LUZ ESPÍRITA
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O ATEU - - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2015 9:30 pm

O ATEU
VERA LÚCIA MARINZECK DE CARVALHO

ESPÍRITO ANTÓNIO CARLOS

O QUE LEVA ALGUÉM, A NÃO ACREDITAR EM DEUS?

Jean Marie – o Ateu, como é conhecido na intimidade – e seus amigos são farristas que vivem apenas o presente, para as festas e os prazeres mundanos.

Residentes na Toca – propriedade outrora conhecida como Fazenda São Francisco –, transformaram o lugar em palco de festejadas reuniões, onde a falsa alegria convive com o vício e a chantagem.

Jean Marie reserva-se o direito de não apenas descrer do Criador, mas também de influenciar os outros com seus escritos.

Alheio às seduções do ambiente onde vive, o Ateu quer apenas explorar os corruptos.
Perseguido por um espírito que deseja vingar-se, pressente o perigo: uma terrível ameaça ronda a Toca...

(...) José, Gerald e Anatólio levaram o homem, que estava assustado e com medo.

Jacó, Hugo e Jean Marie seguiram atrás.
Tiraram o casaco e a camisa do homem, amarraram-no com os braços para cima, suspenderam-no a alguns centímetros do chão.

Esse castigo já fora aplicado outras vezes na Toca.
A primeira vez foi a uma senhora fofoqueira que veio chantagear Jean Marie:
ela queria dinheiro para não contar ao monsenhor as estranhas festas que aconteciam na Toca e também que, na sua opinião, o grupo era seguidor do diabo.

Levou uma grande surra.
Dois ladrões também foram castigados e um jovem que insistia em perseguir Caterine.

José deu a Jean Marie uma faixa grossa de pano molhado e ele bateu nas costas do homem por três vezes.

- Perdão, senhor, perdão!
Não fiz por mal - rogou o homem desesperado.

- Forçar alguém não é um mal? - perguntou Jean Marie.
- Sei que as senhoras têm encontros... - respondeu o homem.

- Encontros com quem querem, aqui ninguém é forçado.
- Não entendo por que ela gritou tanto - falou o homem.

- Deixe Jean Marie, que eu bata nele - pediu Anatólio nervoso e indignado.
Será castigado para aprender a não forçar uma mulher (...)
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2015 9:31 pm

A TOCA

Gargalhadas alegres ecoavam pelo corredor.
Ao abrir a porta da biblioteca, Jean Marie foi aclamado por três mulheres que ali estavam trabalhando, fazendo cópias de um texto escrito por ele.

- Você foi novamente fantástico, Ateu!
Este artigo está muito bom! - elogiou Anne, entusiasmada.

Jean Marie era chamado carinhosamente por alguns amigos de Ateu, mas isso somente entre eles.

Ele havia escrito aquele texto à noite, de umas vinte linhas somente, que motivava quem o lesse a pensar:
"Onde estaria Deus que não fazia nada para ajudar nos lares onde havia escassez de alimentos?
Estaria escondido ou participando de homenagens e não via crianças passando fome, frio e recebendo maus-tratos?

Será que Deus via essas cenas?
Se via, por que não fazia nada?
Como entender este facto?
Será que a divindade é conivente com esses acontecimentos?"

Joana leu o artigo em voz alta e exclamou:
- Se Deus existe e consente com essas injustiças, Ele é um bárbaro!
Jean Marie sentiu-se orgulhoso de seu trabalho, olhou para o espelho que decorava uma das paredes e se admirou.

Passou a mão nas suas sobrancelhas, acertando-as.
Tinha estatura e peso medianos, lábios finos, nariz perfeito, olhos pequenos, os cabelos rareavam e a testa era grande.

Ao seu lado estava um desencarnado que sorria orgulhoso, sentia que os elogios eram para ele, o verdadeiro autor da obra-prima.
Passou a mão também nas suas sobrancelhas.

Seu aspecto era muito diferente do encarnado que obsediava:
era alto, forte, mãos enormes, cabeleira farta e olhos grandes.
"Somos iguais somente na descrença", pensou o espectro rindo.

- Você está muito bem, Jean Marie.
Continua bonito como sempre! - afirmou Anne.

- Seu artigo está muito bom - disse Bárbara.
Eu também queria obter estas respostas.

Onde está Deus quando calamidades acontecem?
Onde Ele estava quando, ainda menina, era estuprada de três a cinco vezes por dia pelos seus representantes?
Bárbara se exaltou e Joana mudou de assunto.

- Ateu, seu administrador quer falar com você.
- Problemas? - perguntou Anne.
Será que temos problemas na Toca?
Amo este lugar! Nossa Toca!
Moradia e abrigo dos diversos animais que somos nós.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2015 9:31 pm

Lembra-se, Ateu, quando Estêvão se referiu à sua casa como toca?
Disse que éramos diferentes bichos e que os animais tinham tocas.
Todos gostaram do nome.
Devemos nos preocupar?

- Não se preocupem, não deve ser nada sério - respondeu Jean Marie.
Voltem ao trabalho, minhas queridas.
Quero que Michel distribua esses artigos antes da festa.

- É uma injustiça você não poder assinar esta obra maravilhosa! - lamentou Joana.

- Não posso correr o risco - explicou Jean Marie.
Um artigo ateísta, assinado, seria minha condenação.
E concordo com vocês: está muito bem-feito.
Onde está Caterine?
- Se preparando para receber o seu amante - respondeu Joana.

- O monsenhor de novo?
Ele deve estar realmente apaixonado! - comentou Jean Marie.
- Tomara que ela o faça sofrer! - exclamou Bárbara.

- Vou ver o que Gerald quer, meu administrador não deve me esperar; ele tem muito o que fazer.
Ele saiu, a biblioteca era a primeira porta depois das salas, no corredor havia muitas portas, a que ele acabara de fechar e as dos oito quartos.
E na frente do corredor, à esquerda, estava o salão onde aconteciam as festas.

À direita, a sala de estar que se comunicava com a sala de jantar, após a adega e a cozinha.
A casa era realmente acolhedora.
"Foi uma boa ideia tê-la reformado", pensou Jean Marie.

"Fiz um salão das muitas salas existentes:
sala de leitura, de bordado e pintura, estudo e música.
Ficou óptimo esse salão, perfeito para nossos encontros festivos."

Jean Marie foi à varanda, viu Gerald no portãozinho, à direita do jardim que dava acesso às casas dos empregados e foi ao seu encontro.
Ele gostava do seu administrador que trabalhava ali desde o tempo de seu pai.
Cuidava de tudo com dedicação.

- Quer falar comigo, Gerald?
Algum problema com a fazenda?
- Não, senhor, está tudo certo com a propriedade - respondeu Gerald.

Percebendo que seu patrão estava atento, criticou-o:
- Se o senhor gastasse com seus hóspedes e festas o que rende a fazenda, já estaria arruinado, mas administrando como faz, ela está bem.

- Não vou arruinar a fazenda, Gerald.
Primeiro porque você a administra muito bem.
Além disso, tenho outra fonte de renda: os livros que escrevo são bem aceites.

Jean Marie falou com ironia, mas Gerald não percebeu.
"Meus escritos não me rendem quase nada, mas é melhor ele acreditar que sim", pensou ele.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2015 9:31 pm

- Senhor Jean Marie, seus pais não iriam gostar de ver como está vivendo.
Que a Fazenda São Francisco virou um lugar de orgias.
- Eles estão mortos, Gerald.
Mas o que quer falar comigo? - perguntou o proprietário.

- É sobre as festas - respondeu o administrador.
Na sexta-feira o senhor dará mais uma.
Queria pedir que impeça os convidados de irem às casas dos empregados, atrás de alguma mulher.
Na última, isso aconteceu. Foi desagradável!

- Vou tomar providências, pode ficar sossegado.
Tranquilize todos; peça, porém, que tranquem as portas.
Gerald despediu-se e Jean Marie atravessou o jardim.

"Ele é óptimo administrador", pensou, "por isso me faço de surdo quando me critica.
Até esqueço que a Toca teve outro nome.
Seria ironia este lugar ter nome de um santo!"

Quando a propriedade passou a ser dele, a primeira coisa que fez foi dar todos os quadros de santos e imagens às suas irmãs.
Deu também a elas as jóias de sua mãe.
Mandou tirar a placa de madeira fixada no portão onde estava escrito "Fazenda São Francisco", alegando que ia restaurá-la, mas a mandou para a lareira numa noite fria.

- Senhor, a carruagem do monsenhor está chegando!
Vi-a na curva - disse Gerald, que veio atrás dele no jardim.
Devo recebê-lo?
- Faça como sempre, Gerald - respondeu Jean Marie.

- Isso é um horror, ouviu menino! - exclamou Gerald indignado.
- Cuidado, Gerald, gosto de você, é um velho empregado, mas não admito interferências.
O que tem de mais receber aqui um representante da Igreja?

- Não me julgue mais tolo do que sou, menino Jean Marie.
Temo em pensar o que pode acontecer nessas visitas do monsenhor. Quem ele vem ver?
O senhor que não é, e como não mora sozinho, fico a pensar:
será que ele vem ver alguma das mulheres?

As senhoras Bárbara, Caterine, Maurícia, Anne e os senhores Estêvão e Jacó estão sempre aqui e não sabemos se moram ou não na fazenda, os outros nem sei, vão e voltam.
Aqui nem parece mais um lar, mas uma hospedaria.

A carruagem do monsenhor passou pelo portão, Jean Marie ouviu o sino tocar duas vezes, olhou para o empregado e aconselhou:
- Gerald, não seja inconveniente, pode ser perigoso - Jean Marie advertiu-o.

- Foi somente um desabafo, temo pelo senhor, que para mim será sempre um menino.
Como sempre, serei discreto.
- É melhor!
Jean Marie ajudou o monsenhor a descer e Gerald sorriu gentilmente cumprimentando-o.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2015 9:31 pm

- Jean Marie - disse o monsenhor -, trouxe o vinho que comprou.
Como o entregador deixou sua encomenda junto com a da igreja, me prontifiquei a lhe entregar.
- Agradeço a gentileza! Gerald coloque o vinho na adega.

Gerald foi pegar o barril e o monsenhor falou baixinho a ele:
- Estou fazendo um trabalho espiritual com esse grupo, quero salvar suas almas!
- Sim, senhor - respondeu Gerald.

- Por favor, monsenhor, entremos.
Na sala de estar a empregada, rapidamente, veio servir um conhaque, muito apreciado pela visita.

- Obrigado pelo presente - agradeceu Jean Marie.
- Tenho de arrumar desculpas para vir aqui e... - falou o monsenhor.

- Que são geniais! - interrompeu Jean Marie.
Mas, por favor, não quero prendê-lo, esteja à vontade, não a deixe esperar mais. No mesmo local!
O monsenhor sorriu, esvaziou o copo e saiu apressado.

Caterine o recebia em seu quarto.
Os aposentos eram poucos para tantos hóspedes.
Ele tinha seu quarto, Caterine dividia o seu com Anne, Joana e Maurícia ocupavam outro, Bárbara dormia sozinha num quarto pequeno e quando recebia mais visitas ela ia para o aposento de Joana e Maurícia.

Jacó e Estêvão tinham os seus quartos, mas acomodavam alguém quando a casa hospedava o restante do grupo.

Jean Marie nem viu o monsenhor ir embora.
À tarde, ao ouvir o barulho de uma carruagem, foi ao jardim.

A propriedade ficava perto da cidade:
somente dez minutos de carruagem ou cinco minutos a cavalo.
A estrada era a continuação de uma rua.
O portão abriu e ele viu o casal amigo chegar.

- Louco, querido! - exclamou Francesca saudando-o.
Tudo pronto para a festa?
- Quase tudo. Fizeram boa viagem? - perguntou Jean Marie.

O casal, Francesca e Victor, desceu, eram jovens ainda, elegantes e bonitos.
Uma empregada veio para levar a bagagem, e outro, a carruagem para o lado esquerdo do jardim, onde havia uma estrebaria.

- Sim - respondeu Victor.
São oito horas de viagem, estamos cansados, mas felizes por estarmos aqui, neste recanto, na Toca querida.
- E a família? - Jean Marie quis saber.
Francesca e Victor eram casados, o único casal do grupo.

- Todos bem - respondeu Victor.
As crianças arteiras ficaram com minha sogra, como sempre.
- Fez novo artigo?
Estamos curiosos para lê-lo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2015 9:31 pm

- Fiz, as garotas estão copiando.
Vão descansar, logo serviremos o jantar - disse Jean Marie.

À tardinha, chegou o restante do grupo.
Fizeram elogios ao texto que Jean Marie escreveu e combinaram que Michel distribuiria as cópias, na noite seguinte, em algumas casas.

E, como sempre, o jantar foi animado.
No outro dia, após o desjejum, Jean Marie foi conversar com Michel.

- Esta noite distribua os panfletos, mas tenha cuidado, esteja atento, não entregue se perceber algum perigo.

- Devo viajar? - perguntou Michel.
- Não, você merece ficar para a festa, depois permanecerá uns dias na Toca.
Vamos esperar um tempo para distribuí-los em outros locais.
Devemos ser cautelosos.

Suas próximas viagens serão somente para compras e vendas para a propriedade.
Michel, quero lhe pedir um favor, na festa beba somente quando os convidados começarem a ir embora.

Fique atento, não deixe que alguém mais exaltado vá importunar as empregadas na cozinha.
Se isso acontecer, com jeito afaste-os, se não conseguir, faça o sinal costumeiro que virei em seguida.
Quero também que receba as prendas enviadas pelos convidados e faça o de sempre.

- Usaremos somente parte do que nos enviarem para a festa, o restante irá para a despensa.
Cumprirei suas ordens.
Posso guardar para mim uma jarra do vinho bom que é servido primeiro?

- Pode - concordou Jean Marie.
A movimentação na casa era intensa.
Em todas as festas era assim, e as reuniões eram constantes, pelo menos duas vezes por mês, realizadas às sextas-feiras, e recebiam muitos convidados.

Com o grupo reunido havia saraus, às quintas-feiras, jogos, e tudo era motivo para comemorar e beber.
Essas festas quinzenais eram famosas, com mulheres bonitas, senhores abastados, e nesta viriam dois músicos famosos.

Tudo tinha de dar certo.
Depois que conversou com Michel, Jean Marie foi ao jardim falar com José, o jardineiro.

- José, sei que dorme cedo, mas gostaria que, na festa, você ficasse no portãozinho que dá passagem às casas dos empregados, para impedir que convidados passem para lá.
Seja gentil, mas aja com firmeza:
não deixe ninguém passar.
Se não conseguir impedir, vá à cozinha e avise Michel, eu irei imediatamente. Certo?

- Sim, senhor.
Não entendo como o senhor é assim...
- Assim como? - perguntou Jean Marie.

- Está sempre fazendo festas - respondeu José - em vez de escolher uma boa moça para casar, e seus amigos são... irresponsáveis.
O senhor os financia e participa dessas orgias.
Mas é bom patrão, se preocupa connosco e nos paga bem, não o entendo!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2015 9:32 pm

- Nunca me casarei, José - afirmou Jean Marie.
Estou com trinta e oito anos, velho para assumir um compromisso.
Não nasci para ser fiel, faria infeliz a moça com quem me casasse.
Não quero responsabilidades, gosto de viver assim.

- Mas os anos passam e a velhice vem - argumentou o jardineiro.
- Para que se preocupar com o futuro se o presente é tão bom! - exclamou Jean Marie.

- Senhor - chamou Michel -, o barão nos mandou prendas.
Um empregado dele trouxe uma carroça com leitões, aves, sacos de farinha, cereais e vinho.

Fernão, o desencarnado, estava aborrecido com a interferência dos dois empregados antigos no modo de vida que Jean Marie levava e reclamou:
- Deve ser Frei Damião!
Esse senhor está sempre se intrometendo.

Não sei como não se cansa!
Tudo o que faz não dá resultado.

Jean Marie foi olhar a mercadoria que chegou.
Michel foi separando-a, ele era empregado da fazenda, recebia seu ordenado directamente de Gerald, o administrador, e para fazer o outro trabalho, distribuir os artigos, recebia à parte.

Para não desconfiarem dele, ele distribuía em outros locais, cidades, quando fazia compras ou vendia os produtos da fazenda.
Era apaixonado por Caterine e sentia muito ciúme do monsenhor.

"As festas me dão lucro", pensou Jean Marie satisfeito, "a quinzenal abastece a minha despensa.
Ainda bem que os convidados entendem que têm de colaborar.
Agora me vem José com essa história de me ver casado.

Esses meus dois empregados antigos acham que podem me aconselhar.
Casar, eu? Que horror!
Não o faço nem para ser sustentado! Será que sou doente?

Não gosto de sexo nem de relacionamentos amorosos.
Gosto de amigos."

Jean Marie entrou na casa e encontrou Victor, que estava na sala de estar.

Perguntou, estranhando:
- Victor, arrumado a essa hora? Encontro?
- Sim, Francesca foi buscar a baronesa - respondeu Victor.
- Victor, vocês não têm mesmo ciúmes um do outro?
Parece que se amam mas...

- Não diga "traem"!
Não você, por favor! - interrompeu Victor.
Amo Francesca e ela me ama.
Sei dos relacionamentos dela e ela também sabe dos meus, e até os facilita.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2015 9:32 pm

Quando estamos em nossa casa, na cidade onde moramos, somos exemplares, mas aqui apimentamos o nosso relacionamento.
Não traímos, trair é ser hipócrita, é o que fazem o barão e a baronesa.
Eles aparentam ser uma coisa, mas são outra.

Francesca foi buscá-la na sua carruagem.
O barão não vê nada de errado no facto de Francesca buscar sua esposa para um passeio.
A baronesa, sabendo que temos poucos recursos financeiros, me presenteia com razoáveis quantias.

- Victor, você tem recebido dinheiro da baronesa, Francesca também recebe presentes de seus amantes e não tem contribuído com nada para nossa causa ou casa - queixou-se Jean Marie.
- Ateu, Francesca copia seus artigos!
Você sabe que vivemos com dificuldades, temos de sustentar nossa casa, três filhos, sogra e recebo pouco pelo meu trabalho.

- Está bem, não é hora para queixas.
Victor, vou lhe perguntar uma coisa, só por curiosidade: por que é ateu?

Jean Marie pensava que para tudo havia uma causa.
Uns pensamentos eram reflexos de outros.

Uma conclusão era resultado de estudos ou experiência.
Os ateus eram pessoas inteligentes e para chegarem a essa conclusão, de que nada existia além de matéria, quase sempre havia algum motivo.

E naquele momento queria saber dos amigos o que eles pensavam.
"Para tudo, há motivo: até para a crença e a descrença", pensava ele.

- Que pergunta estranha! - respondeu Victor admirado.
Acho que sou ateu por amizade.
Gosto de você, do grupo.
Depois é óptimo não ter medo do Inferno.

Acreditar que ao morrermos acabamos é um excelente motivo para aproveitarmos a vida!
Escute! Francesca está chegando com a baronesa.
Pegou o sino que estava sobre a mesinha central e tocou duas vezes.

Era o sinal de que alguém da casa estava recebendo visita íntima e que não deveria ser importunado.
Por dez minutos, ninguém saía dos aposentos e quem quer que estivesse pelos corredores entrava rapidamente em algum cómodo.

E, para a visita sair, usava-se o mesmo método, isso para evitar encontros constrangedores.
Na porta do quarto que recebia o casal era colocada uma fita azul.
Enquanto a fita estivesse na porta, ninguém entraria no aposento.

Escutando as vozes de Francesca e da baronesa, Jean Marie escondeu-se atrás de um biombo e Victor ficou sozinho.
A baronesa entrou na saleta de estar, sorriu para o amante e Francesca passou directamente, indo à cozinha.

O casal se dirigiu a um dos quartos.
Jean Marie saiu de detrás do biombo e Francesca retornou à sala.

- Francesca, o que fala para a baronesa sobre esses encontros? - perguntou Jean Marie curioso.
- Louco, querido, digo-lhe que infelizmente sei do grande amor que meu marido sente por ela, mas que é impossível não só a minha separação dele, porque temos filhos pequenos, mas também a dela porque, embora o barão seja um péssimo marido, nunca lhe daria a liberdade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2015 9:32 pm

Ela me fala que nesses encontros somente conversam e eu finjo que acredito.
A baronesa tem me presenteado.
Veja este anel, ela me disse que era de sua mãe, mas me recomendou não usá-lo na frente do marido.

- Você não tem ciúmes mesmo? - indagou Jean Marie.
- Não, meu Louco, não tenho.
Victor me ama e eu o amo, mas esse amor teria acabado se tudo entre nós fosse certinho.

- Vocês dois vêm aqui, fazem a colheita, recebem e vão embora.
- Louco! - exclamou Francesca indignada.

Por que fala assim comigo?
Sabe quanto Victor recebe por mês daquele tio dele avarento?
Se não fossem estes recursos, passaríamos por dificuldades.

Você não quer que sua amiga verdadeira, a mais sincera, passe por necessidades, quer?

Jean Marie gostava de facto de Francesca, ela era a única que o chamava de Louco.

Uma coisa era certa:
os dois, ela e Victor, eram sinceros com ele.
- Por que é ateia, Francesca? - perguntou, mudando de assunto.
- O quê? Por que sou ateia? Bem...

Francesca realmente estranhou a pergunta, pensou por uns instantes e respondeu:
- Acho que é porque gosto de você, admiro-o por ser inteligente e talentoso.
Você deve estar perto. Nada sobrevive!

Não gosto da hipocrisia do clero e eles não poderão me mandar para o Inferno.
Vou agora à biblioteca fazer cópias do artigo, vamos levá-las para distribuir na calada da noite em algumas casas na cidade em que moramos.

Jean Marie ficou pensando:
"E eu, por que sou ateu?
Acho que é porque detesto a autoridade da Igreja!

O que a Inquisição fez, e ainda faz, bandidos da pior espécie não fazem.

Eles pecam e não querem que nós pequemos.
Fico trémulo só de pensar nisso.
Quero, tenho de ser ateu!"
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 29, 2015 9:32 pm

A FESTA

Como sempre, tudo foi muito bem organizado e, na sexta-feira, às sete horas da noite, eles esperavam tranquilamente os convidados chegarem.

Vieram casais e alguns homens sozinhos que não queriam que as esposas participassem.
Aparentemente era uma festa como muitas outras, comes e bebes à vontade, servidos pelos empregados, música e pares dançando.

Só que, durante a festa, desapareciam alguns casais do salão, eles iam aos quartos e todos sabiam:
"fita azul" não era para importunar.

Havia trocas de casais, muita orgia e bebedeira, mas o forte eram as conversas.
E o assunto da noite era o artigo que muitos receberam.

- Eu também recebi - afirmava Jean Marie.
Eloquente, conduzia o assunto de forma subtil defendendo suas ideias, falando de maneira diferente a cada um dos seus diversos convidados.

Ao barão, por exemplo, que já era ateu, disse:
- Eu admiro o autor desses artigos, gostaria de cumprimentá-lo e tê-lo entre meus convidados.
Ele foi genial desta vez!

- Não vimos quem o entregou ou deixou em nosso jardim.
Você tem razão, ele é inteligente!
Se eu descobrir quem é, aviso-o - respondeu o barão.

Já ao conde, que estava em dúvida se aceitava ou não o ateísmo, ele opinava:
- Estes artigos me fizeram pensar.
Não que os acate, mas fiquei pensando por que temos crianças passando fome?

Por que seu filho, conde, sofre aquelas crises?
Você e sua esposa são pessoas boas e honradas.
Não há explicações!

Se Deus fosse mesmo justo, não deixaria seu filho sofrer assim.
Revolto-me com este facto.
E quem nos dá explicações? Ninguém.
Por quê? Simples, porque não há explicações!

O conde escutou atento e acabou por concordar com ele.
- Você tem razão, ninguém nos esclarece.
A resposta que tive a essas indagações foi: porque Deus quer!

- E isso é resposta? Deus quer!
Que ser cruel é esse Deus?! - exclamou Jean Marie escandalizado.
Ainda não aceitei o ateísmo, mas, escutando-o, já estou me convencendo.

Jean Marie passava as festas conversando, ficava atento ao discurso do outro e, ao invés de convencer, terminava o diálogo como se fora convencido.
Jean Marie conversava com uma senhora quando viu Michel lhe acenar, foi rápido ver o que seu empregado queria.

- Venha à biblioteca, senhor - disse Michel.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2015 8:34 pm

Jean Marie o seguiu e o empregado lhe sussurrou:
- A senhora Bárbara feriu o barão, estão aí dentro.
Volto para o meu posto?
- Sim - respondeu Jean Marie.

Jean Marie entrou na biblioteca e fechou a porta.
Anatólio, que também pertencia ao grupo, tentava acalmar Bárbara, que tremia e estava com os olhos arregalados.

Anatólio sabia que não podia aproximar-se dela, por isso lhe dizia baixinho:
- Calma, querida!
Calma, eu estou aqui! Eu a protejo!

O barão estava sentado em cima de uma das escrivaninhas, tinha um corte na testa que sangrava e estava atordoado.

Rápido, Jean Marie inteirou-se da situação, aproximou-se de Bárbara e falou enérgico:
- Pare com isso!
Volte ao seu estado normal!

Sacudia-a pelos braços.
Ela suspirou e se acalmou.

- Jean Marie? - exclamou ela.
- Sim, sou eu! Preste atenção:
vá com Anatólio ao meu quarto e fique quieta lá. Entendeu?

- Sim! - falou Bárbara baixinho.
- Anatólio - ordenou Jean Marie dirigindo-se ao amigo -, leve-a para o meu aposento, pegue uma camisa e um casaco meu, traga-os aqui, feche a porta do meu quarto e coloque a fita azul na porta. Depressa!

- Vou deixá-la sozinha? - perguntou Anatólio.
- Ela ficará melhor sozinha - afirmou Jean Marie.

Anatólio pegou no braço de Bárbara e eles saíram rapidamente da biblioteca.
- Essa mulher é louca! - exclamou o barão.
- Ela é doente! Desculpe-a!
Como ela pôde recusar você?!

- Como sabe?
Estava aqui? - perguntou o barão.
- Não, mas Bárbara é assim mesmo, recusa sempre o homem que ela ama, parece que se pune.
- Que estranho! - o barão falou compassado, com voz de bêbado.

- Há tempos ela é apaixonada por você - mentiu Jean Marie.
- Mas eu não a quero! É louca!
- Entendo-o! Vou estancar esse sangue.
Farei um curativo agora mesmo.

Abriu uma gaveta e pegou o que precisava.
Começou a limpar o ferimento.
Enquanto fazia o curativo, falava exaltando as qualidades do barão.
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O ATEU -  - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho Empty Re: O ATEU - - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2015 8:35 pm

"Ainda bem que ele bebeu muito e não está sentindo dor", pensou Jean Marie.

Anatólio chegou com as roupas, Jean Marie ajudou o barão a trocar a sua, suja de sangue, pelas dele limpas.

- Anatólio, por favor, leve as roupas do barão à cozinha e peça a uma empregada para lavá-las para que não manchem.

Anatólio saiu e Jean Marie falou:
- Voltemos ao salão, amigo barão.
Para todos diremos que você foi abrir uma janela da biblioteca e uma parte dela, que estava solta, caiu em sua testa.

- Ela me acertou com aquela estatueta.
Quase me mata! Você irá tomar providências, não é?

Jean Marie ficou sério e falou lamentando:
- A pobrezinha está doente, não tem ninguém.
Vou levá-la ao médico novamente.

Vamos, amigo, a festa está muito boa.
Vou chamar Anne para lhe fazer companhia.

- Aquela inglesa? Prefiro Francesca.

Voltaram ao salão.
Depois de repetir a mentira por umas três vezes explicando o porquê do ferimento, esqueceu o barão, que foi se refugiar nos braços de Joana.

- Jean Marie, você se lembra de Mauricie?
Retornou à nossa pátria e eu o trouxe à festa - falou um dos seus convidados habituais.

O anfitrião o cumprimentou:
- Seja bem-vindo à minha casa.
Quando retornou? Pretende ficar?

- Faz uma semana que voltei, vim somente para rever meus pais.
Vou residir em Londres - respondeu Mauricie.
- Você estava em Londres?
- Não, fiz uma longa viagem para a Índia.

- Índia e seus mistérios! - exclamou Jean Marie.
Gostou da viagem?
Por que demorou tanto tempo?

- Lá, permaneci estudando, meu caro Jean Marie.
Foi uma viagem encantadora, onde aprendi muito.
Sou outra pessoa com esses conhecimentos.

- Que conhecimentos são esses? - perguntou Jean Marie interessado.
- Foram muitos, mas o principal é sobre reencarnação - respondeu Mauricie.

- O fenómeno que tenta explicar que nascemos muitas vezes e que podemos ser até animais? - perguntou Jean Marie sorrindo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2015 8:35 pm

- É mais ou menos isso - respondeu Mauricie.
A crença que o espírito pode animar animais chama-se metempsicose, mas nós, meu caro Jean Marie, não nascemos em corpos de animais.

A vida é um círculo, nossa alma, espírito, não morre.
Vivemos aqui, vestindo este corpo de carne e ossos e, quando ele morre, vivemos em outros lugares e voltaremos, no futuro, a ter outro corpo, isto é a reencarnação.

- Estou admirado!
Você é inteligente e de formação católica, é estranho você acreditar nesse facto! - exclamou Jean Marie.

- Nada há de estranho - respondeu Mauricie.
Nós temos obrigação de procurar respostas para o que não entendemos.
Na noite passada recebemos em nossa casa um artigo que indaga onde está Deus, que não vê as crianças passando fome.

A resposta é simples:
Deus está em todos os lugares e dentro de nós.
Pela reencarnação, uma pessoa que peca, ao morrer, não sofre pela eternidade, mas sim por algum tempo e depois volta a encarnar, tem outra oportunidade de viver em outro corpo físico e sua vida será o reflexo do que fez no passado, pode ser de coisas boas ou ruins.

- Você não acha essas ideias mirabolantes demais?
É pior que esses artigos!
Muito confuso! - exclamou Jean Marie.

- O senhor é ateu? - perguntou Mauricie.
O senhor já notou que todos os que se dizem ateus têm um forte motivo para ser?
- Eu não sou ateu, sou católico - Jean Marie respondeu depressa.

- O ateu - falou Mauricie tranquilamente -, não acreditando em Deus, deve pensar que é algo, uma coisa, como se fosse um objecto ou uma máquina.
Será que os ateus acham que somos somente aquilo que recebemos pela hereditariedade?
Você, por exemplo, é um talentoso escritor, de quem recebeu esse dom?
Existe algum escritor em sua família?

- Não, não há ninguém - respondeu Jean Marie incomodado.
- Você é herança de si mesmo.
Somos a bagagem de diversas existências.

- Cuidado, amigo - alertou Jean Marie -, ao expor suas opiniões.
Tudo o que se diferencia do que prega o clero é perigoso.

- Atenderei ao seu conselho - respondeu Mauricie.
Você é uma pessoa confiável, hospitaleira e com certeza posso falar dos conhecimentos que adquiri e que me fizeram sair do ateísmo, principalmente pela compreensão da lei do carma e da reencarnação.
Esses conhecimentos são antigos...

Jean Marie viu novamente Michel lhe acenando, desta vez parecia nervoso, pediu licença a Mauricie e foi atender o empregado.

Fernão, o espírito, sorriu satisfeito e resmungou:
"Não quero más influências sobre Jean Marie.
Se o senhor Frei Damião pediu a esse indiano para falar de reencarnação a ele, tenho de ficar atento e impedi-lo."
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2015 8:35 pm

Jean Marie aproximou-se de Michel e perguntou:
- O que aconteceu desta vez?
- Anatólio está provocando o barão.

Jean Marie olhou para o local indicado e viu o amigo conversando com o barão e mais três pessoas.

Ele se aproximou rápido do grupo, encostou em Anatólio, ficou na frente dele e sorrindo falou ao grupo:
- Por favor, tomemos mais vinho.
Essa maravilhosa bebida nos foi oferecida pelo barão e vocês sabem, o nosso amigo barão tem muito bom gosto.

Brindemos! - e falou baixinho para Anatólio:
- Saia daqui! Não converse com o barão!

Anatólio, aborrecido, afastou-se e o grupo alegre foi se servir de vinho.
Jean Marie não viu mais Mauricie e os últimos convidados saíram de madrugada.
Cansado, Jean Marie foi para seus aposentos e encontrou Bárbara dormindo num colchão no chão. Deitou-se em sua cama e dormiu.

Fernão era um desencarnado que obsediava todo o grupo, principalmente Jean Marie, a quem influenciava a escrever, pois ele era médium intuitivo1.

Estava sempre perto deles, e Frei Damião, a quem ele se referira, fora um padre.
Os dois se conheceram quando estavam encarnados.

Simpatizavam um com o outro e ambos, de certa forma, sofreram com a Inquisição.
Damião perdoou, compreendeu, e na condição de desencarnado passou a ajudar os envolvidos nessa perseguição, principalmente as vítimas que, marcadas pela dor, se sentiam injustiçadas e resolviam revidar.

Damião gostava de Fernão e queria alertá-lo do mal que estava fazendo.
Fernão não se vingava dos carrascos, daqueles que por muitos motivos agiram com crueldade infringindo o sexto mandamento: não matarás.

Queria desmascarar o clero e tinha motivos para estar perto de Jean Marie.
Frei Damião de facto estava presente na festa e tentava amenizar os efeitos provocados pela eloquência de Jean Marie, influenciado por Fernão.

Acompanhou o conde quando ele foi embora e Fernão foi junto.

O conde pensava revoltado:
"A Igreja é rica, os padres poderosos, mas eles não seguem os ensinamentos de Jesus.
Por que eu tenho de seguir?"

- Conde, - Frei Damião esforçou-se muito para tentar sugestioná-lo, aconselhando-o.
Os seguidores de Jesus são aqueles que vivem se baseando no que ele ensinou.
Eles podem ser padres ou não.
Há pessoas que abusam em todos os lugares.

"Meu filho sofre muito!
Se Deus realmente existisse não ia deixar meu menino sofrer assim", pensava o conde.
- Necessitamos compreender para não nos revoltarmos.
Você escutou de Mauricie que nascemos muitas vezes em vários corpos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2015 8:35 pm

Se você entender este facto real, compreenderá que existe causa para todas as dores.
Mas o conde tinha tomado muito vinho e queria dormir.

Fernão riu, depois falou a Damião:
- Não adianta frei, o conde está convencido!

- Fernão, por que faz isso?
Eles sofrerão, ninguém é feliz afastado do Criador.
Você sabe que sobrevivemos à morte do físico.

- Gosto do senhor - disse Fernão - quero continuar a respeitá-lo, por isso, por favor, não se intrometa em nossas vidas.
Sobrevivi, não acabei junto do meu corpo, mas não vi Deus, portanto Ele não existe.
Devo e quero alertar o maior número de pessoas para não acreditar no clero.

- Você continua vivo, está aqui na espiritualidade há muito tempo, sabe que voltamos a vestir outro corpo físico.
Deus não é uma pessoa, é o princípio de tudo.
Você acha que tudo que acontece na Terra, no universo, é obra do acaso?

Que não há ninguém que organize tudo isso?
Deus existe!

- Frei Damião - replicou Fernão - minha briga não é com Ele, esse Criador estranho, é com os padres.
Eu os odeio! E não gosto do que eles pregam.
Se o clero afirma que Deus existe, eu nego.
Contradigo tudo o que eles falam.

- Você afirmou que gosta de mim, me respeita, e fui um sacerdote - falou Frei Damião.
- O senhor é diferente, não foi como a maioria.

- Não deveríamos deixar o mal sobressair nem julgar todas as pessoas pelos maus actos de alguns.
Existem bons sacerdotes!
E ninguém é representante directo ou imediato do Criador.
Há muito que compreender.

- Como me explica o facto de Deus deixar que errem em Seu nome? - perguntou Fernão com um sorriso cínico.

- Você sabe que todos temos o livre-arbítrio, fazemos o que queremos e que os actos praticados a nós retomam.
Somos livres, mas nossas obras nos pertencem - respondeu Frei Damião.
- Será mesmo que existe o retomo? - Fernão perguntou deixando de rir.

- Você ainda duvida?
Foi comigo ver a situação dos padres inquisidores, aqueles que conhecemos.
Viu quanto eles sofrem no umbral, cercados de desafectos, por aqueles que não os perdoaram e que também padecem pelo remorso.
Por tudo o que viu é que lhe peço, deixe Jean Marie em paz.

- Não estou prejudicando nem ele nem ninguém do grupo, eles estão contentes e se afinam.
"Ela" vive muito bem, me aceita porque quer.
Não adianta você ter influenciado aquele Mauricie, o indiano, para conversar com "ela".
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2015 8:35 pm

Jean Marie, "ela", me deve e eu, como credor, acho justo cobrar.
Não quero mais conversar com o senhor.

Fernão voltou para a casa de Jean Marie.
Ficou lá vampirizando as pessoas e obsediando Jean Marie, fazendo-o de instrumento para divulgar sua mágoa.

Os dois se afinavam.
Já Frei Damião prosseguiu tentando alertar os que saíram da festa convencidos de que Deus realmente não existia e que o clero era oportunista.
Jean Marie e Fernão sabiam como convencer as pessoas, exaltavam o orgulho, davam muita importância aos que os escutavam.

Usavam muitas frases como:
"Por que Deus não prova a você que existe?", "Por que isso acontece com você?", "Não merece!

Se os representantes de Deus fazem, por que nós não podemos?", "Por que não connosco?", "A vida é uma só! Devemos aproveitar".

Jean Marie acordou no outro dia, sábado, às onze horas.
Bárbara já tinha se levantado.

Foi à sala de refeição tomar seu desjejum.
Os empregados limpavam a casa, a bagunça ainda era visível.

Encontrou somente Francesca, que acabara de tomar seu café e que o cumprimentou sorridente dizendo:
- Bom dia, Louco!
A festa, como sempre, foi maravilhosa.
Vou sair com a baronesa para que Victor a encontre no bosque.

Mais tarde terei um encontro, na hospedaria, com um amigo do conde.
Darei desculpa de que irei comprar alguma jóia, espero ganhar uma.

Jean Marie não respondeu, estava com dor de cabeça.
Tomou seu desjejum e depois foi verificar como estava sendo feita a limpeza da casa.

1 Jean Marie não sabia desse seu dom mediúnico.
Esse facto não depende de um encarnado saber ou não, ele tem.
O leitor poderá compreender melhor esse processo lendo O Livro dos Médiuns, de Allan Kardec, Segunda Parte, Capítulo 15, "Médiuns intuitivos."
(Nota do Autor Espiritual)
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2015 8:36 pm

BÁRBARA

Sábado foi, para eles, um dia de ressaca e, por isso, dormiram muito.
Jean Marie voltou para o seu quarto após o almoço e dormiu a tarde toda.
Não viu Bárbara nem Anatólio.

No domingo, todos levantaram cedo para ir à missa.
Eram maçantes para eles esses cultos, mas tinham medo de afrontar a Igreja, aparentemente todos eram católicos.
Na igreja fingiam orar, seguindo apenas os rituais, distraídos ou prestando atenção nos outros.

O monsenhor celebrou a missa.
Caterine também fingia orar e nem olhou para o celebrante.

O grupo era educado, sabia se portar bem quando necessário.
Retornando à casa, Jean Marie ficou na varanda e pediu que Anatólio ficasse para conversarem.

- Anatólio, você ia agredir o barão?

- Você achou isso, quando pediu que eu me afastasse?
Nunca faria um acto assim!
Estava conversando com aqueles dois convidados quando o barão se aproximou e participou da conversa, falávamos de uma caçada.

Não entendi o seu receio.
Não faria algo que nos prejudicasse.

Jean Marie lembrou que estava tendo uma conversa interessante com Mauricie, quando Michel o alertou.

- Desculpe-me, Anatólio - disse Jean Marie.
Achei que pelo facto de o barão ter importunado Bárbara você poderia ser indelicado com ele.
O que aconteceu na biblioteca?

- Estava na festa atento aos convidados, quando vi Bárbara entrar na biblioteca e o barão ir atrás.
Pressentindo que poderia acontecer algo desagradável, entrei na biblioteca, mas não deu tempo.

Bárbara acertou a estatueta na testa dele.
Os dois gritaram, não sabia a quem acudir quando você entrou.

- Está sempre atento a Bárbara, não é? - perguntou Jean Marie.
Anatólio, esqueça esse amor, ele o fará sofrer.
Está aqui connosco por causa dela ou concorda com nossas ideias?

- Claro que sim, Ateu - respondeu Anatólio sorrindo.
Sou ateu! Quanto a amar Bárbara, não consigo esquecê-la.
Já sofro, amigo.

Jean Marie olhou para ele e concluiu consigo:
"Anatólio não é ateu, está aqui por amar Bárbara e também por ser o terceiro filho.
Esse costume injusto em que somente o primeiro filho recebe título e herança o fez um nascido em lar de nobres sem possuir bens.

E como não gosta de trabalhar, uniu-se a nós e mora aqui.
Viver às minhas custas é bem mais fácil".
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2015 8:36 pm

- Você está duvidando? - perguntou Anatólio estranhando o que disse seu anfitrião.
Sou ateu desde que conversei com você a primeira vez.
Ouvi falar de seu livro, achei coerente.

Ainda bem que aceitei seu convite para conhecer a Toca.
Estou muito bem aqui!

- Acredito! - afirmou Jean Marie.
Você é inteligente demais para crer em tantas tolices.
Pense, amigo, em como lidar com esse seu sentimento.
Bárbara nunca irá querê-lo como homem.

- Ela ama você!
Sim, é verdade, Bárbara o ama!
- Bárbara gosta de mim como amigo - elucidou Jean Marie.
Nós dois nunca seremos um casal.

- Agora, me faça um favor, vá chamá-la, quero conversar com ela.
Deve estar no quarto, não foi à missa.

- Estava indisposta - explicou Anatólio.
Vou bater na porta, se entro sem bater no quarto dela é capaz de me acertar com algum objecto.
Quando Bárbara estava no quarto, colocava na porta a fita azul, avisando para nenhum homem entrar.

Jean Marie ficou esperando, viu Michel passando pelo jardim, acenou para que viesse falar com ele.
- Michel, desta vez não houve excesso, não é?
Alguém foi incomodar os empregados?
- Não, senhor, os empregados não foram incomodados - respondeu Michel.

- Por que me chamou a segunda vez?
Anatólio não estava discutindo com o barão - Jean Marie quis saber.
- Não estava? Melhor assim.
Desculpe-me, mas achei que os dois discutiam, falavam acenando - explicou Michel.

- Não precisa se desculpar.
Se achou que discutiam, agiu certo.
Não quero brigas em minha casa.
Michel, você gosta de trabalhar comigo?

- Gosto sim, senhor - respondeu o jovem empregado.
Ganho bem, viajo conhecendo lugares.
Admiro seus artigos.

- Você os entende? - perguntou Jean Marie.
- Acho que sim, são simples.
Se o senhor quer saber, sou ateu!

- Por quê?
- Por quê? Não sei.
Tenho que saber para ser? - perguntou Michel.
- Não.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2015 8:36 pm

Jean Marie entendeu que Michel se dizia ser ateu, mas nem sabia ao certo o que era realmente ser ateísta.
Com certeza, na primeira dificuldade clamaria por Deus e oraria.

- Você e Caterine ainda estão juntos? - indagou Jean Marie.
- Estamos sim, senhor.
Ela é amante do monsenhor, mas gosta de mim.
Um dia ficará somente comigo.

Michel sorriu, era um jovem bonito, um empregado fiel.
Talvez amasse realmente Caterine, mas sabia que, como era acostumada ao luxo, não ficaria com um simples empregado.
A não ser que ela estivesse economizando para isso.

- Pode ir, Michel - falou Jean Marie.

Bárbara aproximou-se, sentou no banco ao lado de Jean Marie, olhou-o e rogou:
- Desculpe-me!

- Bárbara, você não pode agir assim, agredindo pessoas.
Já pensou se tivesse matado o barão?
O golpe com aquela estatueta poderia bem ter causado um ferimento mortal.

Estaríamos seriamente complicados se isso ocorresse.
Se não quer que ninguém mexa com você, evite as ocasiões.
Já lhe pedi que no auge da festa você se retirasse, mas não para a biblioteca e sim para o quarto e que trancasse a porta.

- Eu ia me retirar - Bárbara tentou explicar -, mas resolvi pegar um livro para ler antes de ir para o quarto.
Porque com o barulho da festa não ia conseguir dormir.

O barão tentou me abraçar, beijar e me disse palavras obscenas.
Fiquei em pânico e nem vi o que fiz.

- Isso é grave, Bárbara - disse Jean Marie.
Aqui na Toca reina a devassidão, é difícil para qualquer um de nós viver de modo diferente.
Ainda bem que o barão não se ofendeu, também estava bêbado.
- Você está aborrecido comigo? - perguntou Bárbara baixinho.

- Bárbara, estamos a sós, porque não me conta o que lhe aconteceu?
Sei pouca coisa sobre você.
Lembro bem de quando a encontrei.

Estava viajando de carruagem e, ao passar por um lago, a vi, era uma menina, estava sentada numa pedra olhando as águas.
Mandei o cocheiro parar, me aproximei de você, indaguei seu nome, você me olhou e respondeu baixinho: "Bárbara".
Senti que estava muito triste.

Perguntei:
"Você quer que eu a leve para sua casa?"
"Não tenho para onde ir", respondeu.

Pensei que fora expulsa de casa por ter se envolvido com algum homem que a teria abandonado, então ofereci:
"Venha comigo, cuido de você!"
Nunca esqueci o seu olhar de medo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Abr 30, 2015 8:36 pm

Tentei tranquilizá-la:
"Não sou nenhum estuprador, pode confiar".
Ofereci-lhe minha mão, você a apertou e veio comigo.
Não disse uma palavra durante o trajecto.

Acomodei-a no quarto dos fundos, dei a chave para trancar a porta e, desde então, permaneceu connosco.

Deve fazer uns doze anos que veio para a Toca.
Você ajuda no meu trabalho, a organizar a casa, não se envolveu com ninguém e de vez em quando fala dos estupros.
Você sabe que Anatólio a ama, não é?

Bárbara permaneceu quieta, de cabeça baixa, escutando-o.

Jean Marie pensou que a amiga não ia responder, mas ela falou baixinho:
- Sei que Anatólio me ama, mas já expliquei a ele que não quero me relacionar com ninguém.
Sou grata a você, Jean Marie, muito grata.

Naquele dia em que nos encontramos, não sabia o que iria fazer, sentia muito medo.
Não tinha escolha:
ou ia com você ou me atirava no lago para morrer.

Naquele momento decidi acompanhá-lo e, se você me estuprasse, eu o mataria e a mim também.

A Toca foi uma bonança para mim.
Fui bem tratada e respeitada, todos me entenderam. Recebi auxílio de você, que é ateu, e, no entanto, foram religiosos os meus carrascos.

Eu o admiro, amo-o e não quero prejudicá-lo.
Vou ser mais atenta.

- Você não me ama, Bárbara - afirmou Jean Marie.
Acho que gosta de mim como de um pai que a protege.
Por que não me fala tudo o que lhe aconteceu?
Talvez melhore essa sua rejeição.

Bárbara ia se exaltar, responder como sempre:
"E que não foi com você!
Ser estuprada três a cinco vezes por dia".

Mas, desta vez, ela resolveu desabafar, olhou para o amigo e sentiu seu carinho.

Falou compassadamente:
- Morava perto de um convento, meu pai era um pequeno avicultor, eu era a filha mais velha, tinha seis irmãos.
Minha mãe ficou muito doente e meu progenitor endividou-se.

Os padres do convento emprestaram dinheiro a nós e não conseguimos pagar.
Minha mãe melhorou, mas a dívida nos preocupava, íamos perder tudo do pouco que tínhamos.

Então, o padre superior do convento disse ao meu pai que eu teria de ir trabalhar lá para pagar a dívida.
Achei que iria trabalhar mesmo, despedi-me de todos e nunca mais os vi.
No convento, fui levada para um quartinho numa parte isolada, onde aconteceu o que falei.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 01, 2015 9:52 pm

Foi um horror!
Era bem alimentada, parecia que queriam me ver nutrida como um animal.
Saía do quarto somente de vez em quando, era levada por um deles ao jardim para tomar sol e respirar ar puro.

Um dia, um dos padres me contou que minha mãe estava bem e que eles disseram aos meus pais que eu fora embora para longe com uma senhora bondosa.

Bárbara fez uma pausa para enxugar o rosto molhado de lágrimas.
Jean Marie sentiu vontade de pedir-lhe para parar, mas achou que a amiga tinha de falar, segurou sua mão e ela continuou:

- Fiquei grávida.
Com três meses tomei ervas para abortar e senti muitas dores.
Estava me recuperando quando um dia, ao ser levada para tomar sol, consegui pegar um pau e bati com força na cabeça do padre que me vigiava, deixei-o caído.

Rapidamente, fui para o pátio, passei pela estrebaria, peguei um cavalo, saí escondida e na estrada galopei, me distanciei rapidamente do convento.
Não sabia para onde ir, passava de uma estrada a outra.
À noite, parei para descansar e o cavalo fugiu.

Quando o dia amanheceu, andei sem rumo, vi o lago, sentei-me numa pedra sem saber o que fazer, quando você apareceu.

Bárbara deu por encerrada suas lembranças, ficou quieta com os olhos parados. Jean Marie perguntou:
- Você não pensou em voltar para casa?
Quando fugiu não quis ir para lá?
Não quer saber de seus familiares?

- Quando fugi, sabia que o primeiro lugar em que me procurariam seria a minha casa e, se me encontrassem lá, provavelmente me matariam, o que para mim seria um alívio.
Os padres não iam querer que eu contasse o que me aconteceu no convento, e se eles soubessem que eu falara algo, com certeza eliminariam quem ficasse sabendo para que não espalhasse o que alguns deles me fizeram.

Depois, estava desonrada, seria vergonha para a família, minhas irmãs não casariam.
E se eu não morresse, não teria escolha, ou iria para um prostíbulo ou para algum convento, dos dois preferia a morte.

- Convento?
Será que eles a mandariam para um convento sem ter vocação? - perguntou Jean Marie.

- Ora, vocação! - exclamou Bárbara.
Num convento, podem-se contar nos dedos os que têm vocação, os que estão lá porque querem realmente servir a Deus, os que são religiosos bondosos.

Os que estão lá por outros motivos são os maldosos.
Numa noite, o superior estava comigo, implorei por misericórdia, pedi piedade em nome de Deus, ele riu e disse que esse Deus não teve piedade dele e que não adiantava eu pedir nada em Seu nome, porque não acreditava Nele.
- Será, Bárbara, que o superior era ateu? - perguntou Jean Marie admirado.

- Não sei, foi o que ele me disse.
Não me lembro bem do que ele me falou, mas parece que os pais dele o venderam para um padre, que o estuprou.
Ele cresceu, ficou no convento, não sabendo o que fazer para viver, tornou-se padre e, para se tornar superior, fez muitas coisas erradas, porque queria o poder.
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Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 01, 2015 9:52 pm

Recordo bem que ele não acreditava no Inferno e nem no Céu.
Acho que isso explica atitudes erradas de certos padres - falou Jean Marie e mudou de assunto:
- Você quer que eu mande Michel até seus pais para saber deles?

- Já fiz isso - respondeu Bárbara.
Sabendo que Michel ia lá perto em uma de suas viagens, pedi a ele que procurasse saber de minha família.

Todos os meus irmãos se casaram e têm filhos, minha mãe faleceu e meu pai casou-se novamente.
Eles acham que morri, é melhor que continuem acreditando nisso.

Jean Marie suspirou, pensou que estava perdendo o controle da casa e dos amigos e, para se certificar, perguntou:
- Alguém mais da casa sabe sua história?
- Já contei minha história várias vezes.
Falar me dá alívio, estou lembrando sempre disso.

- Recordar os momentos ruins é revivê-los.
Precisa recomeçar, Bárbara.
Você precisa ter paz, ser feliz!

- Obrigada, Jean Marie.
Agora, se me der licença, vou deitar, almoçarei no quarto.
- Você está sentindo algum mal-estar? - perguntou Jean Marie preocupado.

- Não, meu amigo, sinto somente a minha velha dor interna - respondeu Bárbara.
- Fique bem, por favor, por mim, por nós que a amamos - pediu ele.
- Tentarei, por você - falou Bárbara, ensaiando um sorriso que mais pareceu uma careta.

Bárbara levantou-se e entrou na casa.

Jean Marie ficou pensando:
"Como acreditar em Deus, num Criador que deixa que uns matem outros ou, pior, permite que façam o que fizeram com Bárbara, que era uma jovenzinha?
Só se existisse mesmo essa 'tal' de reencarnação.

Aí haveria uma explicação.
O melhor é pensar que morremos, acabamos e que Deus não existe.
Assim, não somos responsáveis.
Bárbara com certeza nunca esquecerá o que lhe aconteceu e não se envolverá com mais ninguém.

Como sexo complica a vida da gente!
Não sei por quê, não gosto de ter relações sexuais com ninguém.
Não vejo graça!

Mas não tenho motivos como Bárbara para não gostar, nunca ninguém me forçou, não me recordo de nada que pudesse ter me prejudicado.
Não me sinto homem como os outros.
Sou o que sou e pronto, estou bem assim."

Chamaram-no para o almoço.
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O ATEU -  - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho Empty Re: O ATEU - - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 01, 2015 9:52 pm

As pessoas acomodaram-se na sala de refeições.
Jean Marie sentou-se à cabeceira, como convinha ao anfitrião.

Antes de mandar servir, ele falou:
- Vou aproveitar que estamos reunidos para conversar com vocês.
- É sobre Bárbara?
Você ficou muito bravo com ela? - interrompeu Maurícia preocupada.

- Não, minha querida, não fiquei bravo com ela e nem é esse o assunto, mas, já que foi mencionado, peço-lhes novamente que a protejam sempre.
Quando houver algum excesso, interfiram, socorrendo-a.

Quero lhes falar sobre as finanças.
A vocês, que moram aqui, e aos que aqui se hospedam, lembro que todos devem cooperar.
- Você não está bem financeiramente? - perguntou Joana, temerosa.

- Com a Toca, tudo bem - respondeu Jean Marie.
Com a renda que obtenho da propriedade, pago os empregados, que são muitos para nos atender.
Não posso tirar mais dinheiro do que a Toca rende, se o fizer, em um ano estaria arruinado.

As festas e a mordomia em que vivemos são caras demais.
Posso até sustentá-los, mas me irrito com abusos.
Vocês precisam colaborar mais!
-
Eu e Victor - justificou-se Francesca - passamos somente alguns dias do mês aqui, e temos família.
- Não é motivo para não cooperar - opinou Caterine.
Vocês vêm aqui, se divertem e obtêm desse lazer muitas coisas.

- Não tanto, a baronesa não dispõe de muito - falou Victor.
- Você, Louco, tem razão, devemos colaborar mais.
Fique com este anel.

Francesca estendeu a mão com o anel para Jean Marie, achando que ele não o aceitaria, era a jóia que a baronesa lhe dera e pedira que não usasse por ali.
Mas Jean Marie pegou-o, iria guardá-lo.

O casal amigo estava muito abusado.
Eles eram os que menos contribuíam.

- Vou pedir às minhas Mimis para nos mandarem mantimentos e vinho - disse Estêvão.
E depois vou lhe dar um dinheiro que ganhei de outra Mimi.

- Estêvão, você não tem jeito - falou Joana rindo.
Chama todas as suas senhoras amantes de Mimi.
Se um dia me chamar assim, quebro sua cabeça.

- Chamo-as assim para não errar o nome - respondeu Estêvão.
Começaram a rir comentando factos engraçados.
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O ATEU -  - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho Empty Re: O ATEU - - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 01, 2015 9:53 pm

- Voltemos ao assunto! - gritou Jean Marie que, depois de todos ficarem quietos, continuou a falar:
- Quero que contribuam, e ainda hoje, tenho pouco dinheiro no cofre.
Não falta muito para o inverno e com as temperaturas muito baixas não há como fazermos festas, e preciso de dinheiro, também porque dentro de dez dias irei a Paris, lá devo ir a duas festas, onde falarei de minhas obras.

- Por falar em obra, quando vai escrever outro livro? - perguntou Anne.
- Já estou escrevendo, devo trabalhar mais nele no inverno - respondeu o anfitrião.
Não mude de assunto, por favor.

- Eu vou contribuir, Ateu - disse Caterine.
Irei com você a Paris, mas ficarei somente uma semana.

O monsenhor não quer que me afaste por muito tempo.
É melhor fazer o que ele quer.
Tem nos rendido bastante esse meu amante.

- Você, Caterine, é a que mais tem contribuído - falou Jean Marie.
Quem irá comigo a Paris?
Vou ficar hospedado, como sempre, na casa da Emília, estou planeando ficar uns quarenta dias.

- Emprestando minha casa já contribuo, não é? - perguntou Emília.
Jean Marie olhou para Emília, lembrou que a conheceu numa festa e ela o convidou a se hospedar em sua casa.

Quando ele aceitou e foi, ela explicou que necessitava de dinheiro:
ele pagou a hospedagem e também a convidou a visitar a Toca.

Emília sabia de factos importantes e obscuros de certas pessoas e esses conhecimentos lhe rendiam alguma soma.

- Ora - falou Joana -, você, Emília, é viúva, herdou somente aquela casa de seu marido.
Se não fosse Jean Marie ajudá-la, com certeza já a teria vendido.
Hospeda-nos, mas, para comer lá, temos de comprar os alimentos.
Você deveria escolher melhor seus amantes, está agora envolvida com um homem casado que nem dinheiro tem.

- Gosto dele - respondeu Emília -, mas não dispenso os convidados das festas.
Vou tentar contribuir mais.

- Basta! - exclamou Jean Marie batendo a mão na mesa.
Vou mandar servir o almoço.
O que tinha para falar já falei, quero resultados.

Ficaram quietos e, com certeza, como das outras vezes, uns contribuiriam, outros se esquivariam de fazê-lo.

Estavam acostumados àquelas cenas.
Sempre que Jean Marie achava que abusavam de sua hospedagem, ele exigia contribuição.
Ele tinha dinheiro, e todos do grupo sabiam que vinha de uma fonte perigosa: a chantagem.

Almoçaram e o grupo se dispersou.
Francesca e Victor saíram para seus encontros e Jean Marie entrou no quarto em que estavam alojados, que era o de Bárbara.
Fechou a porta, pegou no bolso um molho de chaves e, em cada uma, havia uma marca.
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O ATEU -  - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho Empty Re: O ATEU - - António Carlos / Vera Lúcia Marinzeck de Carvalho

Mensagem  Ave sem Ninho Sex maio 01, 2015 9:53 pm

"Tive uma boa ideia quando dei a cada um deles um baú para guardar seus pertences íntimos e fiz uma cópia das chaves para mim.
Aqui estão os baús de Francesca e Victor."

Os baús não eram grandes, eram mais caixas de madeira.
Abriu o de Francesca, continha cartas do barão e de outros dois amantes e algumas jóias.

"Francesca não guarda dinheiro, com certeza gasta tudo o que ganha."
Abriu a caixa de Victor, tinha pouca coisa:
algum dinheiro e um retrato pequeno, pintado a óleo, dos três filhos.

"Que crianças lindas!
E aqui está o baú de Bárbara.
Não deve ter nada, mas como estou olhando vou abrir."

Nos pertences de Bárbara, havia somente duas folhas de papel, seus artigos com sua letra, uma flor murcha que ele lhe havia dado, um lenço seu e um frasco de veneno.
"Bárbara pensa realmente que me ama!"

Saiu daquele quarto e entrou no que Emília dividia com as outras.
Não encontrou nada. Não quis ver os outros.
Foi se reunir ao grupo, a maioria de seus amigos estava no salão esperando os convidados para o sarau e para conversarem.

A tarde e a noite foram agradáveis, divertiram-se como sempre.
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