LUZ ESPÍRITA
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Série Lucius - O FIO DO DESTINO / Zibia Gasparetto

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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Nov 14, 2012 10:50 am

O FIO DO DESTINO
ZIBIA GASPARETTO

Ditado pelo espírito Lucius

Sinopse: Em cada minuto, uma escolha.
Em cada escolha, um resultado.
Em cada resultado, uma experiência.
Experimentar é viver.
No emaranhado das sensações, o reconhecimento do poder de criar nossas próprias vivências, nos limites das leis da vida.
Para uns é um jogo, para outros é carregar a espada da luta no fio do destino.


ZIBIA GASPARETTO

Prólogo...

Hoje, após tantos anos, retorno ao antigo lar abandonado, buscando encontrar ali as dulcíssimas emoções de antanho.

Entretanto, a poeira do tempo varreu a sede das minhas lembranças e o progresso estabeleceu novo ambiente no mesmo local.

A vida nos auxilia, oferecendo-nos oportunidade de nos desapegarmos dos objectos, das formas materiais, chamando-nos para a profundidade da essência pura.

Estabelecendo em nós apenas a destilação dos nossos sentimentos, transforma-os em precioso perfume.

Na tela de minha mente, deslizam nesta hora, como o desenrolar de uma película cinematográfica, todos os acontecimentos dramáticos e emotivos vividos naqueles tempos, e – curiosa sensação – meus sentimentos registam todas as emoções passadas que pareciam adormecidas no esquecimento, sepultadas pela constante necessidade de superar o sofrimento, de aprimorar o espírito, na luta, pela evolução.

As emoções se avolumam e eu, colocado frente a frente com as recordações, vivo-as de novo, na maratona maravilhosa e profunda da mente.

Dir-se-ia que, de repente, um véu tivesse sido retirado do meu cérebro, desdobrando minha capacidade de memória, retrocedendo no tempo, penetrando os mistérios do passando, sentindo, como um encantamento, as emoções de antanho.

Assim, continuo olhando dentro de mim, e rio quando revivo um momento feliz;
sofro e choro quando revivo um trecho doloroso.

Mas, apesar de tudo, sinto útil esse mergulho no torvelinho das lutas passadas, porque, agora, consciência um pouco mais desperta do que então, vejo também os erros cometidos, as atitudes impensadas e imprudentes que tantos sofrimentos causaram mais tarde.

Contudo, na gloriosa apoteose da introspecção emotiva, apesar dos múltiplos sofrimentos revividos, uma luz nova e serena me domina o ser, oferecendo-me uma segurança nunca antes pressentida e uma profunda confiança no futuro.

Dessa maneira, talvez minhas lembranças possam ser úteis a outras criaturas, pela experiência que representam, porque, na verdade, poucos na vida terão amado, poucos não terão confiado, poucos não terão sido traídos, desprezados, adulados, perseguidos, e nenhum certamente terá vivido sem o sofrimento.

Como as Leis que regem os destinos dos seres são imutáveis porque perfeitas, a evolução do espírito se processa lenta e seguramente.

Na tela das experiências de cada um os deslizes e as conquistas se assemelham bastante.
Por isso de alguma valia será certamente a experiência de um amigo que deseja de alguma forma perseverar no bem e continua lutando duramente, entusiasticamente, para sua libertação.

Estes são, pois os objectivos a que proponho compondo esta obra.
Dissipar as ilusões e procurar mostrar a realidade, porque, como já nos disse o excelso mestre Jesus, ― A verdade nos fará livres.


Última edição por O_Canto_da_Ave em Qua Jan 02, 2013 10:41 pm, editado 1 vez(es)
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Nov 14, 2012 10:57 am

Capítulo I

A carruagem rodava mansamente, bamboleando ao som cadenciado do matraquear dos cascos dos animais que castigavam ritmicamente as pedras do calçamento.

Paris, no ano de 1891, era uma bela cidade.
As crises políticas que atravessara na época das mudanças de sistema de governo trouxeram, à esplêndida capital, os homens mais eminentes, as figuras mais respeitáveis do cenário cultural do país.

Era justo mesmo que a república, pela sua maneira liberal de exercer o poder, favorecesse a livre iniciativa, incentivando as pessoas cultas a cerrarem fileiras nas disputas do Senado e da Constituinte.

Alem disso, Paris continuava a manter sua tradição em todo o mundo nos sectores de elegância, das artes e da literatura.
Paris, no ano citado, era a capital do mundo.
A noite estava cálida e bela.
Pelas cortinas abertas, suave aragem penetrava causando agradável sensação.

Eu, porém, um tanto indiferente, permanecia sentado no banco acetinado do carro, ligeiramente entediado.
Com vinte e cinco anos, esgotara toda a capacidade emotiva que o dinheiro podia comprar.
Único filho homem de abastada família, tinha todos os desejos satisfeitos.

As mulheres rodeavam-me, alimentando-me a vaidade, e o espelho contava-me que era possuidor de um tipo físico atraente.
Alto, cabelos negros, naturalmente ondulados, moreno pálido, barba cerrada que, embora bem raspada, sombreava-me o rosto, tornando-o másculo.
O queixo, ligeiramente pronunciado, denotava carácter dominante, e os gestos, o tom de voz, revelavam o hábito de ordenar.

Nem sempre eu fora um indiferente.
Sensível e emotivo, um tanto sentimental na adolescência, fora-me modificando ao contacto com a sociedade.
O excesso de facilidades que encontrava por toda parte, na realização dos menores desejos, sepultava os primeiros anseios, sob as frias cadeias sociais, criadas pelas aparências.

Meus pais residiam em cidade próxima.
Afastara-me do lar para estudar e conseguir bacharelar-me em leis.
O sonho dos meus resumia-se nesse diploma que, quando em minha primeira juventude, eu transformara em ideal, mas agora, cursando o quarto ano da Sorbonne, não lhe dava grande importância.

Estudava, sim. Tinha até cerca facilidade para aprender, mas a noção do ideal desvanecera-se.
Agora, queria terminar o curso para conseguir o título de Doutor, cumprindo um dever de honra para com os meus e satisfazendo também minha vaidade de regressar vencedor.

Longe estava o tempo em que sonhara legislar no Congresso, que idealizara trabalhar pelo bem-estar da colectividade, dando-lhe leis mais sábias e condizentes com as necessidades do progresso.

Distante estava de mim a lembrança dos ideais sonhados. Dirigia-me à ópera para assistir a um espectáculo de gala.
Era a estreia de Madame Germaine Latiell, soprano consagrada pela crítica contemporânea, arrancando aplausos entusiastas das mais selectas plateias do mundo.

Na realidade, eu não ia ao teatro propriamente pela música, nem pelo espectáculo em si, mas pelo hábito social de aparecer sempre que alguma estreia importante engalanasse os meios representativos da alta sociedade de então.

Geralmente, comparecia sozinho a esses espectáculos.
Ocupava uma frisa bem localizada e fleumaticamente assistia ao programa, sem muitos arroubos e entusiasmo.
Apesar de estar constantemente envolvido em aventuras amorosas, jamais comparecia em público acompanhado, o que de certa forma criava ao meu redor uma auréola de inconquistável.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Nov 14, 2012 10:57 am

Agradava-me mostrar-me indiferente, superior e distante.
Assim, com o decorrer de algum tempo, tornei-me realmente insensível e, o que eu simulara apenas por vaidade, acabou sepultando minha sensibilidade, encobrindo-a.

Apesar disso, a bem da verdade devo esclarecer que o traço marcante da minha personalidade era a honestidade.
Odiava mentir, e jamais perdoava a quem errasse ou fraquejasse em qualquer circunstância.

Nesse particular era irredutível.
Mas o indiferentismo com que me revestira encobrindo as emoções, sufocando-as como fraquezas condenáveis, tinha me tornado há vida um pouco tediosa.

Dia a dia sentia-me mais sem vontade para buscar o ideal da profissão que prazerosamente resolvera seguir.
À força de tentar suplantar a maioria, de ser auto-suficiente, arrojara de mim o desejo de trabalhar em benefício da colectividade.
Por isso, dirigia-me ao teatro sem a alegria que minha situação de moço rico e disputado, naquela fase tão entusiasta da mocidade, deveria despertar.

Ouvindo o bimbalhar dos sinos da catedral, senti-me um pouco inquieto.
Não gostava de atrasos.
A falta de pontualidade parecia-me falta de responsabilidade.
Felizmente, deveríamos estar perto já.
De facto, dali a instantes o cocheiro parou o veículo e pressurosamente desceu da boleia para abri a portinhola com a usual mesura.

Desci um tanto apressado, atirei-lhe algumas moedas e a passos rápidos entrei no teatro.
Os corredores regurgitavam e ouvia-se um zunzum de palestras a meia voz, de despedidas e acenos, pois que as primeiras luzes já começavam a ser apagadas lentamente, como de praxe.

Cumprimentando com ligeira inclinação de cabeça alguns conhecidos que encontrei pelo caminho, conseguir por fim chegar à porta do meu camarote.

Girando o trinco delicadamente, entrei.
Imediatamente senti-me contrariado.
Vislumbrei um pedaço brilhante de um rico vestido e parei incontinenti.
A dama virou surpreendida a cabeça para a porta.
Friamente desculpei-me e saí.
Com certeza entrara errado.

Coisa muito desagradável, mas que se justificava pela pressa com que chegara.
Na porta estava o número da frisa com meu cartão fixado no lugar correspondente.
Minha irritação aumentou.
Por lamentável equívoco tinham ocupado meu camarote.
E o espectáculo já se ia iniciar.

Resolutamente retrocedi e entrei novamente na frisa.
Situação desagradável pensou, principalmente porque a dama estava só e seria indelicadeza de minha parte manda-la sair.
Novamente ela me olhou, e desta vez pude observar que era jovem.

Seu olhar de altivez parecia interrogativo.
Senti-me como se eu fosse o intruso.
Sustentei seu olhar, que não se desviou.
Parecia esperar que eu explicasse minha presença ali.

Havia tanto orgulho naquele olhar que minha irritação cresceu, e foi com secura que disse:
— Senhora, certamente não conseguiu encontrar seu camarote e assim, acomodou-se no meu.
Permita-me que chame o cicerone para indicar-lhe onde deverá acomodar-se.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Nov 14, 2012 10:57 am

Vi, apesar da obscuridade reinante no teatro, que seu rosto coloriu-se e empalideceu sucessivamente quanto seu olhar tornou-se mais brilhante.

— Isto é um abuso intolerável!
Como ousa dizer-me tais palavras?
Pensei que na França o cavalheirismo tivesse sobrevivido no regime republicano.
Enganei-me! Peço-lhe que me liberte da sua presença.
Desejo assistir ao espectáculo sozinha!

Surdo rancor brotou dentro de mim.
Petulante jovem!
Além de não se encabular com minha falta de cortesia, me expulsava como a um criado!
Furioso, saí. O espectáculo estava começando.
A orquestra já tocava o prelúdio.
Fui procurar o gerente.
Assim que me viu, correu para mim com a mão estendida.

— Sr. Jacques! Procurei-o por toda parte.
Acreditei que Vossa Senhoria não tivesse vindo hoje.
Aproveitei para desabafar meu mau humor.
— O que significa Sr. Latorre, o incidente desta noite?
Quem permitiu que meu camarote fosse ocupado sem minha autorização, além do mais por uma mulher?

— Para isso o procurava.
Como não o vi entrar...
Fiquei na porta a espera até a poucos minutos.
Agarrando-me pelo braço, conduziu-me à pequena sala onde estava situado seu gabinete, enquanto dizia:
— Um caso desagradável, Sr. Jacques, mas não tivemos culpa.
Isso pode garantir.
Existem circunstâncias às quais não conseguimos fugir.
Devemos a Vossa Senhoria nossas desculpas e algumas explicações.
Mas entremos em meu gabinete.
O que vou dizer não pode ser ouvido por terceiros.
Acomode-se, Sr. Jacques.

Sentei-me visivelmente nervoso.

— Nada justifica sua falta de honestidade.
Afinal já havia reservado a frisa com bastante antecedência. E porque preço!
Ouvindo a alusão ao preço, o gerente pareceu ligeiramente embaraçado.
É que se habituara a negociar os melhores lugares, cedendo-os a quem melhor lhos pagasse, embora o preço fosse, por lei, taxado igualmente nos ingressos.
— Quanto a isso, podemos sanar as dificuldades, devolveremos o seu dinheiro, como é justo.

Senti-me mais irritado. Levantei-me.

— Até agora não ouvi nada que explicasse o acontecimento, a não ser que o senhor tenha encontrado quem lhe oferecesse mais pela frisa e tenha tido a desonestidade de vendê-la duas vezes!
Agarrando o assustado homenzinho pelo gasnete, continuei:
— Mas isto irá ao conhecimento do chefe de polícia!
— Não, Sr. Jacques! Não faça isso!
Quer arruinar-me? Já disse que posso explicar tudo!
Por favor!... Largue-me. Deixe-me falar!...
— Está bem. Mas que sua explicação seja satisfatória!
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Nov 14, 2012 10:57 am

O Sr. Latorre tirou um lenço do bolso e enxugou a testa molhada de suor.

— Eu bem sabia que este caso iria aborrecer-me.
Mas, Sr. Jacques, o senhor tem razão realmente.
É frequentador habitual do teatro e sabe que jamais houve caso semelhante!
Acontece que hoje, pouco antes de o espectáculo começar, recebi um portador do governador ordenando que reservasse um lugar especial para sua convidada.

Com o devido respeito, respondi-lhe que a casa já estava tomada e que não seria mais possível a reserva do lugar.
Irritado, respondeu-me que o problema era meu e que eu deveria solucioná-lo.
Pode Vossa Senhoria calcular minha situação!
Tentei objectar ainda, mais meu interlocutor foi positivo.

Disse tratar-se de uma nobre dama inglesa que viajava incógnita e que manifestara o desejo de assistir ao espectáculo sem que seu nome aparecesse.

Disse-me ainda que meu emprego na gerência do teatro dependia do acolhimento que dispensasse à ilustre dama.
Assim, Sr. Jacques, começou esse problema.
Pouco depois, chegou a nobre senhora e disse-me que desejava escolher um bom lugar!
Oh, Sr. Jacques! Como se fosse possível tal escolha!

Mas ela me tratou como a um lacaio e, ao chegar frente ao camarote de Vossa Senhoria, disse-me:
― Ficarei com este. Pode ir.
— Coloque-se em meu lugar, Sr. Jacques.
O que poderia fazer?
Corri à porta para preveni-lo, mas infelizmente nos desencontramos.

— É inacreditável! Se fosse à época da monarquia, compreender-se-ia, mas hoje?!
Em plena era republicana!
Pois fique sabendo, Sr. Latorre, que não aceito esta imposição.
Vim ao espectáculo e paguei alto preço pelo meu lugar.
Não há outra frisa que essa senhora seja convidada a ocupar, portanto consinto que ela assista ao espectáculo da minha frisa, mas eu é que não ficarei sem assisti-lo.
Vou imediatamente para o meu lugar.
A ópera já teve início.

O gerente fez um gesto de impotência.

— Por favor, Sr. Jacques! Não me arruíne!
Preciso deste emprego!
Estamos dispostos a devolver o dinheiro, a reservar outro lugar graciosamente em outro espectáculo.
Faremos o que o senhor desejar!
— Nada disso, Sr. Latorre.
Estamos em um país de liberdade, onde o proteccionismo e o abuso acabaram.
Vou assistir ao espectáculo da minha frisa!
Passe bem, Sr. Latorre!

Saí.
Fechei a porta rapidamente para fugir aos protestos e aos rogos do pobre homem.
Apressado, voltei ao meu camarote e, sem bater levemente, como era de praxe, entrei.
A jovem senhora estava com o rosto voltado para o palco e voltou-o para a porta e assim que pressentiu minha presença.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Nov 14, 2012 10:58 am

Percebi o pequeno contrair de sobrancelhas e um ligeiro gesto de contrariedade.
Senti-me mais calmo.
Se aquela mulher orgulhosa e pedante pensava fazer na França o que certamente faria em sua terra, eu lhe provaria que estava enganada.

Sentei-me em uma cadeira um passo atrás.
Mas do lado oposto ao seu.

Olhou-me e murmurou baixinho:
— O que significa isto?
O senhor novamente?
Curvei ligeiramente a cabeça e respondi-lhe algo irónico:
— Poderia pergunta-lhe a mesma coisa, uma vez que esta frisa é minha.
Entretanto, para que não ajuíze mal do nosso cavalheirismo, vejo-me constrangido a convidá-la a assistir daqui ao espectáculo.

Seu olhar fuzilou-me rancoroso.

— Saia imediatamente!
Sua voz, que a raiva parecia metalizar, soou autoritária.
— Pelo contrário, minha senhora, ficarei.
Nada nem ninguém me farão desistir do espectáculo.
— O senhor pagará por isso.
No primeiro intervalo, mandarei enxota-lo daqui.
— Se lhe agrada o escândalo, a mim não impressiona nem molesta.
Faça o que lhe parecer melhor.

Ela nada mais disse.
Voltou-se para frente e pareceu concentrar toda sua atenção no palco.
Procurei fazer o mesmo, porém minha atenção estava voltada para aquela mulher e disfarçadamente busquei na semi-obscuridade do ambiente observa-la melhor.

Apesar de meu orgulho desejar encontrar nela motivos de crítica, não pôde deixar de reconhecer a beleza do seu perfil delicado, o belo tom dourado de seus bastos cabelos, a classe, a distinção de suas roupas e atitudes.

Com o decorrer dos minutos, cheguei a esquecer o local onde nos encontrávamos.
Procurava estudar-lhe a fisionomia, que se transformava extraordinariamente sentindo as emoções do espectáculo.

Quem era aquela mulher? Por que o incógnito?
Alguma aventura de amor ou alguma intriga política?
Qual o mistério que a envolvia?
Devia ter muito prestigio.
Suas maneiras demonstravam que estava acostumada a mandar sem restrições.

Criatura antipática. Merecia uma lição.
O pano baixou ao término do primeiro ato.
As luzes parcialmente se acenderam e ela levantou-se arrepanhando a saia com um gesto gracioso.

Lançando-me um olhar rancoroso, saiu do camarote.
Remexi-me no lugar.
Aonde teria ido? Levantei-me e dirigi-me ao fumoir.
Alguns amigos me cercaram imediatamente.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Nov 14, 2012 10:58 am

— Jacques. Quem é aquela?
— Criatura admirável!
— Como é linda! — Onde a descobriu?

Irritado com a avalancha de perguntas, principalmente porque a elogiavam tanto, respondi mal-humorado e de maneira evasiva.
Minha atitude provocou da parte deles protestos e risadas.

— Quer ocultar-nos, hein?
— Não confia nos amigos?
— Nós descobriremos tudo, pode deixar.
— Não estranhem companheiros. Jacques é o homem dos mistérios.

Escondi meu aborrecimento.
Seria pior se eles o notassem.
Depois de alguns minutos de palestras, que procurei cuidadosamente desviar da ilustre desconhecida, retornei ao camarote.
Estava vazio. Esperei enervado que a musica reiniciasse.
De repente, notei que o programa era insípido.
Irritante mesmo.
Tive ímpetos de sair, ir-me embora.

Mas... E se ela voltasse?
Haveria de rir-se de mim, julgando-me derrotado.
Contudo os minutos se escoavam e ela não voltava.
Teria ido embora? Nesse caso, perdera para mim.
Meu orgulho sentia-se satisfeito.
Apesar disso, ao menor ruído, voltava-me para a porta sobressaltado.

Ao término do segundo acto, eu já não tinha mais duvidas: ela havia se retirado.

Saí para o corredor, que regurgitava.
Comentava-se o sucesso da estreante.
Alguns conhecidos perguntaram minha opinião.
Era exímio em matéria de crítica teatral.
Embaraçado, notei que nem sequer prestara atenção ao espectáculo.

À noite para mim não fora agradável.
Apenas por uma questão de hábito assistira até o final.
Sentia-me contrariado.
Não estava acostumado a ser tratado com tal rudeza.

Aquela mulher preferira sair, perder o espectáculo, que tanto prazer parecia lhe causar, a permanecer comigo por mais tempo dentro da frisa.

Contudo, experimentava também alguma alegria: eu a trato com uma dureza que certamente ela não conhecia.

Estávamos quites.
Saí do teatro assim que o pano baixou.
Recusei alguns convites para cear com amigos. Fui para casa.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Nov 14, 2012 10:58 am

Capítulo II

Durante os dias que se seguiram fui envolvido por uma série de compromissos.

Não tinha tempo de meditar sobre a ocorrência do teatro e quase a esqueci.
O ano lectivo estava no fim e eu precisava estudar para vencer os exames.
O incidente do teatro, visto agora, já com mais serenidade, provocava-me o riso pelo que tinha de grotesco.

Somente a curiosidade fazia-me recordar a figura da desconhecida.
Qual a sua identidade?
No tempo da monarquia e do império, as ligações amorosas e escandalosas dos mais nobres senhores do poder se multiplicavam, e até nossos dias chegam às notícias sobre as favoritas da corte.

Com o advento da república, apenas os homens tinham sido substituídos, porque os chefes de governo continuavam também a manter as suas concubinas, dando-lhes autoridade e prestígio.

Poderia aquela mulher ser também uma daquelas? Jamais conseguiria saber.
Passei nos exames e numa fria manhã de inverno viajei rumo à casa paterna.
Ia satisfeito e orgulhoso.
Rever os meus e ao mesmo tempo apresentar-lhes as boas notas conquistadas.

Mais dois anos e estaria bacharel! Doutor!
Depois, bem... depois resolveria que rumo dar à minha vida.
Quando a carruagem parou frente aos portões de nossa casa, estes abriram-se de par em par.
Escrevera avisando-os da minha chegada.

Era esperado certamente.
Foi com alegria que revi os belos jardins da minha infância.
Na entrada do antigo, mas confortável palácio, rostos amigos e carinhosos me esperavam.
Minha mãe, senhora que os anos não conseguiram envelhecer, erecta e altiva, como sempre, apareceu na soleira.

Esperou que eu a abraçasse e deu-me as boas-vindas.
Assim era minha mãe.
Boa criatura, mas um tanto inibida para demonstrar sua afectividade.
Não acariciava nunca, mas eu sabia que adorava ser acariciada.
Muito cumpridora dos seus deveres para o lar e a família.
Pelos seus olhos passou um lampejo de ternura quando a abracei.

Minha jovem irmã correu para mim, apertando-me nos braços, beijando-me carinhosamente nas faces.

Lenice era o oposto de minha mãe.
Seu temperamento afectuoso e amigo expandia-se com facilidade, demonstrando claramente a sensibilidade emotiva do seu espírito.

— E papai? — Indaguei, procurando descobri-lo com olhar.
— Precisou sair muito cedo, mas logo estará de volta.
Agora vamos, filho precisa comer alguma coisa e descansar.
Sorri. A viagem fora curta e não havia necessidade de repouso.

Pelo contrário, desejava rever os pormenores de minha infância, percorrendo meus sítios preferidos.
Porém eu já não era a criança de antigamente e não podia correr como um garoto pelas dependências amigas.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Nov 14, 2012 10:58 am

Contive a impaciência e entramos na casa.
Nada mudara! O ambiente familiar permanecera inalterado.
Os mesmos móveis antigos dispostos da mesma maneira, os belos castiçais de prata luzindo impecáveis, os cristais e os bibelôs brilhando como sempre e o agradável odor característico de açafrão do qual mamãe tanto gostava.

Tomamos chá com bolos na sala de estar e palestramos agradavelmente.
Somente ao jantar foi que revi a figura erecta e nobre do meu querido pai.
Ele pareceu-me um tanto mudado. Um pouco mais envelhecido, talvez.
Mas sorriu e palestrou normalmente connosco, inteirando-se das minhas actividades na capital.

Apesar da sua austeridade, meu pai era um homem bom e compreensivo.
Descendente de família nobre estirpe, soubera amoldar-se aos costumes modernos e, lançando-se no mundo das altas finanças, conseguira multiplicar o exíguo património da família.

Se for verdade que os abusos da corte da monarquia e no império deram lugar às loucuras e à sanha revolucionária, onde a ignorância comandava as massas e por essa circunstancia criaturas incultas viram-se guindados a altos postos administrativos, passados alguns anos, serenados os ânimos, pesadas as consequências, gradativamente, e por lógica cultural, os homens cultos e competentes foram sendo procurados e recolocados frente às responsabilidades administrativas.

Assim, apesar de tudo, voltava o poder às mãos da elite do país. O que é natural, porque os pobres de então eram miseráveis demais e embrutecidos pelos trabalhos rudes.

A classe média possuía, em sua maioria, uma estreiteza de vistas meramente deplorável, deliberadamente combatendo a educação e o progresso.

Nossa família era, pois muito conceituada e papai um homem efectivamente culto e respeitado.
Também aprendêramos a respeitá-lo dentro do lar.
Suas palavras compreensivas e serenas eram sempre acatadas sem discussões.

Às nove horas subi ao meu aposento para dormir.
Um bem-estar agradável me dominava pelo regresso ao lar, e eu antegozava já as delícias de um bom sono na velha cama macia.
Entrei. Os objectos de uso pessoal que trouxera já haviam sido dispostos nos lugares usuais e a roupa arrumada nas gavetas.

Preparei-me e deitei. Dormir.
Pouco depois acordei sobressaltado: alguém batia apressado na porta do meu quarto.
Meio entontecido ainda, fui abrir.
Marie, a velha e dedicada serva, parecia transtornada.

— Sr. Jacques!... Sr. Jacques!
Depressa... Por favor, depressa!!
— O que houve Marie? Que aconteceu?
— Oh! O Sr. Latour! Foi acometido de um ataque!

Senti um frio incontrolável, enquanto meu estômago revoltava-se.
Sem ouvir mais nada, avancei pelo corredor escuro e em poucos instantes alcancei os aposentos de meus pais.

Empurrei a porta entreaberta e angustiado vislumbrei a cena dolorosa:
Meu pai, sentado sobre a poltrona, cabeça pendendo para frente, braços abandonados e inertes ao longo das partes laterais da cadeira.

Minha mãe, em trajes de dormir, pálida e aflita, chamando-o pelo nome, friccionando-lhes as mãos, a testa, numa tentativa desesperada para reanimá-lo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Nov 14, 2012 10:59 am

No banquinho a seus pés, minha irmã, longas tranças, pendentes descuidadas sobre a camisa azul, não conseguia dominar o pranto.
Avancei, sentindo aumentar meu mal-estar.

— O que houve, mamãe?
— Não sei explicar. Ele parecia bem.
Conversávamos em voz alta, eu no quarto de dormir, ele aqui.
Disse-me que precisava tratar de um assunto urgente e que ainda se demoraria em deitar.
Pouco depois, chamou-me com voz rouca e aflita.
Quando entrei na sala, já o encontrei caído na poltrona.
Fiz o possível para reanimá-lo.
Martin já foi procurar o doutor Flaubert.

Levantei o rosto tão querido de meu pai.
Estava com olhos entreabertos, boca cerrada fortemente, corpo gelado e endurecido.
Senti-me aterrado.
Jamais presenciara cenas dolorosas.

Fugia das doenças e dos doentes com verdadeiro terror, não por covardia propriamente, mas por sentir-me impotente para sanar o mal e desgostava-me o sofrimento humano.

— Acho melhor remove-lo para a cama – volveu minha mãe.
Afrouxando a roupa, deixando-o mais descansado, quem sabe melhorará.

Com muito esforço, conseguimos transporta-lo para sua cama e mudar-lhe a roupa.
Quando chegou o médico, três pares de olhos ansiosos aguardavam o diagnóstico.

— Congestão cerebral — disse-nos o doutor Flaubert um tanto preocupado.
A moléstia era muito grave.

Nos dias que se seguiram, lutamos desesperadamente para vencê-la, mas não conseguimos.
Após vinte dias de vigília e sofrimento, meu pai se foi, deixando-nos sós com a nossa dor.
Contara passar dias alegres juntos aos meus e encontrara dor e sofrimento.

Meu pai permanecera quase todo o tempo inconsciente, tendo tido poucos instantes de lucidez, quando nos olhava com tristeza infinita.

Nessas ocasiões, demonstrava desejo de falar, mais não conseguia.
Dias após o seu passamento, recebi a visita do procurador que administrava nossos haveres, naturalmente dirigido por meu pai.

Foi então que compreendemos a causa da súbita moléstia que o acometera.
Seus últimos empreendimentos, mal sucedidos, haviam consumido quase todo o património que ele em outros tempos fizera multiplicar.

Feitas as contas, os acertos, verificamos que ficáramos reduzidos a pouca coisa, que certamente não daria para manter o nível de vida ao qual nos habituáramos.

Fora naturalmente essa certeza que o preocupara, forçando-o a arriscar vultosas quantias em negócios poucos seguros, mas que representavam única oportunidade para uma recuperação.

Quando finalmente viu inutilizada sua ultima esperança, ao tomar conhecimento dessa notícia, sua comoção foi tão forte que o abateu.
Reunidos em nossa bela sala de estar, mamãe, minha irmã e eu procurávamos dar um rumo a traçar planos para nosso futuro.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Nov 14, 2012 10:59 am

Minha mãe, triste mas resoluta, resolveu:
— Venderemos esta casa, iremos para uma menor. Talvez em Paris.
Assim pouparemos maiores despesas com seu alojamento e estaremos reunidos.
— Mas, mamãe, talvez agora eu já não possa estudar.
— Nem pense nisso, meu filho.
Agora mais do que nunca você precisa conquistar o diploma.
Depois, seu pai queria vê-lo formado.

A ideia de minha mãe não me seduzia.
Eu estava profundamente humilhado com o golpe que recebera.
Ser pobre era pior do que ser doente.

Morar em uma casa modesta, não poder mais frequentas os teatros e os lugares elegantes e, principalmente, descer da posição excepcional em que me colocara frente às minhas relações, era-me bastante doloroso.

Eu jamais pensara na possibilidade de ter que modificar minha maneira de ser.
Naquela ocasião, preferia abandonar tudo, seguir para um lugar qualquer, onde não fosse conhecido, para então começar vida nova.

Por isso não concordei com as palavras sensatas de minha mãe. Lenice, calada e abatida, nada dizia.
Também seria forçada a deixar uma série de coisas às quais estava habituada.
Suas amizades, a casa da qual tanto gostava o conforto e as alegrias de uma vida despreocupada.

— Não, minha mãe.
A vida em Paris é difícil, nós não nos habituaríamos lá sem dinheiro. Precisamos encontrar outra solução.
— Mas...Qual? Nossos recursos não nos permitem manter esta casa.
— Talvez possamos encontrar uma solução sem precisarmos vendê-la.
— Acho difícil.
Temos muitas dívidas, e o que possuímos não dará para cobri-las.

— Deixe-me pensar, mamãe.
Dê-me tempo, e quem sabe resolveremos a questão.
Certamente poderemos convencer alguns credores a esperar.
Tudo faremos para não vender esta casa, que tão cara é ao nosso coração.

Minha mãe ouviu pensativa.
Seu traje negro e severo acentuava a palidez e o abatimento da sua fisionomia, mas em seu olhar havia determinação e um lampejo de esperança.

— Acho difícil.
Contudo, poderemos contemporizar por mais alguns dias.
— Enquanto isso, mamãe, poderei estudar bem nossa situação. Verificar os documentos e os livros de papai.
Haveremos de encontrar solução. Vou agora mesmo ao seu gabinete.

Levantei-me animado por uma onda de energia.
Mergulhei no estudo daqueles documentos, procurando balancear a situação, que realmente era precária.
Idealizei um plano para conseguir apaziguar nossos maiores credores.

Devíamos vultosas quantias a dos homens importantes no cenário político:
Sr. Marcel Martin, secretario geral da Republique Societé, e Sr. Jean Leterre, presidente do senado republicano.
Os outros eram dívidas menores e mais fáceis de prorrogar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Nov 14, 2012 10:59 am

Conhecia pessoalmente os dois grandes credores.
Contava de alguma sorte conseguir prazo para reorganizar os negócios da família.
Pensava vender algumas propriedades para fazer frente às primeiras despesas e com o tempo saldar os compromissos sem desfazer-me porém da nossa casa, onde conhecêramos felizes momentos de uma ventura terna e serena.

No dia seguinte pela manhã, chamei o notário e juntos estudamos as condições básicas.
Feitos os cálculos, ainda que tudo saísse a contento, ficaríamos praticamente sem nada.
Somente poderíamos conservar a casa se saldássemos a hipoteca que pesava sobre ela.

Senti que a batalha seria hercúlea.
Porém o horror à pobreza e ao descrédito perante a sociedade na qual eu continuava a brilhar nos primeiros lugares deu-me coragem para tentar o impossível.

Participei aos meus a resolução tomada.

Minha mãe, cujo luto fechado tornara ainda mais pálida, levantou a cabeça fitando-me com o olhar firme:
— Você faz muito bem.
É jovem, pode e deve lutar.
Farei o que puder para ajudá-lo.
Lenice não irá mais estudar. Precisamos conter os gastos.

Senti brotar em mim surda revolta, ao pensar na dura realidade.
Pobre Lenice! Sempre gostara de estudar.
Colocava nisto toda sua vontade jovem e era aluna bastante aplicada.

— Talvez não seja preciso – retruquei indeciso.
— Não podemos continuar só gastando.
Resta-nos pouco dinheiro.
Quando acabar, nem sei o que faremos!

Lenice colocou docemente a sua mão delicada sobre o meu braço.

— Não se preocupe por isso.
Nossa situação será temporária, bem sei.
Quando as coisas melhorarem, continuarei meus estudos.

Aceitei a renúncia de minha irmã com naturalidade.
Eu estava habituado a que os outros se sacrificassem por mim.
Sempre exigira o melhor em tudo e achei normal a atitude de Lenice.

Arrumei minha bagagem e na manhã seguinte retornei a paris.
Sabia que minha situação era difícil.
Mas eu não pensava em um possível fracasso.

Nem por um instante permiti que esse pensamento me dominasse.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Nov 14, 2012 10:59 am

Capítulo III

No dia imediato, ao entardecer, fui à residência do Sr. Martin.

Tratava-se de um homem alto, um tanto forte, cabelos grisalhos, quase brancos, suíças alongadas, rosto corado, maçãs salientes algo lustrosos olhos pequenos, belicosos.

Vestia-se vaidosamente no rigor da moda e estava sempre envolvido em aventuras galantes.
Vindo de família humilde que se tornara rapidamente rica nos dias negros da evolução, orgulhava-se dos serviços dos seus antepassados.

Possuía grande colecção de objectos, souvenirs revolucionários que exibia prazerosamente.
Alguns gostam de exibir seus nomes ilustres;
como não possuía, Martin exibia façanhas dos seus familiares na sangrenta luta como mérito próprio e pessoal.

Recebeu-me com amabilidades.
Um pouco humilhado pela dureza da situação que me colocava em posição subalterna, após as saudações iniciais, entrou no assunto.
— Sr. Martin vim procurá-lo para tratar de um assunto muito sério.

Martin fixou-me um pouco solene.

— Já esperava pela sua visita.
Ser-me-ia sumamente desagradável ter que procura-lo para tratarmos desse assunto.
— Sei o meu dever, senhor.
Sou agora o chefe da família. Devo gerir os negócios.
Infelizmente, meu pai ocultou-me a real situação dos nossos haveres, o que de certa forma vem dificultar a solução imediata dos compromissos por ele assumidos.

O Sr. Martin levantou-se da cadeira pensativo e com significativa ruga no centro da testa.

A certa altura, parou e disse olhando-me fixamente:
— O que significam suas palavras?
— Significam que vim procurá-lo para juntos estudarmos a melhor maneira de liquidarmos esse compromisso.
Espero que o senhor compreenda e conceda certo prazo para pagamento da dívida.

O Sr. Martin permaneceu pensativo por alguns instantes, torcendo fleumaticamente a ponta do bigode.

— Sr. Jacques, o que me pede é impossível.
Preciso receber logo o dinheiro.
Depois... Quais as garantias que me pode oferecer?
Sei que o Sr. Latour morreu completamente arruinado.

Era a primeira vez que eu tinha que suportar tal humilhação.
O sangue fugiu-me do rosto enquanto ligeira tontura me turvou a mente.
Senti um desejo violento de ter o dinheiro, ali, naquele momento, para atirá-lo ao rosto do Sr. Martin.

Mas eu não possuía.
Duzentos mil francos era muito dinheiro para mim naquela circunstância.
Contive minha ira, procurando manter o sangue-frio.
Fora até ali resolvido a tirar vantagens, não a brigar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Nov 14, 2012 10:59 am

Por isso, procurando tornar firme a voz que a ira fazia tremer, eu respondi:
— Dou-lhe a garantia da minha palavra. Não lhe basta?
Pretendo lutar e restabelecer o património da família.

O Sr. Martin olhou-me sério a principio, depois desatou a rir.
Seu riso encheu-me o coração de amargura e de humilhação.

— Ora, Sr. Jacques!
Se o Sr. Latour, com toda sua capacidade e competência, não conseguiu refazer sua fortuna, como o conseguirá o senhor, jovem, inexperiente, simples estudante?
Embora o senhor trabalhe muito, jamais conseguirá o suficiente para manter-se no luxo e no desperdício a que se habituou. Como fazer para pagar tantas dívidas?

— Acredito que o senhor não esteja bem informado quanto à nossa situação financeira.
Devemos boa soma, é verdade, mas possuímos muitas propriedades.
Embora tenhamos que nos desfazer de algumas, pensamos conservar outras, cujos rendimentos serão acumulados para pagamento das dívidas restantes.
Preciso apenas de certo prazo. Vim aqui para dizer-lhe isto.
Pagarei tudo.

— Meu rapaz, poderíamos fazer um arranjo.
Gostaria de comprar o castelo Latour.
Pagarei boa soma por ele.
Sempre desejei possuir uma casa como aquela.
Levarei para lá minha Marie Louise.
É o Máximo que posso fazer por você.

— Não penso vender a casa de minha família Sr. Martin.
Ela nos é muito cara.
Nenhum dinheiro do mundo pagaria o quanto vale para nós.

— Sr. Jacques, sentimentalismo não vai ajudá-lo a resolver seus problemas.
Somente os ricos podem dar-se ao luxo de serem sentimentais.
Os outros têm que usar o raciocínio.
O que lhe proponho é um bom negócio.
É só o que posso fazer pelo senhor.

Quanto ao mais, espero que os títulos sejam resgatados na época certa.
Caso contrário, irei ao Palácio da Justiça.
Aguardarei uma resposta sua.
Faltam só oito dias para o vencimento da dívida.

Talvez que meu rosto de certa forma retratasse o que me ia à alma, a avalanche de emoções às quais não estava habituado, porque meu interlocutor olhou-me com certo ar de comiseração ou talvez de zombaria:
— Pobre rapaz!
Com a sua aparência e seu nome de família talvez pudesse arrumar um casamento rico.
Seria a única solução.
Por que não tenta?

Súbito rubor invadiu-me as faces.
A indignação era tanta que me levantei.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Nov 14, 2012 11:00 am

Com ligeiro censo despedi-me dizendo simplesmente:
— Dentro de oito dias trarei a sua resposta.

Saí de casa de Martin completamente aturdido.
Aquele homem inspirava-me fundo sentimento de repulsa.
Comprar nossa casa.
Ele, um homem sem escrúpulos e sem nobreza.
E o que era pior: levar para lá sua última conquista!
Eu aprendera a respeitar nossa casa como um santuário.

Papai tinha verdadeira adoração pela propriedade que há muitos anos era património da família.
Como permitir que outrem a desrespeitasse?
Ademais, nos últimos tempos, eu levara uma vida boémia, devassa talvez, como era comum a um jovem estudante como eu.

Conhecera sórdidos ambientes, sórdidas criaturas, mas, apesar da descrença e da indiferença que esses ambientes provocaram em mim, havia sempre no fundo do meu eu, da minha maneira de ser, um pouco da pureza e da ingenuidade na consideração e no respeito que dispensava à nossa casa e ao nosso ambiente doméstico.

Quando o tédio e o nojo da vida que eu levava em Paris me aborreciam, passava alguns dias em casa dos meus pais e, ao voltar para a cidade, vinha renovado e sereno.

Em suma, aquela casa representava para mim um local de refazimento, de erguimento espiritual, tinha o condão de devolver-me a dignidade.

Essa era a razão de eu não desejar desfazer-me dela.
Vê-la ocupada por estranhos, que profanariam suas dependências, transformando-a em local diferente, modificando-lhe o familiar e costumeiro aspecto, era-me insuportável.

Era como se me quisessem roubar o último reduto de ingenuidade, de confiança e de dignidade.

Onde correr quando me sentisse deprimido e descrente?
Onde buscar a pureza, a infância senão na querida casa onde passara os melhores anos de minha vida?
Lutaria com todas as minhas forças, faria qualquer coisa para não ser despojado da nossa casa.

A cabeça estalava-me de dor.
Eu caminhava pelas ruas, revoltado, indiferente, voltando às minhas preocupações.
Depois de andar durante algum tempo, fui para casa.
Nem por um instante deixei de pensar no caso.
Precisava arranjar solução, o que me parecia difícil.

No dia seguinte, pela manhã, resolvi ir à casa do Sr. Jean Leterre, a quem devíamos a polpuda soma de trezentos mil francos.

Quem sabe com ele teria melhor sorte.
A residência do Sr. Leterre situava-se em St. Paul, bairro fino e aristocrático.
Ao contrário do Sr. Martin, Leterre procedia de família nobre.
Tinha a classe, a distinção que somente às pessoas de fino trato possuem.
Alto, esbelto, erecto apesar dos anos, cabelos grisalhos, rosto sombreado por generosa barba também grisalha e dois olhos negros firmes e altivos.

Eis a figura do homem que eu devia enfrentar.
Seu palácio, elegante, sóbrio e mobilado
com um luxo discreto, produziu-me a sensação de ordem e eficiência.
Contribuiu de certa forma para serenar um pouco a minha mente.
Circunspecto e atencioso, criado conduziram-me até o gabinete do Sr. Jean.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qua Nov 14, 2012 11:00 am

— Queira acomodar-se, excelência. O Sr. Leterre virá em seguida.

Apesar das preocupações que me envolviam, pude observar a elegância e o conforto da sala onde me encontrava.
Admirei com o olhar a bela escrivaninha ricamente lavrada, os candelabros de prata, as belas poltronas, os livros finamente encadernados colocados em estantes caprichosamente trabalhadas.

Foi então que deparei com um quadro que me chamou especial atenção.
Surpreso, levantei-me, aproximando-me do retrato.
Não contive uma exclamação de estupor: a moça do quadro era a mesma que eu conhecera no teatro.

O mesmo rosto delicado e altivo, a mesma expressão orgulhosa luzindo no olhar firme.
Como e por que teria o Sr. Leterre o retrato daquela mulher?
Seria seu parente?
Afastei logo essa ideia.
Ele era francês e de origem tradicional; a jovem era inglesa.

Também não poderia ser uma aventura amorosa.
Um homem sóbrio como Leterre não a colocaria em seu gabinete.
Tão entretido estava que me sobressaltou ouvir um seco pigarro.
Voltei-me um tanto embaraçado.

— Perdão, Sr. Leterre.
Estava admirando tão lindo quadro que nem o vi chegar.
O outro respondeu-me com ligeiro aceno de cortesia.
O Sr. Leterre não era muito prolixo.
Só usava as palavras quando necessárias.

— Queira acomodar-se. Sr. Latour.
Sentei-me na elegante poltrona à frente da imponente escrivaninha, por trás da qual por sua vez sentou-se o meu interlocutor.

Olhava-me fixamente, esperando que eu falasse.
Senti-me pouco à vontade.
Infelizmente o assunto era bastante desagradável para mim.

Criando coragem, comecei:
— Sr. Leterre, vim procurá-lo para tratarmos de negócios.
O outro balançou a cabeça em afirmativa.
Sua atitude não era de molde a me ajudar.
Entretanto, continuei:
— Sabe o senhor do súbito falecimento do meu progenitor.
Vim para lhe dizer que não poderemos saldar no prazo marcado nossa dívida para consigo...

O Sr. Leterre ouviu impassível.
Apenas ligeiro arquear de sobrancelhas, nada disse.
Era exasperante o seu silêncio.

Apressadamente continuei:
— Entretanto, trata-se de uma fase apenas.
Espero vencer todas as dificuldades dentro de pouco tempo.
Conto com sua compreensão.
Desejo que nos conceda prorrogação do vencimento.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 15, 2012 10:19 am

— O que me pede é impossível!
O bom-nome de sua família e o prestigio pessoal do Sr. Latour possibilitaram-me utilizar os documentos em meu poder, negociando-os.
Não podia esperar que o eficiente Sr. Latour, a quem os melhores banqueiros e financistas procuravam imitar nos negócios, viesse a fracassar.

Da maneira em que estão os meus negócios, sou eu o responsável perante terceiros por essa dívida.
Se os senhores não pagarem, terei meu nome seriamente comprometido.

Vendo que não conseguia o adiamento desejado; não pude controlar minhas palavras.

— De qualquer forma, não posso pagar no prazo estipulado.
Se concordasse em conceder a prorrogação, teria chance de receber tudo.
Assim, arrisca-se a perder.

— O senhor se engana.
Quanto mais tempo passar, menos restará para ser arrecadado em pagamento da dívida.
O senhor está habituado a uma vida faustosa, sua família também.
Como ninguém trabalha, está claro que o património que ainda resta irá sendo consumido.

Portanto, quanto antes realizarmos o acerto, melhor para mim.
Eu, me que levantara no ardor da palestra, deixei-me cair, arrasado, sobre a cadeira.
Compreendia que ele tinha razão.

— O senhor está enfrentando o problema de maneira errada.
O prazo não irá ajudá-lo.
Pelo contrário: o senhor passará a viver na ilusão do passado e quando acordar estará em piores condições.

Sei a situação em que estão os negócios de sua família.
Informei-me muito bem.
Não lhe resta senão uma saída: enfrentar corajosamente a ruína.

Vender tudo. Apurar o máximo que puder.
Saldar os mais prementes compromissos em primeiro lugar e procurar trabalhar para ganhar o sustento dos seus.

O senhor é estudante. Possui cultura.
Não lhe será difícil arranja um bom emprego.
O importante é conservar impoluta a honra da família.

Num gesto de desespero afundou a cabeça entre as mãos.
Sentia o rosto enrubescido pela humilhação.
— Depois – continuou ele -, com seu esforço poderá reconstruir seu património.

A perspectiva era-me muito desagradável.
Nas presentes condições eu deveria sujeitar-me a um patrão e de maneira alguma suportaria essa dependência.

Trabalhar não era vergonha, mas desde que fosse como chefe, dirigindo.
Em condições subalternas, eu nem sequer cogitava faze-lo.
Entretanto, as palavras de Leterre retratavam a dura realidade.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 15, 2012 10:19 am

Foi isto o que mais me feriu.
Permaneci por algum tempo cabisbaixo, rosto enterrado nas mãos, pensamentos febricitantes povoando-me a mente.
Realizei vigoroso esforço para dominar a avalancha de sentimentos desordenados que me perturbavam.

Por fim, levantei o rosto um tanto contraído e fitei a fisionomia austera do meu interlocutor.
Estava séria. Um brilho de energia e determinação fulgia em seu olhar.

— O senhor está me levando ao extremo desespero.
Sem o prazo de que eu preciso.
Não poderei saldar o compromisso, o que representa sem dúvida a mais completa ruína.
Não sei se terei forças para suportar este estado de coisas.

Aflito, levantei-me da cadeira e num gesto um tanto dramático completei:
— Talvez a morte seja a solução para todos os meus problemas.
— Mais uma vez o senhor se engana.
A morte é a solução dos covardes!
Na sua situação, ainda será pior.
Sua mãe e sua irmã ficarão em piores condições do que estão.

As palavras de Leterre aumentaram minha irritação.
Comecei a pensar que ele estava querendo aproveitar-se da minha situação de inferioridade.
Meus brios se acenderam, obrigando-me a controlar as emoções.

— Quer dizer que não concederá uma prorrogação?
— Não posso.
— Neste caso, devo retirar-me.
Passar bem, Sr. Leterre.

O outro inclinou a cabeça silenciosamente.
Saí. Minha cabeça doía terrivelmente.
Estava tudo perdido! A última esperança diluíra-se.
Entretanto, precisava encontrar solução!

Não podia aceitar a realidade passivamente.
Não queria pensar na dura e adversa ruína financeira, não desejava intimamente enfrenta-la.
Envolvido pelos mais contraditórios pensamentos, caminhei a esmo pelas ruas do aristocrático bairro onde residia o Sr. Leterre.

Ia indiferente a tudo o que me cercava, imerso na angústia da própria impotência frente aos factos.
As ruas um tanto enlameadas naquela época do ano, um inverno triste e cinzento salpicavam minhas elegantes e luzidas botinas.

O vento frio assanhava-me os cabelos e batia contra meu rosto de maneira irritante.
Mas eu prosseguia, aturdido e excitado, pensando, pensando, na ânsia de resolver o trágico problema.

Após horas de inútil caminhada, fui para casa.
Sentia-me cansando e faminto. Era já noite.
Passara o dia inteiro andando pelas ruas.
Meu aspecto em desalinho e a expressão trágica do meu rosto causaram estranheza em alguns vizinho que me viram chegar.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 15, 2012 10:20 am

Isso me aborreceu ainda mais.
Fui precipitadamente para não ser forçado a dar explicações.
No quarto, atirei-me ao leito e não me envergonho de confessar que chorei.
Eu não fora preparado para enfrentar a vida.

A educação que recebera fora sempre no sentido de saber mandar, saber gastar e saber aparentar.
Julgara-me sempre um ser superior aos demais.
Não possuía, por isso, noção da vida como é na realidade.
Não compreendia que há mais coragem e valor em saber obedecer do que em saber mandar.

Que há menos responsabilidade em ser conduzido do que conduzir.
Atirado de repente a uma situação de inferioridade financeira, não tive forças para compreender.
A inferioridade do subalterno, para mim, era sinónimo de incapacidade.
Doía-me o simples pensamento de que me veria da contingência de procurar um emprego.

A má vontade dos nossos credores em conceder o prazo que eu pedira parecia-me perseguição e deliberação em arruinar-me.

Odiei aqueles dois homens com intensidade.
Pensava, no delírio incessante em que me achava possuído, que eles tentavam espoliar-me.
No paroxismo da angústia, prometi a mim mesmo que muito trabalho lhes daria para receber o dinheiro.

Eu era quase um doutor em leis.
Conhecia-as a fundo.
Sabia lidar com a justiça.
Dali em diante nada mais me importava senão evitar a todo custo entregar-lhes os meus bens.

Faria isso mesmo que tivesse que mentir, enganar, caluniar, alterar documentos, falsificar.
Eu, que condenava sempre os que erravam, que detestava a mentira, frente à pobreza esquecia-me de todos esses pensamentos, base marcante da minha personalidade até ali.

Mas a luta moral fora muito forte para mim e ao meu redor só via os dois homens que visitara como inimigos comprazendo-se com minha desgraça.

Então, percebi que nada mais restava a fazer em Paris.
As aulas ainda não se haviam reiniciado e eu precisava organizar outros planos para a luta.
Minha honra de cavalheiro exigia que eu entregasse aos credores todos os haveres.

Porém, iludindo-os, poderia ganhar tempo.
O bom-nome da família ajudaria a conseguir dinheiro e talvez pudéssemos viver assim durante algum tempo, o suficiente para que eu me formasse.

Passei a noite insone, revolvendo-me no leito, a mente voltada aos últimos acontecimentos.

No dia seguinte, voltei para casa.
Durante a viagem, as palavras duras do Sr. Leterre martelavam insistentemente o meu cérebro, implacáveis, porque sentia-as verdadeiras.

Entretanto, eu só sabia ver na sua atitude a má-fé e o prazer de tripudiar sobre a minha desgraça.
Foi nessa noite que meu coração fechou-se ainda mais às coisas puras e simples da vida e o gelo do orgulho o envolveu, tornando-me um homem calculista, irredutível, insensível e inescrupuloso, disposto a valer-me de todos os meios que fossem possíveis para alcançar meus fins.

Era uma batalha desigual, porquanto eu era jovem e inexperiente, mas tinha a força da minha vontade a ajudar-me na luta.
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Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 15, 2012 10:20 am

CAPÍTULO IV

Ninguém diria, vendo nossa casa ricamente iluminada, o brilho dos candelabros de prata primorosamente entalhados, a fartura com que corria pelos copos o generoso vinho velho e os mais finos licores, a pompa, a magnificência da nossa recepção, que estávamos arruinados.

Ninguém, a não ser alguns amigos mais íntimos, sabia da nossa real situação financeira.
O segredo desse estado de coisas era justamente o saber aparentar.

Nós gastávamos regiamente.
E a maioria dos nossos credores impressionava-se com essa ostentação.
Só eu sabia os sacrifícios que realizava para manter as aparências.
Quando há alguns meses passados retornara de Paris, encontrara em nossa casa uma carta de Jean Lasseur.

Tratava-se de um moço riquíssimo, que fora meu colega de colégio.
Fiquei bastante surpreendido, porquanto nossas relações nunca tinham sido muito amistosas.
Pelo contrário, mal nos suportávamos e somente a rígida disciplina escolar evitara atritos mais sérios.
Quando terminamos o curso, o que realizamos juntos deixamos de nos encontrar.

Depois desse tempo, nunca mais nos vimos.

Abri o envelope rápido e li:
“Caro Jacques. Cheguei hoje.
Vim para passar algum tempo no castelo de Romão, agora de minha propriedade.
Somos vizinhos, portanto. Lembrei-me dos agradáveis dias da nossa infância.
Irei ao próximo dia 15 fazer-lhe uma visita e espero possamos ser bons amigos.
Saudações. Jean Lasseur”.


A perspectiva não me foi agradável.
Eu não estava com disposição para receber visitas, principalmente de Lasseur.
Porém não podia furtar-me a essa obrigação, por isso participei aos meus sua visita dali a dois dias.

Quando chegou, Lasseur pareceu-me bastante diferente do rapazinho presunçoso e antipático que havia conhecido.

Tornara-se um homem elegante e refinado.
Vestia-se com apuro e suas atitudes primavam pela mais perfeita cortesia.

Apresentei-o à minha mãe, que se inclinou murmurando algumas palavras de boas-vindas e só então notei que Lenice estava pálida, parecendo não sentir-se bem.

Mal estendeu os dedos na direcção do visitante, cujos lábios não conseguiram nem roçá-los de leve, tal a rapidez do gesto.
Sentados na elegante sala de estar, palestrávamos sobre assuntos triviais, trocando ideias a respeito do valor das propriedades e do vertiginoso progresso que andava por toda parte.

Enquanto isso, eu podia observá-lo melhor.
Notei então que o mesmo antagonismo de outrora renascia.
Eu não tinha explicação plausível para esse meu sentimento.

Talvez que o orgulho e a vaidade de Lasseur, sua maneira sempre arrogante de colocar-se em grau de superioridade frente aos demais se chocassem com minha própria vaidade, dando às nossas relações certo cunho de rivalidade.
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Série Lucius - O FIO DO DESTINO / Zibia Gasparetto Empty Re: Série Lucius - O FIO DO DESTINO / Zibia Gasparetto

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 15, 2012 10:20 am

Rivalidade oculta, surda, agressiva, que não transparecia em nossas palavras ou em nossos gestos, mas que se fazia presente dentro de nós sempre que conversávamos.

Lasseur mostrou-se delicadíssimo.
Cumulou-nos de gentilezas e atenções a pretexto do nosso antigo conhecimento e da sua triste solidão.
Seu pai, viúvo há muitos anos, falecera havia poucos meses e ele não possuíam irmãos.

Estava só no mundo.
Essa condição despertou em minha mãe certa afectuosidade que me foi indiferente.
Depois desse dia, Lasseur passou a visitar-nos com frequência.
Lenice, sempre tão alegre e jovial, tornava-se quieta e retraída sempre que Lasseur estava connosco.

Percebi que nosso visitante fazia-lhe a corte e compreendi finalmente a razão de sua súbita amizade por mim.

A ideia deixou-me radiante.
Nossa situação estava dia a dia mais difícil.
A custo conseguira arranjar com um agiota parte da importância do título que vencera com o Sr. Martin.
Se Lenice desposasse Lasseur, poderíamos resolver nossas dificuldades.

Ele era riquíssimo daria bom dote à sua mulher.
Eu tinha pressa.
Dentro de poucas semanas as aulas seriam reiniciadas e eu precisaria voltar a Paris.
Felizmente, a pressa não era somente minha.

Lasseur também estava apressado para pedir Lenice em casamento.
Desejava faze-lo antes de minha viagem.
Assim, numa tarde cinzenta e fria.
Lasseur a sós comigo na sala, falou-me sobre o assunto.

— Jacques, hoje preciso falar-lhe de assunto muito sério.
— Estou às suas ordens.
— Você me conhece há muito tempo.
Sabe da posição que ocupo na sociedade.
Sabe, também, que herdei de meu pai considerável fortuna.
Portanto, acredito dispensar maiores informações a meu respeito.
Assim sendo, tenho a honra de pedir-lhe a mão de sua irmã em casamento.

Procurei controlar minha satisfação.
Não desejava que Jeans a notasse.
Procurei imprimir em meu rosto uma expressão séria e compenetrada.
Minha resposta foi perfeitamente natural.

— Sinto-me honrado com o seu pedido.
Naturalmente, será um prazer recebe-lo em nossa família.
Entretanto, preciso falar com Lenice.
— Naturalmente. Esperarei pela resposta.
Todavia, gostaria de obter antes da sua partida.
Como você sabe, vivo muito só.
Desejo casar-me o mais breve possível.
Estou quase com trinta anos e tenho vida regularizada.
Não há razão para esperar.
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Série Lucius - O FIO DO DESTINO / Zibia Gasparetto Empty Re: Série Lucius - O FIO DO DESTINO / Zibia Gasparetto

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 15, 2012 10:20 am

A custo contive minha satisfação.
A pressa de Lasseur vinha ao encontro dos meus interesses.

— Tem razão, Jean.

Casando minha irmã, estarei tranquilo quanto ao seu futuro e à sua felicidade.
Você sabe que agora sou o chefe da família.
Assim, poderei considerar bem cumprida minha responsabilidade para com ela.
Num impulso levantei-me e toquei a sineta.
Martin atendeu pressuroso.
Era nosso mordomo há muitos anos e muito escrupuloso no atendimento das suas obrigações.

— Diga a Lenice que preciso falar-lhe aqui na sala.
Peça à mamãe também que venha.

Martin curvou-se ligeiramente e saiu. Olhei para Jean.
Apesar da nossa pouca afinidade, não pude deixar de reconhecer que ele era um belo homem.
Alto, elegante, olhos muito azuis e expressivos, cabelos louros e naturalmente ondulados.

Tinha a pele clara e acetinada de uma beleza quase feminina, entretanto o bigode aparado encobria lábios finos e firmes.

De sua pessoa emanava sempre fino perfume e suas roupas eram impecáveis.
Certamente minha irmã sentir-se-ia muito feliz em desposá-lo.
Permanecemos silenciosos aguardando a chegada das duas mulheres.
Entraram na sala, e, após a troca de cumprimentos, fui directo ao assunto.

— Minha mãe, o Sr. Lasseur veio hoje pedir a mão de Lenice.
Ele deseja receber uma resposta breve, por isso convidei-as para esta reunião a fim de resolvermos este assunto.

Mamãe não respondeu de pronto.
Parecia surpreendida.
Lenice estava pálida e pareceu-me nervosa.
Eu, que esperara aclamações de alegria, fiquei confuso.

O silêncio pesava e eu tornei:
— E então?
— Sr. Lasseur. Ignorava que fosse fazer esse pedido.
Não o autorizei a fazê-lo.
Sinto-me muito honrada, mais não posso aceitar.
Não desejo casar-me.
Por isso, peço-lhe desculpas, mais não aceito seu pedido de casamento.

A voz de Lenice estava trémula.
Senti-me desapontado.
Minha irmã estava atirando fora nossa única oportunidade de evitar a ruína completa.

Jean levantou-se e disse com voz firme:
— Sua recusa é evasiva e não a aceito.
Quero os motivos. Por acaso sou-lhe antipático?
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Série Lucius - O FIO DO DESTINO / Zibia Gasparetto Empty Re: Série Lucius - O FIO DO DESTINO / Zibia Gasparetto

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 15, 2012 10:20 am

— Não se trata disso, Sr. Lasseur.
Nada tenho contra o senhor.
Pelo contrário: tem sido sempre muito bem recebido em nossa casa como amigo de Jacques, mas um casamento, para ser realizado, é preciso que exista amor de parte a parte.

Somente quando duas pessoas se amam é que poderão ser felizes.
Eu não o amo, Sr. Jean, e os sentimentos não se podem mudar ao nosso desejo.
Por isso, não posso aceitar seu pedido.
Desejava poupar-lhe esta franqueza, mas o senhor a exigiu.

Jean levantou-se e num gesto displicente começou a rir.
Confesso que fiquei chocado com sua atitude.
Afinal não era nada agradável enfrentar uma situação como aquela, ainda mais diante de terceiros.

— Lenice!
Francamente, eu acreditava que você fosse mais amadurecida, mais moderna.
Amor! Por acaso falei em amor?

Vivo rubor coloriu o rosto jovem de minha irmã.

Jean continuou:
— Entre criaturas educadas e cultas, o amor é colocado no lugar que lhe compete.
Aliás, o amor como você o entende é ilusão dos poetas, não existe na realidade.
O que existe é a paixão, uma doença que perturba a mente do indivíduo e o faz cometer uma série de disparates.
Não tenho ilusões, não procuro uma paixão.

O que desejo é constituir um lar.
A necessidade de um herdeiro é preponderante.
Em você, pensei ter encontrado a mulher ideal para o casamento.
È culta, bonita, meiga e de boa família.
Por isso fiz o pedido. Espero que reconsidere sua decisão.

Percebendo que Lenice esforçava-se por reter as lágrimas e que seus lábios apertavam-se rancorosos, disse apressado:
— Jean, sua proposta foi inesperada.
Fiz mal em transmiti-la a Lenice sem preparação prévia.
Conceda-nos alguns dias para uma resposta definitiva.

Fingi não perceber o gesto de impaciência de Lenice.

— Está bem. Dentro de três dias virei saber uma resposta.
Espero que seja satisfatória.

Curvou-se ligeiramente e saiu.

Então, pude desabafar:
— Lenice, como pode ser tão leviana?

Minha irmã olhou-me dolorosamente surpreendida.
Seus grandes olhos negros fitavam-me angustiados.
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Série Lucius - O FIO DO DESTINO / Zibia Gasparetto Empty Re: Série Lucius - O FIO DO DESTINO / Zibia Gasparetto

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 15, 2012 10:21 am

— Não compreendo, Jacques. Fui apenas sincera.
Não sinto pelo Sr. Lasseur a amizade e o afecto necessários à união conjugal.
Não posso de maneira alguma dar-lhe esperanças.

Desapontado, respondi:
— Sabe bem o que isto significa para todos nós?!!
A miséria, a ruína total.
Terei que deixar os estudos e procurar trabalho!

Mamãe, depois de viver sempre no luxo e no conforto, terá que se sujeitar a uma velhice dolorosa e humilhante!
Você mesma, ver-se-á na contingência de trabalhar para ganhar o pão a fim de não morrer de fome.
Quer atirar fora uma ocasião rara de consolidar nossa situação financeira, levada por uma ilusão sentimental.

Lenice ouviu séria, cabeça baixa.
Minha mãe, pensativa, olhava-nos com ar preocupado.

Desejoso de ganhar terreno prosseguiu:
— Depois, Lenice, que experiência você possui da vida e das coisas?
Jean é um belo homem, de boa família, uma das grandes fortunas da França.
Culto, inteligente, personalidade cativante para qualquer mulher.

Partido disputado pelas moças mais exigentes.
Por que recusar tanta honra?
O amor verdadeiro vem com a convivência, no decorrer dos anos de vida em comum.
Esta é a realidade, o resto são ilusões que o tempo encarrega-se de destruir.

Minha irmã ergueu o rosto e pude ver um brilho de triste em seus olhos.

— Você quer que eu aceite o Sr. Lasseur por marido?

Sorri meio embaraçado.
Eu sabia, no íntimo do meu ser, estar visando somente meus interesses.
Não simpatizava com Jean.
Se outra fosse nossa situação, eu nunca consentiria em tal união.

Era meu pavor da ruína que não só me fazia aceitar o casamento, como o advogava com todo o entusiasmo.
Para encobrir os reflexos da consciência, eu tentava convencer-me de que eles seriam felizes e que nossa falta de afinidade fora apenas um mal-entendido que ficara sepultado no passado.

— Por que não? Trata-se de um amigo meu.
Depois minha irmã, não estamos em condições de escolher.

Procurei dar certo ar de preocupação à minha fisionomia e continuei:
— Sou agora o chefe da casa. Preocupa-me o seu futuro.
Sinto-me deprimido por não poder oferecer-lhes o mesmo padrão de vida que sempre tivemos.
Infelizmente, estamos irremediavelmente arruinados.

A princípio, tive esperanças de debelar a crise, mas todas as portas foram cerradas.
Até agora, conseguimos a custo manter as aparências, porém o cerco aperta-se cada vez mais.
Amanhã ou depois teremos que ceder, não poderemos continuar lutando.
Então, o que será das suas ilusões e da sua juventude?
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Série Lucius - O FIO DO DESTINO / Zibia Gasparetto Empty Re: Série Lucius - O FIO DO DESTINO / Zibia Gasparetto

Mensagem  Ave sem Ninho Qui Nov 15, 2012 10:21 am

Lenice olhou-me triste e respondeu:
— Nada disso é essencial para a conquista da felicidade.
Não temo a pobreza. Tenho forças para trabalhar.
Algum dia hei de encontrar um homem a quem eu ame e que me faça feliz.

Sorri novamente com incredulidade.

— Você crê realmente que poderá encontrar um homem nessas condições?
Como você é jovem e ingénua!
Sua situação será bem diversa do que imagina.
Um homem culto, rico e de posição não se casará com você se formos pobres a ponto de trabalharmos para nosso sustento.
Lembre-se de que seremos forçados a viver em outro ambiente onde eles raramente aparecem.
Um homem pobre e inculto também não conseguirá despertar o seu interesse porque, sendo fina e educada, não haverá afinidade entre ambos.

Lenice, recusando esta oportunidade excelente, você se transformará em uma pessoa deslocada e solteirona para o resto da vida.

Lenice olhou esperançosa para minha mãe quando disse:
— Já sei o que você deseja, Jacques.
Mas a senhora, minha mãe, o que diz?

Mamãe levantou-se. Fisionomia grave, preocupada.

Depois de caminhar um pouco pela sala, parou fixando-se e dizendo com voz firme:
— Lenice. Você é ainda muito jovem.
Está habituada a ver satisfeitos todos os seus desejos.
Gostaria de poder dizer-lhe que reprovo este casamento.
Entretanto, não vejo motivo serio que me autorize a fazê-lo.

Mesmo desprezando a parte vantajosa para nós da fortuna do Sr. Lasseur, ele tem se mostrado sempre um homem de carácter, honesto e nada há que possa denegrir o seu nome. Sua família é tradicional e respeitada em toda parte.

Possui também o Sr. Lasseur uma figura jovem e acho-o elegante.
Como mulher, acho-o um homem bastante atraente.
Por que então recusa-lo como marido?

Lenice deixou-se cair desalentada sobre uma cadeira.

Seu rosto delicado parecia mais miúdo pela palidez:
— Já sei o que desejam de mim.
Ser-me-á difícil faze-lo. Não amo o Sr. Lasseur.

Minha mãe sorriu complacente.

— Eu sei, minha filha.
Mas o amor virá com o tempo.
Sei o que estou afirmando.
— Tenho três dias para pensar. Não preciso de prazo.
Embora saiba que não serei feliz, podem dizer ao Sr. Lasseur que serei sua esposa.
Entretanto, é preciso que ele saiba que se casa com uma moça pobre.
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