, acrisolados.
Considerou mesquinhas todas as ríspidas provas por que passara, em confronto
com a inefável felicidade que então o inebriava.
Arrependeu-se de não as ter suportado com maior denodo e resignação.
Abençoou-as, sentindo que lágrimas se lhe desprendiam da alma, transubstanciadas em gotas de luz.
Enlaçou-os de um só impulso e, formando os três gracioso grupo, foram atingidos por uma catadupa de flores delicadíssimas, que se desfaziam no ambiente, como bruma cambiante, mal lhes roçavam as frontes puras, reacendendo aromas sutilíssimos.
Depois dos aplausos e ósculos fraternos, todos salmodiaram um hino de inexprimível suavidade, consagrado ao Absoluto.
— Ainda não mereço tão grande ventura, meus queridos! — murmurava as tão, comovidíssimo. — Tenho a impressão de haver ainda, no meu Espirito, fáculas indeléveis.
— Todos o sentem, prezado amigo — disse-lhe Heloísa comovida —, porque a alma recém-liberta da matéria, depois das ásperas refregas para a conquista da redenção, conserva a reminiscência dos crimes perpetrados durantes séculos, que deixam vestígios nos seus mais profundos refolhos, até que, em loção de preces veementes, de todo se dissipem...
Mas, olvidemos os episódios dolorosos do passado, para só nos lembrarmos do Incriado, que nos reuniu doravante, por todo o sempre.
Unamos às vozes celestes as vibrações de nosso Espírito redimido...
Sejamos reconhecidos a Quem nos concede infinitas graças e estende a mão augusta, de Majestade Suprema, para salvar os náufragos da dor, os que emergem no infinito oceano das dores inomináveis, nos prélios terrenos!
Os três, ainda de mãos dadas, achavam-se em frente à tribuna do parlamentário divino, cuja hierarquia espiritual sobrepujava a dos assistentes pelo esplendor das vestes como que incendidas de um plenilúnio interior.
Uma campânula de sons argentinos vibrou no ambiente, e imperou o silêncio no recinto maravilhoso.
Com voz grave, mais parecendo modulação de instrumento melodioso, o fulgurante tribuno iniciou a sua oração, que, traduzida em linguagem planetária, tornar-se-ia inexpressiva e sem vigor, à falta de ressonância, qual se fosse uma partitura de Rossini executada em instrumento sem fibras sonoras...
— “Irmãos dilectos: ouve-nos o Altíssimo neste momento...
Anda sua alma radiosa esparsa neste ambiente, metamorfoseada em aroma suave, em maviosidades excelsas, que nos penetram docemente o intimo, causando- -nos uma sensação de paz e ventura inefáveis, jamais percebidas enquanto nossos Espíritos se rojavam pelos tremedais do vicio, que nos afastava d’Ele a distâncias imensuráveis!
A felicidade a que todos os seres no caos de angústias e provas acerbas aspiram, não é um mito — é plena realidade nas paragens siderais!
Dela não gozam os que ainda estão avergados ao peso das tribulações inelutáveis e remissoras; não a desfrutam os que não cumprem austeramente os seus deveres, transgredindo-os, maculando a alma com a vasa dos sentimentos mal-sãos...
Fruem-na somente os libertos do Mal, como águias reais que estivessem enjauladas durante séculos, mas, ao dealbar de mirífico arrebol, livres do cárcere sombrio, se librassem em plena amplidão!
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REDENÇÃO - Victor Hugo / Zilda Gama - Página 6 Empty Re: REDENÇÃO - Victor Hugo / Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho 24/4/2018, 13:59

Sentem-na os que cumpriram, com lágrimas, sacrifícios, desvelos, os mais penosos encargos; os que se crucificaram no madeiro das penas mais pungentes, se lucificaram nas campanhas do Bem e da Virtude, tornaram-se paladinos celestes, defensores das Leis divinas, arautos das verdades transcendentes, soldados fieis do Marechal Supremo...
Sabeis, todos vós, do objectivo da nossa magna reunião:
associarmo-nos a uma das mais comovedoras solenidades do Universo — a da redenção espiritual de um irmão que ainda se debatia nas sombras planetárias, companheiro de outrora, comparsa das nossas quedas, adversário, algumas vezes, amigo desvelado, outras.
Consumou ele um dos mais acérrimos prélios de suas encarnações terrenas, aureolado de imortal triunfo.
Para ele cessaram as pugnas terrenas, começou a Eternidade sem limites, sem o entrave dos avatares, como um rosicler perpétuo.
Deus na sua omnisciência absoluta houve por bem criar os seres humanos com todas as faculdades anímicas, que eu denomino negativas e positivas — estas simbolizando o Bem, aquelas o Mal.
Podia fazê-los puros, inteligentes, infalíveis; mas, se assim fosse , como conquistariam o mérito para serem galardoados?
Que general promoveria um guerreiro inactivo, que nunca houvesse pelejado nem praticado um acto de bravura?
Como adquirir conhecimentos antagónicos ao Mal, senão realizando feitos de benemerência, em luta com as iniquidades?
Como se enrijam as potências morais senão na forja da Adversidade?
Como se reafirmariam as personalidades, se todos vivessem em beatitude, sem ásperos labores, desfrutando uma ventura gratuita, sem méritos apreciáveis?
Todos seriam iguais, uniformes, como gotas de orvalho na mesma flor, como pérolas do mesmo colar divino.
Como se apreciaria a luz, sem o conhecimento da caligem?
Como se deleitariam eles com o repouso, sem as fadigas do labor?
Como estimariam a ventura se não houvesse a desdita?
Como desejariam a união, se não houvesse a pungitiva saudade, as agruras da separação?
Ele, a Inteligência Superna, de tudo cogitou:
é mister a peleja com os vícios, as paixões funestas; com o rigor do Inverno, a canícula do Verão senegalesco; com a dor, a perversidade, para que a têmpera da alma, como a do aço submetido a temperaturas extremas, se torne tenaz e adquira, penosamente, os tesouros da Virtude, apurando os sentimentos, engenhando agasalhos, fabricando pão, saneando cidades, aniquilando instintos dissolutos, se nobilite, torne-se inquebrantável, se quintessencie, se angelize, para merecer a dita de desfrutar a paz da consciência, a bonança espiritual nas mansões sidéreas, junto dos entes idolatrados que, no transcurso dos evos, se tornam dela inseparáveis; se aproxime enfim, do Soberano universal — a suprema conquista!
Como o conseguem, porém?
Em uma só existência, uma só campanha?
Seria possível, num segundo de_ provas, conquistar uma eternidade de venturas? Ilusão...
O ser humano é criado com a imortalidade — herança divina do Elaborador de todos os portentos do Cosmos...
Podia Ele fazê-lo puro e impecável, mas, assim não procedeu porque, desse modo, nunca seria valorizado o esforço; não haveria selecção entre os que cumprem, ou não, austeramente, os seus encargos planetários; nunca seria galardoado o mérito.
É mister haja luta, abnegação, sacrifício, aquisição penosa da Virtude, para que as almas se adestrem, se aligeirem, se imunizem contra o Mal, se eterizem e façam jus às missões redentoras!
Nos momentos de refregas tenazes, nas batalhas da adversidade, todos maldizem o infortúnio, mas, quando lhe reconhecem o valor, não podem deixar de tributar-lhe um culto sincero.
Nós, os comparsas dos tiranos, os perversos, os conspurcados, os injustos, os traidores, os perjuros dos milénios passados, somos os Aasveros dos paludes, que ascendemos às regiões luminosas do Dever.
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Mensagem  Ave sem Ninho 24/4/2018, 13:59

Libertos do Mal, não ficamos inactivos, mergulhados no Letes da beatitude; continuamos a luta, laborando sempre, tornando-nos úteis aos desventurados, sustendo-os pelas vestes rotas à beira dos sorvedouros do crime, do pessimismo, do ateísmo!
Sublime e árdua, a missão dos convertidos do Bem:
dia a dia aumentam as responsabilidades, à proporção que eles progridem...
Não desanimam, porém. Recebem reforços de todos os quadrantes do Universo.
Novos paladinos reúnem-se aos veteranos da Virtude.
Doravante contamos em nosso núcleo mais um combatente nas fileiras do exército do Bem e da Fraternidade.
Ei-lo, ainda tímido: no espírito, os gilvazes da dor, do látego do sofrimento; mas fortalecido para as campanhas mais sublimadas.
E há-de reconhecer, entre os que nos rodeiam, amigos, parentes, adversários de outrora, que já alcançaram o mesmo grau de desenvolvimento psíquico.
Suas existências planetárias, refertas de lutas e dissabores profícuos, acabam de consumar-se vitoriosamente, pois o recém-vindo tornou-se abnegado apóstolo da Caridade, émulo de Vicente de Paulo, que deixou um sulco estelar na história da Humanidade.
Como divergem das da antiguidade as fraternas homenagens que lhe são tributadas, pois ele habitou palácios régios, onde se realizavam esplendorosos
festins orgíacos, porque sua alma se achava empedernida, tisnada pelas paixões inferiores.
Agora, depois de vertidos Urais de prantos, de amargura, saneou-se o Espírito enegrecido pelas iniquidades, encontra-se adestrado para os prélios gloriosos do Dever e da Moral.
Tê-lo-emos connosco por algum tempo, pois doravante está isento da prova acerba da separação dos entes que mais tem amado — talvez de todas a mais pungente e aflitiva!
Irmão que vens de encerrar o ciclo terreno, não és um estranho para os que aqui se congregam, antes um desvelado companheiro que, na Terra, nos auxiliou a cumprir as determinações do Arbitro Supremo.
Os que além, nas arenas planetárias se empenham nas campanhas luminosas da Caridade, são aliados dos irmãos siderais.
Os benfeitores da Humanidade, os que amparam enfermos, desvalidos, órfãos, ignorantes; os que enxugam lágrimas e iluminam corações, culminam nas provas mais dolorosas, concluem o seu tirocínio de dores, de conquistas penosas.
A caridade máxima, porém, não deve consistir em saciar a fome e a sede aos que a têm, mas no exercer o bem com piedade, secretamente, arrancando almas aos bordeis, aos cárceres, e encaminhando-as ao aprisco de Jesus.
O que fornece alimento ao pária, com dureza, não pratica um acto de altruísmo, pois anula-o com a humilhação infligida a um infortunado; quem estanca uma lágrima com piedade e faz germinar a esperança num coração desalentado e aflito, esse, sim, é um emissário do Altíssimo.
Este nosso irmão que aqui ingressa, que se incorpora às legiões divinas, soube ser digno apóstolo de Jesus, fechou o ciclo de suas reencarnações com a chave diamantina da abnegação e da compaixão pelos desventurados.
Não desdenhava os desditosos, os mutilados, acolhia-os sob o seu tecto, que se tornava em abrigo dos infelizes, sempre inspirado pela nobilíssima esposa, eterna companheira de suas mais nobres conquistas, e que soube incutir-lhe na alma dúctil os mais belos e generosos ideais e hoje exulta com o triunfo alcançado por ele e por seus dirigentes espirituais.
Para essas duas almas redimidas, está esgotada a taça das angústias terrenas; tornaram-se perpétuas aliadas para as missões sublimes do Bem e da Virtude.
Realiza-se hoje o seu consórcio espiritual — conúbio de dois entes acendrados nos prélios planetários, aliança perene abençoada pelo Supremo Sacerdote do Universo.
Na Terra — abismo de trevas e sentimentos mal- sãos — ainda se celebram esponsais que afrontam a harmonia das leis siderais: são conchavos de interesses em que imperam, às vezes, a concupiscência e a cobiça. Elegem consortes atendendo quase exclusivamente à plástica, aos haveres, à posição social, colimando o desfrute de gozos materiais.
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Mensagem  Ave sem Ninho 24/4/2018, 14:00

Raros os que buscam um consórcio de labores domésticos, um desvelado consorte que compartilhe dos seus júbilos e das suas desilusões, um ser amigo que lhe conforte o coração nos dias tormentosos, que sorva na mesma taça o absinto das provas aspérrimas.
Os enlaces em que não predominam afinidade de sentimentos puros, concórdia, honestidade, fidelidade mútua, desfazem-se ao primeiro embate das paixões, ao primeiro sopro da adversidade; esfacelam-se como elos de cristal arremessados à rocha.
Os lares, quase sempre, são conspurcados pelo perjúrio e pela perfídia, quando não têm, para os defender, a falange invicta da Lealdade, comandada pelo Amor e pela Virtude — generais supremos dos corações amantes e nobres, invulneráveis à traição!
Dois entes, unidos unicamente por interesses condenáveis, ligam apenas os corpos, mas suas almas se repelem como pólos isónomos.
As convenções sociais os acorrentam em ergástulos de bronze escaldante; os obrigam a representar a farsa ou a tragédia do amor conjugal, mas, no intimo de ambos, há uma caudal inextinguível de repulsa, hipocrisia, desgosto...
Separam-se, às vezes, odiando-se mutuamente.
Têm recíprocas recordações que os pungem como víboras Ígneas, e, muitas vezes, se trucidam na própria mente que as gerou, quando não o fazem ao próprio corpo com armas homicidas...
Seus lares, quase sempre, são derrocados e seus descendentes — se os há — desditosos que se lançam à senda do crime ou do prostíbulo.
Raro o consórcio em que os nubentes são levados por sentimentos afectivos, espiritualizados; consórcio esse que liga as almas eternamente, unidas ombro-a-ombro, levando ao Gólgota da Redenção o madeiro esmagador das provas cruciais.
Constituir um lar, um fragmento de céu na Terra, um farrapo de luz nas sombras planetárias, um Paraíso em miniatura, um pequenino reino para dois elementos soberanos — seja modesto ou confortável, impulsionados os nubentes por pensamentos dignificadores e onde sejam acolhidos com ternura os que pairam nos planos espirituais, atraídos pelo ímã dos corações amantes, por se tornarem filhos estremecidos — ovelhinhas que devem ser norteadas ao redil de Jesus, mediante ensinamentos profícuos, lapidando-lhes o diamante dos sentimentos, educando-os e tornando-os úteis à colectividade — é conceber e realizar um dos mais sublimes escopos humanos!
Conjugam-se, assim, Espíritos afins, que, no transcurso dos evos se vinculam indissoluvelmente, e realizam feitos inolvidáveis, de amor e devotamento.
Para esses não há maior tormento que o da separação e, para conquistar a sua união perpétua, suportam serenamente os mais tremendos martírios, porque para eles nada mais desolador que a ausência material dos entes idolatrados!
O lídimo amor é amálgama de duas almas, que, dir-se-ia, se permutam nos corpos que as encerram, ligam-se por laços luminosos que as poem em contacto onde quer que estejam, mesclam seus pensamentos, vibram pelo mesmo diapasão de ouro os sentimentos, percebem o pulsar uníssono de seus corações, mesmo distantes, vivem uma só vida, aspiram a uma só ventura — a sua indestrutível aliança!
São esses os Espíritos gémeos, que, no defluir da Eternidade, cumprem as mesmas missões dignificadoras, caminham, par-a-par, no carreiro das existências planetárias, sofrem os mesmos infortúnios, vertem os mesmos prantos, forjando assim, com o perpassar dos decénios, os elos sacrossantos das afeições que os angelizam e arrojam aos páramos estrelados, num só impulso, num surto veloz de condor divino, achando estreito o cárcere terreno para expandir o seu amor infinito!
Estes irmãos dilectos, que hoje celebram o seu eterno consórcio, almas recém-chegadas das regiões planetárias, andorinhas redivivas que deixaram as ríspidas invernias terrenas buscando a intérmina Primavera celeste, concluíram seu estágio doloroso, diplomaram-se no Areópago do sofrimento e da virtude, e agora se ligam perpétua- mente para, juntos, realizarem tarefas superiores.
Seu consórcio terreno não se realizou colimando abastança nem gozos efémeros, foram impelidos por mútua e plena afeição.
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Mensagem  Ave sem Ninho 24/4/2018, 14:00

Constituíram um lar tranquilo onde sempre imperaram os deveres conjugais.
Ai deles, porém, que tinham a resgatar tenebroso débito, contraído em época em que pareciam estar fora dos Códigos divinos, ocupando situação preponderante na sociedade, invejados, arquipotentes, temidos, execrados!...
Cegava-os, então, a cobiça das posições culminantes, e, para saciar desejos imoderados, não trepidaram no imolar um afecto ilibado, no destruir e esfacelar corações amantes.
Para que, porém, sondar o oceano cavo do passado com o escafandro das recordações acerbas?
Perdoem-me fazê-lo neste momento...
Já se redimiram estoicamente desses delitos tremendos e hoje, graças a saneadoras e eficazes explicações, estes três seres nobilíssimos se encontram imantados entre si pelos sentimentos mais profundos e imaculados, que são os outorgados aos herdeiros da divindade.
Heloísa, nossa intrépida irmã, passou por uma das mais árduas provas, dessas que só as vencem almas já enrijadas no bronze invulnerável da Virtude — a fidelidade.
Bela e versátil, no inicio de suas existências planetárias, tendo sido inúmeras vezes perjura e pérfida, soou para ela o momento de patentear ao Criador que não mais existia em seu intimo um átomo sequer de infidelidade...
Como venceu essa prova amaríssima?
Que o digam os que a ampararam nos dias de embates enlouquece- dores!
Coração terníssimo de mãe e de esposa impoluta, teve-o trespassado pelo dardo envenenado e ardente da calúnia e da desonra...
Viu, alma dilacerada, derruídos o lar honestíssimo e todos os seus anelos, mas não transgrediu nenhum dos deveres conjugais, sorveu até à derradeira gota a taça das amarguras...
Não menos digno o nosso desvelado irmão Marcos, ou René, que, com abnegação extrema, foi o hífen de ouro que agrilhoou eternamente os corações de dois esposos fieis, de duas almas redimidas pelo amor santificante...
O passado, pois, como um báratro infinito, tombou no sorvedouro da Eternidade.
As desconfianças, ressentimentos, odiosidades, fundiram-se na forja divina das provas remissoras, onde se refundem as almas polutas, e, agora, como ouro radioso acima dos detritos impuros dos sentimentos malsãos, sobreleva-se à mais veemente e imaculada das afeições — dessas que prendem, por todo o sempre, os seres enobrecidos!
Jamais seus Espíritos se desligarão, magnetizados pelo mais cândido e profundo amor.
Juntos ascenderão ao foco radiante que alumbra o Universo — Deus, nosso clementíssimo soberano, que não cria cavernas de tormentos eternos, nem cárceres perenes para delinquentes, mas coloca em cada destra o buril da Dor e do mérito individual, para cinzelar a própria alma, e cinge em cada espádua as asas açucenais da Virtude, para os erguer do caos das iniquidades aos páramos da Redenção e da Ventura!
É a esse Libertador de almas torvas, a esse Magistrado integro e magnânimo, a esse infinito manancial de consolação e de esperanças, a esse fecundo e inexaurível Jordão purificador de todos os delitos, que, neste momento, faremos chegar os nossos Hosanas, num preito de admiração, de júbilo, de reconhecimento!”
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Mensagem  Ave sem Ninho 24/4/2018, 14:00

CAPITULO IX
Por instantes o fúlgido elocutor emudeceu e, com um gesto majestoso, fez que osculassem a fronte de Dusmenil as duas graciosas entidades que o ladeavam, e, então, diante deles desfilaram centenas de airosos seres cora as destras alçadas, a lembrarem os romanos, saudando os heróis ou vencedores dos jogos florais — simbolizando a paz que desfrutariam por todo o sempre, o regozijo pela vitória definitiva de mais um irmão abnegado.
Comovido, extasiado de tamanha felicidade, tendo reconhecido nos que o beijaram os entes idolatrados pelos quais tanto sofrera e amargara torturas inauditas de saudade e compunção, Dusmenil pensou que sua vida ia solver-se e confundir-se neles, como incenso inebriante, que jamais se extinguiria.
Mudo de espanto e de alegria, sentiu naqueles ósculos inefáveis a recompensa e o conforto pelos quais, havia tanto, andara sôfrego e insaciado.
Retribuiu-lhes as demonstrações de afecto e, depois, cingindo-lhes as mãos, caiu genuflexo, elevando o pensamento a Deus.
René e Heloísa imitaram-no, enquanto os circunstantes, de pé, aureolados de belíssimas flores intangíveis, de todos os matizes, como se fossem trabalhadas em gemas rútilas, imateriais, prorromperam num hino indescritível, de melodia sem par, acompanhado pelo harpejo de instrumentos alongados, evocando asas em remígio pela amplidão cerúlea, de sonoridade blandiciosa e inimitável no planeta sublunar, inclassificável no vocabulário de seus filhos
— Irmãos bem-amados! — falou o esbelto e insigne parlamentário — parece que nos ouve o Factor de todos os portentos mundiais, o incomparável forjador de astros e de almas!
Unamo-nos a Ele em férvida rogativa...”
Um vocábulo mágico — o mais sublime do Universo — soou no ambiente aromatizado e fulgurante, aumentando a maviosidade da orquestra, electrizando todos os espíritos, estancando os pensamentos, as reminiscências, fundindo-os num só bloco maravilhoso; repetiram-no todos e houve como que um cascatear de luzes, uma estranha vibração pelo Infinito, pois não existe em todo o Cosmos vocábulo outro que se lhe compare, que lhe sobrepuje em majestade e poder intraduzíveis — DEUS!
Braços alçados, formando guirlandas de açucenas esguias — oraram os que se achavam conjugados naquele encantador Areópago sideral, como soem fazer as almas no crisol das ríspidas expiações.
Vocalizações cristalinas elevaram-se de todos aqueles seres purificados pelo cumprimento austero de todos os deveres planetários, um como rumorejo suave de polifonia entoada por menestréis alados.
Concluindo a homenagem ao recém-liberto das provações terrenas, um dos desvelados Guias ou palinuros espirituais de Dusmenil disse-lhe fraternalmente:
— Por algum tempo, amado irmão, deixo-te entregue ao teu livre arbítrio, em comunhão afectiva com os entes estremecidos que acabas de rever, e dos quais jamais te apartarás.
É natural que tenhas um oceano de confidências a permutar.
Aproveita o repouso necessário ao teu espirito contundido pelas pugnas terrenas, tendo sempre o farol da crença a norteá-lo para o Pólo magnético do Universo — DEUS!
Voltarei, dentro em breve, para, em conjunto com os que constituem as cadeias de tua alma, baixarmos às trevas de onde viemos e reencetar a missão nobilíssima de amparar e reanimar os ainda acorrentados às lúgubres geenas das provas remissoras...
Gastão, reconhecido ao desvelado amigo, abraçou-o afetuosamente e rogou ao Senhor recompensar-lhe generosamente o auxilio, nos dias de maior angústia, incutindo-lhe coragem e esperança no espirito amargurado e combalido.
Depois que o Mentor se afastou momentaneamente, a fim de prosseguir elevados e belos estudos psíquicos, instalou-se no solar ocupado por Heloísa, René e outros entes queridos, a ele vinculados em sucessivos avatares.
Era um maravilhoso solar, translúcido e rendilhado, onde conviviam na mais intima comunhão de sentimentos.
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Mensagem  Ave sem Ninho 24/4/2018, 14:00

Dusmenil e os dois airosos seres que o seguiam, em desafogo que os deliciava, transmitiram reciprocamente seus mais recônditos pensamentos, todas as reminiscências de suas encarnações vividas em comum.
Certa vez, Gastão disse ao formoso René que, então, já possuía outra designação nominal, intraduzível na dialéctica terrena:
— Meu querido, folgo em ver-te tão belo como um astro, sem o temor supliciante de perder-te, com a saúde perenemente integralizada, mas, porque não confessar a realidade? Desejaria ver-te — uma fracção de segundo que fosse — pequenino e frágil como outrora, quando, na minha adoração e no receio de perder-te para sempre, queria ocultar-te em meu coração, para morrer quando morresses!
Ah! como guardo ainda, no imo d’alma, tuas feições seráficas!
Como sofri, por não haver acreditado na cândida revelação que me fizeste naquela noite lúgubre.. em que partiste, deixando-me nos braços um cadaverzinho de beija-flor... que eu quisera sepultar no abismo do meu ser enlutado, em desespero inaudito!
Quisera, pela derradeira vez, fitar-te, como naqueles dias de infortúnio — em que eras o meu único tesouro na Terra!
Abraçando-te com infinito amor, como ansiava fazê-lo nas horas intérminas de amargura, desalento, saudade, desespero... sem o que, nossa ventura actual será incompleta!
Ouvindo-o, sensibilizado, René satisfez-lhe o amoroso desejo.
Brusca metamorfose operou-se no seu organismo fluídico e radioso; constringiu-o, qual se o encerrasse fuliginoso escrínio, todas as moléculas em coesão deram- -lhe o aparência do pequenino enfermo de Arras...
Dir-se-ia que se extinguira uma lâmpada, ou que se ofuscara um fanal em sudário de sombras...
Vendo-o assim, emocionado, estreitando ao seio o pequenino vulto de René, Dusmenil exclamou:
— Oh! como é mesquinha a eternidade para patentear a incomensurável afeição que tumultua em meu íntimo, por estes dois entes queridos!
Como sinto amortizados todos os meus crimes de passadas eras tenebrosas!
Como bendigo, nesta venturosa região, aquelas horas de suplício moral em que minhalma resgatou séculos de ignomínias!
Como é ilimitada a excelsitude do Soberano do Universo, que esquece todos os nossos mais hediondos crimes e forja os colchetes de ouro e luz que prendem por todo o sempre os entes remidos pela dor e pela virtude!
Não é o júbilo, mas o sofrimento, que Uga as almas perpetuamente!
Bendigamos, pois, aqueles dias que hoje nos parecem momentos de martírio indómito, pois as dores que suportámos foram o cautério cicatrizante das úlceras cancerosas de nossos espíritos saciados no Mal!
Pequena a eternidade, repito, para dentro dela expandir nosso mútuo afecto e tributarmos a gratidão que nos vai nalma.
Aquele que, após tormentos profícuos, nos concede inefáveis venturas e abençoa o indissolúvel conúbio dos redimidos, isentando-os de todas as provas dolorosas!
— Sim, meu amigo — disse-lhe a casta Heloísa —, os milénios são insuficientes para o fazermos, porém, como servos desvelados do mais clemente Senhor, não cessaremos de o exalçar em nossas almas, onde Ele difundiu a imortalidade — a herança divina!
— Lembremo-nos, doravante — replicou Dusmenil — da felicidade conquistada e esqueçamos o infinito de dores por que passámos naquele oceano de trevas — a Terra.
Deprequemos ao Sempiterno para que o bálsamo da consolação possa lenir as mágoas dos aflitos, dos que ainda resgatam com lágrimas e gemidos os delitos do presente e do passado.
— Olvidarmos o passado, querido? — tomou Heloísa — Não! evoquemo-lo constantemente:
a alma sem a recordação dos tempos transcorridos não pode fruir a ventura do presente, pois lhe faltaria o mérito, desde que esquecesse as dolorosas refregas da conquista, o valor do triunfo!
Bendigamos as reminiscências do que padecemos, das nossas lutas, das nossas quedas e da nossa escalada à perfeição!
Lembremo-nos eternamente do que sofremos, e estendamos mãos fraternas aos que, na Terra, ainda nos amam, padecem e se redimem!
— Sempre a mesma e sempre nobre! — murmurou Gastão beijando a fronte vestalina de Heloísa.
Tua virtude é tão grande que se transmite aos que de ti se acercam!
Foi ao contacto de duas almas açucenais que a minha se redimiu!
Quanto o Criador é magnânimo, que a todos os náufragos dos mares da iniquidade lhes dá uma radiosa e inquebrantável âncora de salvação!
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Mensagem  Ave sem Ninho 24/4/2018, 14:00

CAPÍTULO X
Algum tempo transcorreu no cronómetro da Eternidade.
Dusmenil e os que são como centelhas de sua alma — Heloísa e René — passaram-no em verdadeira transfusão de sentimentos, recordando os passados anseios, expandindo afectos terníssimos, compartilhados por outros entes queridos que os cercavam e também lhes confidenciavam as suas lutas remissoras.
Dias perpétuos, sem o menor vislumbre de sombra fluíram naquelas paragens venturosas — estâncias de paz e conforto de que necessitam os pungidos nas campanhas da Dor e do Dever.
Uma vez, apresentaram-se-lhe os seus dedicados arrais nas procelas planetárias.
— Vimos, irmãos — disse um deles depois de afectuoso saudar —. incumbir-vos de elevada e meritória missão...
Tendes que retomar a Arras, e, por alguns anos — como são contadas as translações terrenas — custodiar aquele que, em diversas encarnações, esteve ligado a vós, ou seja — Núbio, a fim de laborardes no definitivo polimento do seu Espírito...
Ides iniciar a tarefa penosa e sublime de mentor dos delinquentes, que já iniciastes ainda mesmo lá na Terra.
Ides acompanhá-lo na sua via crucia:
compadecei-vos de suas amarguras e desilusões; amparai-o em seus dias de angústia e desalento; coadjuvai seus desvelados Protectores, que muito têm padecido com as suas quedas e revoltas.
Após algumas horas de fraterno conclave, partiram os três aliados, espaço em fora, guiados pela bússola maravilhosa da volição, em demanda do negro e minúsculo planeta que lhes pareceu terem deixado de há muitos séculos.
Penosa sensação os empolgou ao embrenharem-se na atmosfera terrestre, julgando que se asfixiariam, privados da subtilidade do éter em que se banhavam.
— Quanto devemos às abnegadas Entidades que velam por nós durante séculos — murmurou Dusmenil.
Que sacrifício intraduzível o delas, já integradas nos mundos superiores, aqui permanecendo, às vezes séculos, no desempenho do seu inestimável papel de sentinela infatigável dos pecadores que não cumprem os deveres morais e psíquicos e perpetram graves delitos.
— São o devotamento e o sacrifício que dão realce às almas sazonadas dos convertidos ao Bem — murmurou Heloísa.
São elas quais mães extremosas, que amparam os adorados filhinhos, do berço ao túmulo, e não acham jamais demasiado quanto por eles padecem e por eles fazem!
É assim que o Omnipotente forja as afeições eternas, vincula os Espíritos em consumação de milénios!
Baixaram a uma região terrestre, em plena estação hibernal.
Reconheceram os arredores de Arras, as terras e o solar que lhes haviam pertencido e onde René expirara nos braços do consternado Dusmenil.
Intraduzível emoção, inexprimível na linguagem humana, empolgou-lhes a alma ao reverem aquelas paragens onde, ainda com os envoltórios materiais, lhes sorria a felicidade, onde se amaram e tanto sofreram!
Invisíveis para os encarnados, percorreram todo o castelo, comoveram-se com a presença dos fâmulos, dos amigos, dos móveis que suscitavam recordações amargas ou venturosas.
Atraídos pelo magnete de um pensamento que lhes vibrava no íntimo, como se fora uma campainha maravilhosa, transportaram-se à necrópole onde seus estojos carnais se pulverizaram.
Detiveram-se junto do próprio mausoléu e, de mãos entrelaçadas, oraram longamente agradecendo a Deus a sua infinita bondade e o triunfo alcançado nas dolorosíssimas provas, a sua aliança indestrutível.
Momentos depois, aproximou-se um vulto masculino envolto em longo e negro manto, da cabeça aos pés.
Descoberto apenas o rosto, onde fulguravam uns olhos merencórios de ónix luminoso, denotando penetração e inteligência invulgares.
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REDENÇÃO - Victor Hugo / Zilda Gama - Página 6 Empty Re: REDENÇÃO - Victor Hugo / Zilda Gama

Mensagem  Ave sem Ninho 24/4/2018, 14:00

Profundo e visível desalento dominava-o, absorvido por ideias depressivas.
Era o jovem Núbio.
A neve, qual fragmentos de níveas plumas, flutuava nos ares.
O firmamento estava sombrio, desdobrado em sendal de névoas cinzentas.
O pupilo de Dusmenil deteve-se junto da campa do seu benfeitor e murmurou
um queixume:
— Amado pai, somente vós me consagrastes um afecto inigualável...
Quanto me pesa a cruz da existência desde que fostes para o Além, deixando-me nalma um pego de tristeza e saudade!
Pressinto que, neste mundo, nenhuma afeição excederia a que vos tributo!
Olham-me todos com pavor, ou piedade...
Às vezes, perdoo à mãe que me gerou, e, num impulso de revolta contra o destino cruel, arrojou-me à lama da estrada!
Outras, odeio-a, pois só ela tinha o dever de amar-me, de confortar-me o coração despido de ilusões e venturas...
Só ela devia procurar mitigar-me as tribulações da vida, consagrando-me afecto invencível, porque Deus me atirou em seus braços, privando-me dos meus...
E no entanto, ela, desalmada, tudo me negou.
Aquele que preside nossos destinos, nunca lhe perdoará o crime nefando, contra um farrapo de gente, um indefeso monstrozinho.
Mas, que fiz eu, Senhor, para merecer de Vós, que sois a clemência superlativa — uma sorte tão cruel?
Porque concedeis a todos os seres dois protectores desvelados e a mim me tirastes o único que possuía?
Porque me arrebatastes o generoso amigo, o único que na Terra me abriu os braços de ternura, em vez de imolardes minha vida estéril pela sua, preciosíssima a tantos desventurados?
Quanto desejei beijar-lhe a mão dadivosa, como a da Santa Rainha Isabel!
Que digo eu? Beijar?
Oh! nunca o conseguiria, por mais que o desejasse...
Não me destes lábios para essa caricia inefável; não me destes mãos para as juntar em súplica, para enxugar as lágrimas que derivam da fonte perene do coração, premido pelo guante do desespero e da Saudade!
Ajoelhou-se na alcatifa de neve, erguendo para o céu os dois cotos de braços, que mal se percebiam sob o manto negro, como dois galhos decepados de um só golpe.
Aproximaram-se dele os amigos que o espreitavam e ouviam comovidos, e, formando com as mãos uma grinalda, imploraram pelo infortunado já prestes a desfalecer de consternação.
Um longo suspiro se lhe escapou do peito opresso, e, como saídas do túmulo repercutindo-lhe nalma, ouviu palavras de carinho e consolação:
“— Núbio querido, não te revoltes contra o juízo divino que te julgou e condenou às torturas morais por que passas!
Redimes, dessarte, um passado longuíssimo de torpezas e flagícios...
Tuas mãos, em pregressos avatares, tingiram-se do sangue de muitas vitimas, imoladas à sanha de paixões ignóbeis.
Eis porque foram decepadas, anuladas para a vindicta, para o suicídio, para as abominações!
Jamais assinarão sentenças iníquas, jamais empunharão o sabre ou o punhal para ferir teu coração, ou o de outrem!
Teus lábios foram mutilados porque se conspurcaram de blasfémias, calúnias, impropérios, obscenidades...
Vê como é íntegra a Témis suprema!
Humilha-te, pois, abroquela-te em coragem invicta, a ninguém incrimines, sofre cristãmente e obterás eterno triunfo sobre a hidra do Mal, que, há muito, te esmagava no charco das abjecções.
— Oh! amado protector!
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Mensagem  Ave sem Ninho 24/4/2018, 14:01

São vossas essas palavras que se me infiltram nalma!
Sim, reconheço-as pela ternura e compaixão que por mim sempre tivestes!
Só vós vos condoestes do mísero justiçado divino, do assinalado pelo ferrete constante dos executores do código celeste!
Não me abandoneis, pois, na via crucis que percorro só, sem lar, sem afeições, sem um amigo com quem possa desabafar meus suplícios morais!
Dizei-me: porque me vejo execrado por todos de quem me aproximo?
Nunca os ofendi, nunca fui cruel com eles...
— ... nesta existência, Núbio; mas já infamaste lares e és reconhecido por teus antigos adversários, por tuas inúmeras vitimas, às quais estás novamente ligado, e que, por um sexto sentido ainda não classificado pelos cientistas terrenos, percebem a presença do crudelíssimo tirano de outras eras, pois guardam na concha maravilhosa do espirito o tumulto do Passado — oceano infindo, que parecia extinto!
— É, pois, a Justiça suprema que me verga para o pó?
— ...e que te há-de alçar aos páramos estrelados, à luz e à felicidade que desfrutam as almas polidas e cinzeladas pela Dor.
Núbio, assombrado, com os olhos nublados de pranto, fitou o jazigo de Gastão e sua família, e nunca lhe parecera tão lívido o arcanjo de mármore talhado pelo retrato de René, iluminado pelo calvário de cristal esmeraldino, que, então, lhe pareceu descido das esferas siderais, possuir algo divino e consolador, que lhe penetrou no coração contrito .
Lentamente, Núbio retirou-se para o aposento que lhe fora conservado no solar de Dusmenil, já transformado em orfanato e abrigo dos desamparados.
Núbio fora contemplado com um modesto pecúlio, suficiente para manter-se durante toda a existência, mas não se conservava inactivo — peregrinava por diversas povoações, realizando inolvidáveis recitais em conjunto com outros artistas.
Quando regressava a Arras, desejoso de rever o mausoléu do protector, instalava-se no singelo aposento que o asilava desde a infância.
Instrumentos musicais se viam pelo pavimento, e, à noite, ali se congregavam os auxiliares do famoso cantor, que recebera do público o apelido de Rouxinol Mascarado.
Ao chegar ao seu quarto, lá encontrou o regente da orquestra e companheiros que aguardavam sua chegada para os primeiros ensaios das solenidades da Semana Santa, que, dentro de poucos dias, se realizariam na catedral de Arras.
Alto e esbelto, com o mento velado por pequena máscara de veludo negro, começou a vocalizar um cântico sacro, de inexprimível melodia e suavidade, acompanhado pela orquestra que organizara.
Ouviram-no com emoção os que o rodeavam — visíveis e invisíveis.
Embora não tivesse a harmonia das filarmónicas siderais, Dusmenil e seus companheiros acharam-no surpreendente e belo — pois a excelsa arte de Euterpe é a única linguagem universal.
Compreendem-na os selvícolas e os povos mais cultos, as próprias feras; os pássaros procuram imitar os mais formosos harpejos musicais.
Há música na Terra, no Espaço, nos planetas mais sombrios e nos astros mais refulgentes!
Ela é, como a luz, um dos elos que prendem todos os seres da Criação, dando-lhes a impressão do Belo e do Sublime, é uma das manifestações mais eloquentes do Artista Supremo!
Poucos dias depois, realizaram-se os festejos.
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Mensagem  Ave sem Ninho 25/4/2018, 13:57

CAPITULO XI
Arras regurgitava de forasteiros.
Os logradouros públicos apresentavam desusado movimento.
Nos arredores da cidade abarracavam peregrinos de condição humilde, em terrenos baldios, evitando os ónus majorados das hospedarias e dos hotéis de luxo.
Núbio — quase sempre acompanhado de um servo para auxiliá-lo no que fosse mister, ordenou-lhe que o esperasse na igreja, onde se realizavam as solenidades religiosas.
Alma contemplativa e melancólica, aprazia-lhe perambular sozinho pelos lugares menos rumorosos, colhendo impressões, observando a Natureza.
Despertou-lhe atenção, naquela hora vesperal, o número incalculável de barraquinhas em que se abrigavam romeiros pobres, mercadores ambulantes, saltimbancos e aventureiros de toda a espécie.
Em uma barraca — das mais isoladas e desconfortáveis, estava assentada andrajosa mulher, aparentando mais de sessenta anos de existência penosa e dissoluta.
Pelas vestes rotas, poder-se-ia identificá-la nas tribos nómades da Boémia.
Trigueira, com um lenço de matizes vivíssimos circulando-lhe a fronte, tinha a descoberto algumas mechas de cabelos caracolados, num contraste evidente de ébano e jaspe; os olhos eram negros e fulgurantes; — último vestígio da mocidade, pois as faces estavam encovadas e sulcadas de profundos vincos denunciadores de paixões violentas, quais serpes minúsculas, ou coriscos d alma gravados no rosto pelo buril dos vícios e paixões malsãs.
Ao vê-lo, cintilou-lhe o olhar, aceso em chamas de cobiça.
Quase de um salto, como um tigre que se arrojasse ao indefeso peregrino das florestas, acercou-se do rapaz, exclamando em tom lamentoso:
— Meu rico senhor, quer que lhe desvende o passado e o futuro?
Núbio estremeceu, fitou-a com intima repulsa e ia afastar-se sem lhe responder, mas a cigana postou-se-lhe à frente, repetindo em mau castelhano:
— Meu rico senhor, deixe-me ler a sua sorte, que será muito boa!
— Como poderás sabê-lo, se ainda me não viste as linhas da mão?
— Eu adivinho a sina de quem se me aproxima, qual o fazem todos os meus afins.
— Cuidas, então, que Deus — o único Ser que pode perscrutar os arcanos da Humanidade nos séculos vindouros — concede esse privilégio a criaturas como tu que justamente não têm pátria nem lar, e, às vezes, nem honra?
— É o dom que Ele nos concede, ao privar-nos de tudo mais... pois assim podemos ganhar a vida, lendo nas mãos o destino dos homens.
Núbio sorriu com amargura e escárnio, dizendo-lhe:
— Desafio os Fados e a ciência de todas as buenas-dichas — pois nenhuma conseguirá desvendar-me a sina!
— Duvidas? — revidou a megera — Verás!
Deixa ver a mão...
Desde ontem estou a morrer de fome, mas não te cobrarei um real.
O rapaz recuou um passo e interpelou-a com ironia:
— Quanto costumas cobrar?
— Vinte reais.
— Pois dou-te duzentos ou dois mil, se conseguires ler-me a sorte!
Assim falando, num rápido movimento de ombros, descobriu o mento, a boca com os lábios bifidos e o braço direito decepado, dando-lhe «m aspecto macabro de espectro mágico.
A cigana estatelou-se num brado de terror.
Núbio, irado, avançou para ela com um sorriso de caveira:
— Recusas atender-me?
Ela, apavorada, cobriu o rosto com as mãos sórdidas, arquejante de emoção, muda, petrificada!
Núbio soltou uma risada de escárnio e amargura infinita:
— Não queres ler minha sorte, desgraçada?
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