LUZ ESPÍRITA
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Série André Luiz - ENTRE A TERRA E O CÉU

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Série André Luiz - ENTRE A TERRA E O CÉU - Página 5 Empty Re: Série André Luiz - ENTRE A TERRA E O CÉU

Mensagem  Ave sem Ninho Dom Abr 01, 2012 8:32 pm

O organismo materno, absorvendo as emanações da entidade reencarnante, funciona como um exaustor de fluidos em desintegração, fluidos esses que nem sempre são aprazíveis ou facilmente suportáveis pela sensibilidade feminina.

Daí, a razão dos engulhos frequentes, de tratamento até agora muito difícil.
Semelhante nota oferecia-nos valioso material de meditação.

O tempo desdobrou-se semana após semana.
Insistimos na visitação à residência de Amaro, de quando em quando, convocados ou não para o trabalho, até que, certa manhã, Odila veio até nós com o júbilo de uma criança feliz, anunciando que o menino tornara à luz terrestre.

De conformidade com a aprovação da pequena família, chamar-se-ia novamente Júlio.

Comungámos da sua profunda alegria e, com a solidariedade dos amigos sinceros, voltámos a abraçá-lo.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 02, 2012 9:07 pm

31 - Nova luta

O pequeno Júlio desenvolvia-se como flor de esperança no jardim do lar, todavia, sempre mirrado, enfermiço.

Desvelavam-se os pais por assisti-lo convenientemente, contudo, por mais adequados se categorizassem os tratamentos recalcificantes, trazia doloroso estigma na garganta.

Extensa ferida na glote dificultava-lhe a nutrição.
Farinhas suculentas concorriam com o leite materno para robustecê-lo, mas em vão.

Entretanto, apesar dos cuidados que exigia, era uma bênção de felicidade para os progenitores e para a irmãzinha, que sentiam em seu rostinho tenro um ponto vivo de entrelaçamento espiritual.

Muitas vezes, aconchegámo-lo ao coração, rememorando os trabalhos que lhe haviam precedido o regresso ao mundo, assinalando a ternura optimista com que Odila, transformada em generosa protectora da família, lhe acompanhava o desabrochar.

O pequerrucho já começava a falar por monossílabos, em vésperas do primeiro ano de renascimento, quando nova luta surgiu.

O inverno chegara rigoroso e vasto, surto de gripe espalhara-se ameaçador.
A tosse e a influenza compareciam pertinazes, em todos os recantos, quando, num dia de grande trabalho para nós, eis que a progenitora de Evelina veio, novamente, ao nosso encontro.

Dantes, procurava assistência para Zulmira, agora demandava auxílio para Júlio.
O menino, assaltado por teimosa amigdalite, jazia prostrado, febril.

Dirigimo-nos incontinenti para o lar do ferroviário.
Com efeito, o vento soprava, húmido, sobre o largo espelho da Guanabara.
As ruas, pela vestimenta pesada dos transeuntes, davam ao Rio o aspecto de uma cidade fria.

Alcançamos, sem detença, o domicílio de Amaro.
O quadro, à nossa vista, era indubitavelmente constrangedor.

Penetramos o aposento em que a criança gemia semi-asfixiada, no instante preciso em que o médico da família efectuava meticuloso exame.

Clarêncio passou a reparar-lhe todos os movimentos.
A garganta minúscula apresentava extensa placa branquicenta e a respiração se fazia angustiada, sibilante.

O instrutor meneou a cabeça, como se fora defrontado por insolúvel enigma, e colocou a destra na fronte do facultativo, compelindo-o a reflectir com a maior atenção.

Zulmira e Evelina, sem perceber-nos a presença, fitavam o médico, preocupadas.
Após longo silêncio, o clínico voltou-se para a dona da casa, afirmando:
— Creio devamos procurar um colega imediatamente.

Enquanto a senhora telefona para o marido, chamando-o da oficina, trarei comigo um pediatra.
A torturada mãezinha conteve a custo as lágrimas que lhe borbulhavam dos olhos.

O médico tornou, cismarento, à via pública, e, enquanto Evelina, rápida, corria até o armazém próximo para dar ciência ao progenitor de quanto ocorria, Zulmira, presumindo-se a sós, abraçou-se ao doentinho e, chorando livremente, ciciou:
— Ó meu Deus, com tanto amor recebi o filho que me enviaste!...
Não me deixes agora sem ele, Senhor!...

O pranto que lhe corria na face queimava-me o coração.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 02, 2012 9:08 pm

Nada pude indagar, em vista da emotividade que me tomara o espírito, mas o nosso orientador, sereno como sempre, exclamou, compadecido:
— A difteria está perfeitamente caracterizada.
A deficiência congenial da glote favoreceu a implantação dos bacilos.

É imprescindível o socorro urgente.
O instrutor começou a mobilizar recursos assistenciais de maior expressão, quando o ferroviário, desolado, ingressou no aposento.

Conversando com a mulher, tentava reanimá-la, quando o pediatra, conduzido pelo colega, deu entrada na humilde residência.
Ambos os médicos submeteram o petiz a prolongado exame, permutando impressões em voz baixa.

O especialista, apreensivo, após manifestar a suspeita de crupe, reclamou a análise de laboratório, decidindo transportar consigo mesmo o material necessário à inspecção.

Ao sair, prometeu opinar, dentro de algumas horas.
Notificou ao pai agoniado que tudo lhe fazia crer tratar-se de garrotilho.

Entretanto, reservava o diagnóstico definitivo para depois.
Se a hipótese se confirmasse, enviaria um enfermeiro de confiança para a aplicação do soro adequado.

Mantendo vigilância junto ao doentinho, o Ministro recomendou-nos, a Hilário e a mim, acompanhar o pediatra, de modo a prestar-lhe a colaboração possível ao nosso alcance.

Seguimo-lo sem hesitar.
O crepúsculo, encharcado de uma garoa fina, caía rápido.

Em minutos breves, atravessávamos o pórtico de vasto hospital, onde o nosso amigo procurou a sala em que certamente se recolhia para os trabalhos que lhe diziam respeito.

Chegados a estreito recinto, fomos defrontados por uma surpresa que nos impunha verdadeira estupefacção.
Mário Silva, em seu traje branco, palestrava com dona Antonina que acomodava ao colo a pequena Lisbela, pálida e ofegante.

A jovem senhora, que não mais víramos, aguardava o especialista, trazendo a filhinha à consulta.
Amparadas por Silva, francamente atraído para a simpática visitante, ambas tiveram acesso a gabinete particular, onde o facultativo diagnosticou uma pneumonia.

Antonina foi aconselhada a voltar, de imediato, ao ambiente doméstico, para a medicação da filha.
A penicilina devia ser administrada sem qualquer dilação.
Mário, demonstrando imenso carinho pela criança, prontificou-se a assisti-la.

Traria um automóvel e atenderia ao caso pessoalmente.
O chefe passeou o olhar pelo mostrador do relógio e aquiesceu, ressalvando:
— Bem, você pode cooperar com as nossas clientes, mas preciso de seu concurso em bairro distante, às vinte e duas horas.

O rapaz assumiu o compromisso de regressar a tempo e um táxi recolheu o trio, rolando na direcção da casinha que visitáramos, certa vez.

Ante o inesperado daquele encontro, sentimos necessidade de um entendimento seguro com o nosso orientador.
Tornando ao quarto, onde o pequeno Júlio piorava sempre, fizemos breve relato do acontecido.

Clarêncio escutou com interesse e ponderou, preocupado:
— Não podemos perder tempo.
Dirijamo-nos à casa de Antonina.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 02, 2012 9:08 pm

A lei está reaproximando os nossos amigos uns dos outros e Mário precisa fortalecer-se para exercitar o perdão.

Os raios de ódio da parte dele podem apressar aqui o serviço inevitável da morte.
Corremos ao domicílio da valorosa mulher.

Com efeito, depois de haver iniciado o tratamento providencial da menina, agora acamada, Silva fixava a dona da casa, perguntando a si mesmo onde vira aquele torturado perfil de madona...

Guardava a nítida impressão de haver conhecido Antonina em algum lugar...
Agradavelmente surpreendido, sentia-se ali como se fora em sua própria casa.
E a simpatia não se patenteava tão-somente no coração dele.

A senhora e os filhos cercavam-no de atenções.
Intimamente deslumbrado, o enfermeiro declarava de viva voz estar experimentando uma paz que há muito não conhecia, com o que Antonina se regozijava, sorrindo.

Percebendo que Haroldo e Henrique se mostravam apaixonados pelas disputas desportivas, deu curso a animada conversação em torno do futebol, conquistando-lhes o carinho.

A mãezinha, preparando o café, ingressava no alegre entendimento, de quando em quando, a fim de podar o entusiasmo dos meninos, quando a palavra deles se evidenciava menos construtiva.

Somente no decurso da afectuosa palestra, viemos a saber que nossa amiga se enviuvara.
O esposo, segundo notícias recebidas de metrópole distante, havia falecido num desastre, vitimado pela própria imprudência.

Lemos no olhar de Silva o contentamento com que obtinha semelhante informe.
Começava a registar insopitável interesse pela vida naquele ninho agasalhante que se lhe afigurava pertencer-lhe.

Às oito em ponto, Antonina, sem afectação, convidou com simplicidade:
— Sr. Mário, hoje temos nosso culto evangélico.
Quer ter a bondade de partilhá-lo?

Incompreensivelmente feliz, o rapaz concordou, de pronto.
A reunião, nessa noite, foi efectuada ao redor do leito de Lisbela, que não desejava perder o benefício das orações.

Um copo de água pura foi colocado junto à cabeceira da pequenina.
E, de Novo Testamento em punho, acomodados os companheiros, Antonina recomendou a Henrique fizesse a rogativa inicial.

O menino recitou o «Pai-nosso» e, em seguida, pediu a Jesus a saúde da irmãzinha doente, com enternecedora súplica.

Vimos o nosso orientador acercar-se do recipiente de água cristalina, magnetizando-a, em favor da enferma que parecia expressivamente confortada, ante a oração ouvida, e, logo após, abeirar-se de Silva, que lhe recebeu as irradiações.

— Quem abrirá hoje o Livro? — perguntou Haroldo, com graciosa malícia, fitando o hóspede inesperado.
— Certamente nosso amigo nos fará essa honra — disse a progenitora, indicando o enfermeiro.

Mário, ignorando como expressar a felicidade que lhe fluía do coração, acolheu o pequeno volume, sob a atenção de Clarêncio, que lhe tocava o busto e as mãos, influenciando-o para a descoberta do texto adequado.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 02, 2012 9:08 pm

O moço, algo trémulo na participação de um serviço espiritual inteiramente novo para ele, sem perceber o amparo que o envolvia, abriu em determinada passagem, qual se agisse a esmo, passando o livro a Antonina, que leu em voz pausada o versículo vinte e cinco do capítulo 5º das anotações do Apóstolo Mateus:
— «Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto te encontras a caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz e o juiz te entregue ao oficial para que sejas encerrado na prisão.

A dirigente do culto, que, naquela noite, se revelava mais retraída, pediu a interpretação dos meninos que, de modo ingénuo, se reportaram às experiências da escola, afirmando que sempre adquiriam a paz, buscando desculpar as faltas dos companheiros.

Haroldo asseverava que a professora sempre sorria contente, quando lhe via a boa vontade e Henrique salientou haver aprendido no culto do lar que era muito mais agradável o esforço de viver em harmonia com todos.

A palestra parecia ameaçada de esmorecimento, mas o nosso orientador aproximou-se de Antonina e, impondo-lhe a destra sobre a fronte, como que a impelia ao comentário justo.

— Haroldo — indagou a progenitora, de olhos brilhantes —, como devemos interpretar um inimigo em nossa vida?

O menino replicou, sem pestanejar:
— Mãezinha, a senhora nos ensinou que conservar um inimigo em nosso caminho é o mesmo que manter uma ferida perigosa em nosso corpo.

— A definição foi bem lembrada — falou a viúva com espontaneidade encantadora —; sem a compreensão fraterna que nos garante o culto da gentileza, sem o perdão que olvida todo mal, a existência na Terra seria uma aventura intolerável.

Além disso, quando Jesus nos ditou a lição que recordamos hoje, indubitavelmente considerava que a razão nunca vive inteira ao nosso lado.
Se fomos ofendidos, em verdade também ofendemos por nossa vez.

Precisamos desculpar os outros para que os outros nos desculpem. Quando abraçamos o ideal do bem, compete-nos tentar, por todos os meios ao nosso alcance, a justa conciliação com todos os que se encontrem connosco em desarmonia, prestando-lhes serviço para que renovem a conceituação a nosso respeito.

Mais vale para nós o acordo pacífico que a demanda mais preciosa, porque a vida não termina neste mundo e é possível que, buscando a justiça em nosso favor, estejamos cristalizando a cegueira do egoísmo em nosso próprio coração, caminhando para a morte com aflitivos problemas.

Coração que conserva rancor e coração doente.
Alimentar ódio ou despeito é estender inomináveis padecimentos morais no próprio espírito.

Silva estava pálido.
Aquelas conclusões feriam-lhe, fundo, o modo de ser.

Tão desajustado se revelou escutando aqueles apontamentos que Antonina, em lhe registando a estranheza, ponderou, sorrindo:
— O senhor decerto nunca teve inimigos...

Um enfermeiro diligente será, sem qualquer dúvida, o irmão de todos...
— Sim... sim, não tenho adversários... gaguejou o moço, constrangido.

Mas, na tela mental, sem que ele pudesse controlar a eclosão das próprias reminiscências, apareceram Amaro e Zulmira, como os desafectos que ele, no âmago do espírito, não conseguia desculpar.

Odiava-os, sim, odiava-os — pensou de si para consigo —, jamais suportaria um acordo com semelhantes adversários.
Entretanto, a sinceridade da interlocutora encantava-o.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 02, 2012 9:08 pm

Aquela viúva jovem, cercada de três filhinhos, superando talvez obstáculos dos mais inquietantes para viver, constituía um exemplo de quanto podia edificar o espírito de sacrifício.

Em nenhum ambiente encontrara antes aquele calor de fé pura necessário às grandes construções de ordem moral.
Além de tudo, laços de vigorosa afinidade impeliam-no para aquela mulher, com quem se simpatizara à primeira vista.

Por mais vasculhasse as próprias lembranças, não conseguia recordar onde, como e quando a conhecera.
Sentia, porém, que a palavra dela lhe impunha indefinível bem-estar...

Fitando-a, com enternecimento, perguntou:
— A senhora julga que devemos procurar a conciliação com qualquer espécie de inimigos?

— Sim — respondeu a interpelada sem hesitar.
— E quando os adversários são de tal modo inconvenientes que a simples aproximação deles nos causa angústia?

Antonina compreendeu que algo doloroso vinha à tona daquela consciência que lhe ouvira a dissertação, ocultando-se, e obtemperou:
— Entendo que há sofrimentos morais quase intoleráveis, entretanto, a oração é o remédio eficaz de nossas moléstias íntimas.

Se temos a infelicidade de possuir inimigos, cuja presença nos perturba, é importante recorrer à prece, rogando a Deus nos conceda forças para que o desequilíbrio desapareça, porque então um caminho de reajuste surgirá para nossa alma.

Todos necessitamos da alheia tolerância em determinados aspectos de nossa vida.

Os olhos de Mário cintilaram.
— E quando o ódio nos avassala, ainda mesmo quando não desejemos? — inquiriu, preocupado.

— Não há ódio que resista aos dissolventes da compreensão e da boa vontade.
Quem procura conhecer a si mesmo, desculpa facilmente...

Silva empalidecera.

Antonina percebeu que o tema lhe fustigava o coração e, amparada por nosso instrutor que a enlaçava, paternal, rematou considerando:
— Um homem, porém, na sua tarefa, é um missionário do amor fraterno.
Quem socorre os doentes, penetra a natureza humana e entra na posse da grande compaixão.

As mãos que curam não podem ferir...
Em seguida, o primogénito da casa fez a prece de encerramento.
A viúva serviu o café reconfortante, acompanhado de um bolo humilde.

A conversação prosseguia animada, todavia, o hóspede consultou o relógio e reparou que o tempo lhe exigia a retirada.

Deu instruções a Antonina, quanto à medicação da doentinha, e pediu, respeitoso, para voltar no dia imediato, não somente para rever Lisbela, mas também para palestrar com os amigos.

A senhora e as crianças aquiesceram, felizes, afirmando-lhe que seria sempre bem-vindo, e Mário, com um sentimento novo a lhe brilhar nos olhos, seguiu dentro da noite, como quem caminhava tangido por abençoada esperança, ao encontro de novo destino.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 02, 2012 9:09 pm

32 - Recapitulação

De volta ao hospital, o enfermeiro não encontrou pessoalmente o chefe, que se ausentara, constrangido por serviço urgente, mas recebeu das mãos de velha auxiliar a papeleta de instruções.

O rapaz leu a ficha, atenciosamente.
Um menino, perfeitamente caracterizado nas indicações, atacado de crupe, exigia socorro imediato.

De posse do endereço e munindo-se do material imprescindível ao tratamento, Silva rodou num ónibus para a casa de Amaro.

Acolhido cortesmente pelo dono da casa, não ocultou a perplexidade que o possuiu, de assalto.

Identificado pelo ferroviário que lhe exprimia gentileza e contentamento na saudação, tartamudeava alguns monossílabos, desapontado, espantadiço...

Revelava-se-lhe a decepção na extrema palidez do rosto.
Então — reflectia, acabrunhado — era aquela casa que lhe cabia atender?

Se soubesse de antemão, teria solicitado um substituto.
Não pretendia reaproximar-se dos desafectos dos quais se havia distanciado...

Abominava o homem que lhe furtara a noiva e não podia lembrar-se de Zulmira sem observar-se tocado de insólita aversão...

Muita vez, rememorando o passado, calculava quanto ao melhor meio de aniquilar-lhe a existência...
Porque lhe competia revê-la? Porque salvar-lhe o filho, se experimentava ímpetos de incendiar-lhe a casa?

Entretanto, algo interferia em suas reflexões.
Antonina e os filhinhos, no culto do Evangelho, tomavam-lhe a tela mental.

Parecia-lhe ouvir, de novo, a palavra meiga e sincera daquela mulher valorosa, repetindo-lhe ao coração:
“As mãos que curam não podem ferir...”
«Um enfermeiro diligente será, sem dúvida, o irmão de todos...»
«A vida não termina neste mundo...»
«Precisamos desculpar os outros para que os outros nos desculpem...»

Anotando-lhe a hesitação e propondo-se colocá-lo à vontade, Amaro solicitou em voz súplice:
— Entre, Mário!
Conforta-me reconhecer que receberemos o concurso de um amigo...

E, indicando o quarto próximo, acrescentou:
— Zulmira está lá dentro com o nosso filhinho.
Já me entendi com o médico pelo telefone e sei que o crupe foi positivado.

O enfermeiro, impassível, obedeceu maquinalmente.
Varou a câmara, perturbado, lívido.
Quando viu a mulher que amara apaixonadamente, trazendo o pequenino ao colo, registou súbita vertigem de revolta.

Incapaz de controlar-se, sentiu que estranha aflição lhe oprimia o peito.
A volúpia da vingança enceguecia-o...

Zulmira pagar-lhe-ia, caro, a deserção — pensava de olhos fixos na maternidade dolorosa que ali se exteriorizava em mortificante padecimento.
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 02, 2012 9:09 pm

Contemplou a criancinha que a dispneia agitava, e deu curso a incontida animosidade.
Tinha a impressão de odiá-la, de longa data.

Ele próprio se surpreendia, sobressaltado...
Como podia detestar, assim, um inocente com tanta veemência?

Mas, acreditando justificar a terrível disposição de espírito com a circunstância de achar-se, ali, o fruto de uma ligação que lhe era insuportável, não procurou analisar-se.

A ideia de que Amaro e a esposa sofreriam irreparavelmente, com a morte do petiz, acalentou-lhe o duro propósito de desforço.

A felicidade daquele templo doméstico dependia, naquela hora, de sua actuação.
E se cooperasse com a morte, auxiliando aquele rebento enfermiço a desaparecer?

A pergunta criminosa trespassou-lhe o pensamento como um estilete de treva.
Contudo, a lembrança do culto de oração, no lar de Antonina, voltava-lhe à cabeça.

As consoladoras afirmações da mãezinha de Lisbela regressavam-lhe aos ouvidos:
«Vale sempre mais o acordo pacífico...»
«Não devemos nutrir qualquer espécie de aversão... »

«Quem ajuda é ajudado... »
«Ninguém se eleva aos mais altos níveis da vida com o endurecimento espiritual...
«Nunca sabemos realmente até que ponto somos ofendidos ou ofensores...
«O perdão é vitória da luz...

Os retalhos da palestra edificante afiguravam-se-lhe rédeas intangíveis a lhe sofrearem a expansão dos malignos desejos.

Os conflitos sentimentais desenrolavam-se-lhe na consciência em breve minuto...
Quase cambaleante, acercou-se da ex-noiva torturada, que o reconheceu de pronto, tentando cumprimentá-lo.

Correspondeu à saudação, cerimonioso, dispondo-se ao serviço.
— Mário! — implorou a pobre senhora, agoniada — compadeça-se de nós! ajude-nos!
Esperei meu filhinho, suportando os maiores sacrifícios...

Será crível deva agora vê-lo morrer?
Lágrimas copiosas seguiam-lhe os soluços que lhe emudeceram a garganta.

Noutro tempo, qualquer pedido daquela boca lhe impunha inquietação, mas naquele instante soberana indiferença enrijecia-lhe o espírito.

Que lhe importava a dor da mulher que o abandonara?
Zulmira rira-se dele, anos antes... não lhe cabia rir-se agora?
De semblante rude, recomendou fosse a criança restituída ao leito e, logo após, tacteou-lhe a sensibilidade.

De pensamento martelado pelas ideias recolhidas no estudo evangélico da noite e contido pela suave lembrança de Antonina, buscava refazer-se.

Ainda assim, como se carregasse um génio infernal na própria mente, assinalou as criminosas sugestões que lhe atravessavam o cérebro esfogueado.

A ministração de medicamento impróprio, decerto, favoreceria a rápida extinção do enfermo.
Júlio encontrava-se à beira da sepultura... apenas o impeliria a precipitar-se nela sem mais delonga...
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 02, 2012 9:09 pm

Todavia, o semblante de Antonina dominava-lhe a memória, exaltando o perdão.
Se viesse àquela casa na véspera — considerou consigo mesmo —, teria exterminado o petiz sem piedade...

Recorreria à eutanásia para justificar-se intimamente.
Naquela hora, porém, os princípios evangélicos da fraternidade e da conciliação, como pensamentos intrusos, atenazavam-lhe a consciência.

Esperou, silencioso, a reacção do menino ofegante e embora assinalasse graves complicações que, certo, deveriam induzi-lo a comunicar-se com o médico responsável, fez a aplicação do soro antidiftérico, desejoso, porém, de vê-lo transformar-se em veneno destruidor.

Reparamos que as mãos de Mário expeliam escura substância, mas Clarêncio, pousando a destra sobre o pequenino, mantinha-o isolado de semelhantes forças.

Ante o assombro com que observávamos a exteriorização daquele visco enegrecido, nosso instrutor elucidou de boa vontade:
— São fluidos deletérios do ódio com que Silva, inconscientemente, procura envolver a infeliz criança, contudo, as nossas defesas estão funcionando.

Odila, que chamara Blandina e Mariana até nós, acompanhava a medicação, ansiosamente.
— Abnegado amigo — dirigiu-se, inquieta, ao nosso orientador —, acredita que Júlio possa recuperar-se?

Clarêncio, que estabelecera extensa faixa magnética em torno do doentinho, preservando-o contra a influência do visitante, meneou a cabeça e falou, paternal:
— Odila, é tempo de penetrares a verdade.

O menino deixará o corpo talvez em breves horas.
O futuro dele exige a frustração do presente.
Fortalece-te, contudo...
A Vontade Divina, expressa na Lei que nos rege, faz sempre o melhor.

E talvez porque nossa irmã decepcionada ensaiasse nova perquirição, o devotado condutor pediu-lhe, calmo:
— Não indagues agora.
Saberás mais tarde.
Júlio reclama assistência, vigilância, carinho.

A interlocutora recompôs a expressão fisionómica, denunciando humildade e disciplina.
O enfermeiro fitava o pequeno, qual se estivesse a hipnotizá-lo para a morte, observando-lhe as contracções faciais.

Os progenitores fixavam igualmente a criança, em tremenda expectativa.
Em dado instante, Júlio estremeceu, empalidecendo.
Descontrolara-se-lhe o coração.

Examinando-lhe o pulso, Silva, agora aterrado, procurou os olhos de Amaro, aflito, e solicitou em voz menos dura:
- Convém a presença imediata do nosso facultativo.
Receio um choque anafilático de consequências fatais.

Zulmira deixou escapar um grito rouco, sendo socorrida pela carinhosa Evelina, enquanto o ferroviário se despejava porta a fora, em busca do pediatra.

Minutos longos de espera foram vividos no quarto estreito.
Uma hora escoou, vagarosa e terrível...

Preocupado, o médico auscultou a criança e, logo após, convidou o pai desolado a entendimento mais íntimo, anunciando:
— Surgiu o colapso irremediável.

Infelizmente é o fim.
Se o senhor tem fé religiosa, confiemos o caso a Deus.
Agora, somente a concessão divina...
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 02, 2012 9:09 pm

Amaro, consternado, baixou a cabeça e nada respondeu.
O pediatra trocou ideias com Silva, que se fizera muito pálido, e deu-lhe instruções, recomendando-lhe, ao despedir-se, permanecesse com o pequenino, por mais algumas horas.

Um sedativo administrado em Zulmira compeliu-a ao repouso.
Júlio, em coma, respirava dificilmente.
Enquanto isso, a noite avançava...

A madrugada, agora lavada pelo vento leve, permitia ver o céu povoado de cintilantes constelações.

Reparando que a mulher e a filha descansavam, Amaro encaminhou-se para a janela próxima, como quem procurava consolo, no seio agasalhante da noite, e começou a chorar em silêncio.

Ao lado da criancinha agonizante, o enfermeiro observava-lhe a atitude sofredora e humilde, reconhecendo-se tocado no imo d’alma.

Porque lutara contra semelhante inimigo? — pensava, ensimesmado.
— Amaro assemelhava-se a uma estátua de martírio silencioso.
Estava ali, cabisbaixo e vencido, no lar modesto em que era um homem de bem, devotado à rectidão.

Decerto, já havia amargado muito, O rosto, sulcado de rugas precoces, que lhe detinham o pranto, falava da cruz de experiências difíceis que lhe pesava nos ombros.

Quantos problemas inquietantes teria defrontado no mundo aquele homem dobrado pelo rigor da sorte?
Como pudera ele, Mário Silva, ser ali tão cruel?

Rememorou as passagens da hora de estudo e prece, entendendo, enfim, que o Evangelho estribava-se nas melhores razões.

Mais valia conciliar-se depressa com o adversário que enterrar um espinho de remorso no próprio peito, e ele notava, triste, que o remorso como lâmina acerada lhe retalhava o coração...

Amaro e a esposa, indiscutivelmente, poderiam ter manifestado desconfiança ao revê-lo, recusando-lhe o concurso, entretanto, acolheram-no, fraternalmente, de braços abertos...

Se o haviam ferido, noutro tempo, não se achavam agora sob o guante de terrível flagelação?

Rendia graças a Deus por não haver injectado substâncias tóxicas no doentinho agora moribundo, mas não teria, acaso, concorrido para abreviar-lhe a morte?

Experimentava o desejo de abeirar-se do pai desditoso, tentando confortá-lo, mas sentia vergonha de si mesmo...
Durante quase duas horas permaneceram ali, os dois, calados e impassíveis.

A aurora começava a reflectir-se no firmamento em largas riscas rubras, quando o ferroviário abandonou a meditação, aproximando-se do filhinho quase morto.

Num gesto comovente de fé, retirou da parede velho crucifixo de madeira e colocou-o à cabeceira do agonizante.

Em seguida, sentou-se no leito e acomodou o menino ao colo com especial ternura.

Amparado espiritualmente por Odila, que o enlaçava, demorou o olhar sobre a imagem do Cristo Crucificado e orou em alta voz:
Divino Jesus, compadece-te de nossas fraquezas!...
Tenho meu espírito frágil para lidar com a morte! Dá-nos força e compreensão...
Nossos filhos te pertencem, mas como nos dói restitui-los, quando a tua vontade no-los reclama de volta!...
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Mensagem  Ave sem Ninho Seg Abr 02, 2012 9:10 pm

O pranto embargava-lhe a voz, mas o pai sofredor, demonstrando a sua imperiosa necessidade de oração, prosseguiu:
— Se é de teu desígnio que o nosso filhinho parta, Senhor, recebe-o em teus braços de amor e luz!
Concede-nos, porém, a precisa coragem para suportar, valorosamente, a nossa cruz de saudade e dor!...

Dá-nos resignação, fé, esperança!...
Auxilia-nos a entender-te os propósitos e que a tua vontade se cumpra hoje e sempre!...


Jactos de safirina claridade escapavam-lhe do peito, envolvendo a criança, que, pouco a pouco, adormeceu.

Júlio afastou-se do corpo de carne, abrigando-se nos braços de Odila, à maneira de um órfão que busca tépido ninho de carícias.

Tocado nas fibras mais recônditas do ser e percebendo que a morte ali estendera as suas grandes asas, Silva experimentou violenta comoção a constringir-lhe a alma.

Convulsivo choro agitou-lhe o peito, enquanto uma voz inarticulada, que parecia nascer nos recessos dele mesmo, gritava-lhe na consciência:
— Assassino! Assassino!...

Desorientado e inseguro, o moço correu para a via pública, achando-se, atormentado, no seio da sombra fria, soluçando...
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 03, 2012 8:34 pm

33 - Aprendizado

Amaro e a família, coadjuvados por alguns vizinhos, amortalhavam a forma hirta do menino, quando rumámos de volta ao Lar da Bênção.

Notei que Júlio, asilado nos braços de Odila, se mostrava aliviado e tranquilo, como nunca o vira até então.

Enquanto as nossas irmãs permutavam ideias, com respeito ao futuro, indaguei do orientador, acerca da serenidade que felicitava agora o pequenino.

Clarêncio informou, prestimoso:
— Júlio reajustou-se para a continuação regular da luta evolutiva que lhe compete.

O renascimento malogrado não teve para ele tão-somente a significação expiatória, necessária ao Espírito que deserta do aprendizado, mas também o efeito de um remédio curativo.

A permanência no campo físico funcionou como recurso de eliminação da ferida que trazia nos delicados tecidos da alma.

A carne, em muitos casos, é assim como um filtro que retém as impurezas do corpo perispiritual, liberando-o de certos males nela adquiridos.
— Isso quer dizer...

O Ministro, porém, cortou-me a palavra, acentuando:
— Isso quer dizer que Júlio doravante poderá exteriorizar-se num corpo sadio, conquistando merecimento para obter uma reencarnação devidamente planejada, com elevados objectivos de serviço.

Terá, por alguns meses connosco, desenvolvimento natural, regressando à Terra, em elogiáveis condições de harmonia consigo mesmo.

— Mas voltará, assim, em tão pouco tempo? - perguntei, admirado.

— Esperamos que assim seja.
Deve atender ao crescimento de qualidades nobres para a vida eterna que somente o retorno à escola da carne poderá facilitar.

Além disso, precisa conviver com Amaro, Zulmira e Silva, de maneira a confraternizar-se realmente com eles, segundo o amor puro que o Cristo nos ensinou.

— Essas anotações — ponderei — lançam nova claridade em nosso estudo da vida.
Compreendemos, assim, que as moléstias complicadas e longas guardam função específica.
Os aleijões de nascença, o mongolismo, a paralisia...

— Sim — confirmou o orientador —, por vezes é tão grande a incursão da alma nas regiões de desequilíbrio, que mais extensa se faz para ela a viagem de volta à normalidade.

Sorrindo, acrescentou:
— O tempo de inferno restaurador corresponde ao tempo de culpa deliberada.

Em muitas fases de nossa evolução, somos imantados às teias da carne, que sempre nos reflecte a individualidade intrínseca, assim como a argila é conduzida ao calor da cerâmica ou como o metal impuro é arrojado ao cadinho fervente.
A depuração exige esforço, sacrifício, paciência.

Ante nosso olhar deslumbrado, tingira-se o horizonte de cores variegadas, anunciando o Sol que parecia nascer num mar de luz e ouro.

Muito longe, esmaeciam as estrelas, e, perto de nós, nuvens leves caminhavam apressadas, tangidas pelo vento.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 03, 2012 8:34 pm

Contemplando a imensidão, Clarêncio considerou:
— Quando nosso espírito apreende alguma nesga da glória universal, desperta para as mais sublimes esperanças.

Sonha com o acesso às esferas divinas, suspira pelo reencontro com amores santificados que o esperam em vanguardas distantes, aceitando, então, duros trabalhos de reajuste.

Que representam, em verdade, para nós, alguns decénios de renunciação na Terra, em confronto com a excelsitude dos séculos de felicidade em mundos de sabedoria e trabalho enaltecedor!...

— Ah! se os homens percebessem !... — obtemperei, lembrando a rebelião que tantas vezes nos prejudica no mundo

— Entenderão algum dia — objectou Clarêncio, optimista —; todos os seres progridem e avançam para Deus, O homem terrestre crescerá para o grande entendimento e louvará, feliz, o concurso da dor, O embrião do jequitibá, com os anos, se converte em tronco vetusto, rico de beleza e utilidade, e o espírito, com os milénios, transforma-se em génio soberano, coroado de amor e sabedoria.

Depois de um minuto de silenciosa adoração à Natureza, o instrutor continuou:
— Volvendo ao caso de Júlio, não podemos olvidar que milhares de Inteligências, entre o berço e o túmulo, estão procurando a própria recuperação.

A medida que se nos aclara a consciência e se nos engrandece a noção de responsabilidade, reconhecemos que a nossa dignificação espiritual é serviço intransferível. Devemos a nós mesmos quanto nos sucede em matéria de bem ou de mal.

— Importante observar — disse Hilário, pensativo — como a vida reclama, no refazimento da paz, a conjugação daqueles que entraram em guerra uns com os outros... No passado, Júlio arrojou-se ao despenhadeiro do suicídio sob a influência de Amaro, e Zulmira, após indispor-se com Silva...

— E, agora — completou Clarêncio —, reabilita-se com o auxílio de Zulmira e Amaro, de modo a rearmonizar-se com o enfermeiro.
É natural seja assim.

— Mas Júlio, antes de tornar ao mundo, através do nosso amigo ferroviário — indaguei —, onde estaria?

— Depois de haver eliminado o próprio corpo, satisfazendo a simples capricho pessoal, sofreu por muitos anos as tristes consequências do acto deliberado, amargando nos círculos vizinhos da Terra as torturas do envenenamento a se lhe repetirem no campo mental.

A morte prematura, quando traduz indisciplina diante das leis infinitamente compassivas que nos governam, constrange o Espírito que a provoca a dilatada purgação na paisagem espiritual.

Não podemos trair o tempo, e a existência planificada subordina-se a determinada quota de tempo, que nos compete esgotar em trabalho justo.

Quando esses recursos não são suficientemente aproveitados, arcamos com tremendos desequilíbrios na organização que nos é própria.

— Sofreria, porém, a sós?
— Nem sempre — informou o instrutor —; quando não se achava em martirizada solidão, via-se, como é lógico, onde se lhe mantinha preso o pensamento.

Ante a nossa curiosidade indagadora, acrescentou:
— Os pensamentos dele se alimentavam na atmosfera psíquica de Zulmira, Amaro e Silva, que lhe serviam de pontos básicos ao ódio.

Ensinava Jesus que o homem terá o seu tesouro onde guarde o coração e, efectivamente, todos nos imantamos, em espírito, às pessoas, lugares e objectos, aos quais se liguem os nossos sentimentos.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 03, 2012 8:34 pm

— Mas Júlio estava em contacto com eles nas esferas espirituais ou nas experiências do mundo físico?

— Partilhava-lhes a vida simplesmente, e a vida, em qualquer sector de luta, é invariável.
Entretanto, por detestar Amaro mais profundamente, pesava com mais intensidade sobre ele.

O ferroviário, na existência do Espaço, conheceu-lhe a perseguição acérrima, ouvindo-lhe as acusações e as queixas, nas regiões purgatoriais e, ao se reencarnar, na actual condição, foi seguido de perto por Júlio, que lhe afligia a mente, dele exigindo o necessário concurso à formação do novo corpo.

Em razão da leviandade de Amaro, quando na personalidade de Armando, caminhara para o suicídio.

Por isso mesmo, a Lei permitia-lhe a união com o amigo transformado em desafecto, companheiro esse do qual reclamava a renovação da oportunidade perdida.

Clarêncio fitou-nos, de modo especial, e aduziu:
— Entre o credor e o devedor há sempre o fio espiritual do compromisso.
— Amaro teria tido, dessa forma, uma juventude algo conturbada — ponderei com objectivo de estudo.

— Sim, como acontece à maioria dos moços de ambos os sexos, na luta vulgar, muito cedo acordou para o ideal da paternidade.

Em sonhos, fora do corpo denso, encontrava-se com o adversário que lhe pedia o retorno ao mundo e, ansioso de reconciliação, pensava no casamento com extremado desassossego, desejoso de saldar a conta que reconhecia dever.

Muito jovem ainda, encontrou Odila que o aguardava, consoante o acordo por ambos levado a efeito, na vida espiritual;
no entanto, as vibrações de Júlio eram efectivamente tão incómodas que a primeira esposa do nosso amigo não conseguiu acolhê-lo, de imediato, recebendo Evelina, em primeiro lugar, de vez que a ligação do casal com ela se baseia em doces afinidades.

Somente depois da primogénita é que se ambientou para a incorporação do suicida em sofrimento...

— Este ponto de nossa conversação — lembrei, respeitoso — faz-me recordar os conflitos interiores de muitos rapazes e de muitas moças na Terra.

Às vezes se arrojam ao casamento com absoluta inaptidão para as grandes responsabilidades, qual se estivessem impulsionadas por molas invisíveis, sem qualquer consideração para com os impositivos da prudência.

Como se fossem atacados por subitânea loucura, desatendem a todos os conselhos do lar ou dos amigos, para despertarem, depois, com problemas de enorme gravidade, quando não acordam sob a neblina de imensas desilusões.

Agora compreendo...
Na base dos sonhos juvenis, quase sempre moram dívidas angustiosas a que não se pode fugir...

— Sim — confirmou o Ministro —, grande número de paixões afectivas no mundo correspondem a autênticas obsessões ou psicoses, que só a realidade consegue tratar com êxito.

Em muitas ocasiões, por trás do anseio de união conjugal, vibra o passado, através de requisições dos amigos ou inimigos desencarnados, aos quais devemos colaboração efectiva para a reconquista do veículo carnal.

A inquietação afectiva pode expressar escuros labirintos da retaguarda...

Reflectindo nas lutas da alma, atirada às experiências da vida com tantos enigmas a solver, acudiu-me à lembrança antiga questão que habitualmente me vinha à cabeça.
— E os anjos de guarda? — inquiri.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 03, 2012 8:34 pm

Diante da surpresa que assomou ao semblante do nosso orientador, acentuei, reverente:
— Perdoe-me, mas ainda sou estudante incipiente da vida espiritual.
Os anjos de guarda estão em nossa esfera?

Clarêncio encarou-me, admirado, e sentenciou:
— Os Espíritos tutelares encontram-se em todas as esferas, contudo é indispensável tecer algumas considerações sobre o assunto.

Os anjos da sublime vigilância, analisados em sua excelsitude divina, seguem-nos a longa estrada evolutiva.
Desvelam-se por nós, dentro das Leis que nos regem, todavia, não podemos esquecer que nos movimentamos todos em círculos multidimensionais.

A cadeia de ascensão do espírito vai da intimidade do abismo à suprema glória celeste.

Ligeira pausa trouxe paternal sorriso aos lábios do instrutor, que prosseguiu:
— Será justo lembrar que estamos plasmando nossa individualidade imperecível no espaço e no tempo, ao preço de continuadas e difíceis experiências.

A ideia de um ente divinizado e perfeito, invariávelmente ao nosso lado, ao dispor de nossos caprichos ou ao sabor de nossas dívidas, não concorda com a justiça.

Que governo terrestre destacaria um de seus ministros mais sábios e especializados na garantia do bem de todos para colar-se, indefinidamente, ao destino de um só homem, quase sempre renitente cultor de complicados enigmas e necessitado, por isso mesmo, das mais severas lições da vida?

Porque haveria de obrigar-se um arcanjo a descer da Luz Eterna para seguir, passo a passo, um homem deliberadamente egoísta ou preguiçoso?
Tudo exige lógica, bom-senso.

— Com semelhante apontamento quer dizer que os anjos de guarda não vivem connosco?
— Não digo isso — asseverou o benfeitor.

E, com graça, aduziu:
— O Sol está com o verme, amparando-o na furna, a milhões e milhões de quilómetros, sem que o verme esteja com o Sol.

As irmãs que seguiam connosco, lado a lado, embevecidas na contemplação do céu, comentavam carinhosamente o porvir de Júlio, psiquicamente distanciadas de nossa conversação.

O apontamento de nosso orientador impunha-nos graves reflexões e, talvez por esse motivo, o silêncio tentou apossar-se do grupo, mas Clarêncio, reconhecendo que o assunto demandava elucidação mais ampla, continuou:
— Anjo, segundo a acepção justa do termo, é mensageiro.

Ora, há mensageiros de todas as condições e de todas as procedências e, por isso, a antiguidade sempre admitiu a existência de anjos bons e anjos maus.

Anjo de guarda, desde as concepções religiosas mais antigas, é uma expressão que define o Espírito celeste que vigia a criatura em nome de Deus ou pessoa que se devota infinitamente a outra, ajudando-a e defendendo-a.

Em qualquer região, convivem connosco os Espíritos familiares de nossa vida e de nossa luta.

Dos seres mais embrutecidos aos mais sublimados, temos a corrente de amor, cujos elos podemos simbolizar nas almas que se querem ou que se afinam umas com as outras, dentro da infinita gradação do progresso.

A família espiritual é uma constelação de Inteligências, cujos membros estão na Terra e nos Céus.
Aquele que já pode ver mais um pouco auxilia a visão daquele que ainda se encontra em luta por desenvencilhar-se da própria cegueira.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 03, 2012 8:35 pm

Todos nós, por mais baixo nos revelemos na escala da evolução, possuímos, não longe de nós, alguém que nos ama a impelir-nos para a elevação.

Isso podemos verificar nos círculos da matéria mais densa.
Temos constantemente corações que nos devotam estima e se consagram ao nosso bem.
De todas as afeições terrestres, salientemos, para exemplificar, a devoção das mães.

O espírito maternal é uma espécie de anjo ou mensageiro, embora muita vez circunscrito ao cárcere de férreo egoísmo, na custódia dos filhos.

Além das mães, cujo amor padece muitas deficiências, quando confrontado com os princípios essenciais da fraternidade e da justiça, temos afectos e simpatias dos mais envolventes, capazes dos mais altos sacrifícios por nós, não obstante condicionados a objectivos por vezes egoísticos.

Não podemos olvidar, porém, que o admirável altruísmo de amanhã começa na afectividade estreita de hoje, como a árvore parte do embrião.

Todas as criaturas, individualmente, contam com louváveis devotamentos de entidades afins que se lhes afeiçoam.

A orfandade real não existe.
Em nome do Amor, todas as almas recebem assistência onde quer que se encontrem.
Irmãos mais velhos ajudam os mais novos.

Mestres inspiram discípulos.
Pais socorrem os filhos.
Amigos ligam-se a amigos.
Companheiros auxiliam companheiros.

Isso ocorre em todos os planos da Natureza e, fatalmente, na Terra, entre os que ainda vivem na carne e os que já atravessaram o escuro passadiço da morte.

Os gregos sabiam disso e recorriam aos seus génios invisíveis.
Os romanos compreendiam essa verdade e cultuavam os numes domésticos.

O génio guardião será sempre um Espírito benfazejo para o protegido, mas é imperioso anotar que os laços afectivos, em torno de nós, ainda se encontram em marcha ascendente para mais altos níveis da vida.

Com toda a veneração que lhes devemos, importa reconhecer, nos Espíritos familiares que nos protegem, grandes e respeitáveis heróis do bem, mas ainda singularmente distanciados da angelitude eterna.

Naturalmente, avançam em linhas enobrecidas, em planos elevados, todavia, ainda sentem inclinações e paixões particulares, no rumo da universalização de sentimentos.

Por esse motivo, com muita propriedade, nas diversas escolas religiosas, escutamos a intuição popular asseverando:
— «nossos anjos de guarda não combinam entre si», ou, ainda, «façamos uma oração aos anjos de guarda», reconhecendo-se, instintivamente, que os génios familiares de nossa intimidade ainda se encontram no campo de afinidades específicas, e precisam, por vezes, de apelos à natureza superior para atenderem a esse ou àquele género de serviço.

Chegávamos ao Lar da Bênção e os esclarecimentos do instrutor represavam-se em nossa alma, por inesquecível prelecção, compelindo-nos a grande silêncio.

Blandina, porém, veio até nós e perguntou ao orientador, sensibilizada:
— Generoso amigo, podemos estar realmente convictos de que Júlio devia desencarnar, agora?

— Perfeitamente.
A Lei funcionou, exacta.
Não há lugar para qualquer dúvida.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 03, 2012 8:35 pm

— E aqueles jactos de pensamento escuro que partiram do enfermeiro, como que envenenando o nosso doentinho?

— Se não estivéssemos junto dele — disse o Ministro —, teriam efectivamente abreviado a morte da criança e, ainda assim, a Lei ter-se-ia cumprido;
entretanto, aqueles pensamentos escuros de Mário voltaram para ele mesmo.

Emitiu-os, com o evidente propósito de matar e, em razão disso, experimenta o remorso de um autêntico assassino.

A graciosa residência de Blandina, para onde nos encaminhávamos, estava agora à nossa vista.

Clarêncio afagou-a, bondoso, e concluiu:
— Permaneçamos convencidos, minha filha, de que, em qualquer lugar e em qualquer tempo, receberemos da vida, de acordo com as nossas próprias obras.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 03, 2012 8:35 pm

34 - Em tarefa de socorro

Na noite do dia seguinte, fomos inesperadamente visitados por Odila, que nos pedia socorro.

A preocupada amiga, agora ciente do drama escuro que se desenrolara no passado próximo para melhor entender as inquietudes do presente, compreendia as necessidades de Amaro e Júlio, aos quais amava por esposo e filho do coração, e rogava assistência para Zulmira, novamente acamada.

Atendendo a apelos de Evelina, tornara ao ambiente doméstico para soerguer o bom ânimo daquela que a sucedera na direcção do lar, e voltara, aflita.

Arrojara-se Zulmira a profundo abatimento.
Recusava remédio e alimentação.
Enfraquecia assustadoramente.

Sabia agora que a permanência dela no mundo e na carne se revestia de excepcional importância para o seu grupo familiar e, atenta a isso, continuava intercedendo.

A rápida informação da mensageira impressionava e comovia pelo tom de amorosa aflição em que era vazada.

Não nos delongámos na resposta.
Era mais de meia-noite, na cidade, quando atravessámos a porta acolhedora da casa do ferroviário que, desde muito, constituía para nós valioso ponto de acção.

A dona da casa, de pensamento fixo nas derradeiras cenas da morte do pequenino, jazia no leito em prostração deplorável.

Emagrecera de modo alarmante.
Fundas olheiras roxas contrastavam com a acentuada palidez do rosto desfigurado.
Recaíra na introversão em que a conhecêramos.

Rememorava o afogamento do pequeno enteado e, longe de saber que o retivera nos braços como filho abençoado de sua ternura, sentia-se na condição de ré infortunada no banco da justiça.

Decerto — pensava, agoniada —, sofria a punição divina.
Aquela morte do pequeno, quando tudo fazia crer que ele cresceria para a ventura do lar, correspondendo-lhe à expectativa, era dolorosa pena imposta ao seu maternal coração.

Ah! devia ter sido pronunciada perante os juízes da Sabedoria Celeste.
No mundo, ninguém lhe conhecia o remorso de guardiã invigilante e cruel, mas fora sem dúvida identificada pelos tribunais de mil olhos do Direito Incorruptível.

Não amparara convenientemente o filhinho de Odila, relegando-o a intencional abandono...
Agora, perdia inexplicavelmente o rebento que lhe definia a esperança no grande futuro.

Valeria erguer-se e disputar aquilo que para ela representava a dor de viver?
Reconhecia-se esmagada. O complexo de culpa retomara-lhe o cérebro e enfermara-lhe o coração.

Reparámos que diversos medicamentos se alinhavam à cabeceira, mas nosso instrutor examinou-os, auscultou a doente e informou:
— O remédio de Zulmira é daqueles que a farmácia não possui. Virá dela mesma.

Precisamos refazer-lhe a esperança e o gosto de viver.
Descontrolou-se-lhe, de novo, a mente.
Desinteressou-se da luta e a abstenção de alimentos acarreta-lhe a inanição progressiva.

— E o reencontro com o filhinho? — perguntou Hilário — não seria o melhor processo dê restaurar-lhe o bom ânimo?
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 03, 2012 8:36 pm

— É o que esperamos — concordou o Ministro — todavia, Júlio, na fase que atravessa, requisita, pelo menos, uma semana de absoluto repouso e, até lá, é indispensável entreter-lhe as energias.

Em seguida, Clarêncio entrou em acção, aplicando-lhe recursos magnéticos, com o nosso humilde concurso.
A tensão nervosa de Zulmira, porém, atingira o apogeu e apenas conseguimos sossegá-la, de alguma sorte, sem conduzi-la ao sono reparador que seria de desejar.

Odila, fortalecida, tomava-a aos seus cuidados, quando fomos defrontados por imprevisto fenómeno.

Mário Silva, desligado do corpo denso, com a rapidez de um relâmpago, penetrou o quarto, de olhos esgazeados, à maneira de louco, contemplou a doente por alguns instantes e afastou-se.

Volvemos nossa indagadora atenção para o Ministro, que esclareceu, sem detença:
— É sabido que o criminoso habitualmente volta ao local do crime.
O remorso é uma força que nos algema à retaguarda.

E porque nos inclinássemos à procura do visitante inesperado, o instrutor aquietou-nos, recomendando:
— Aguardemos. Mário voltará.

Com efeito, Silva, depois de alguns minutos, regressou ao aposento.

Com a mesma expressão de dementado, fixou a pobre enferma e, dessa vez, rojou-se de joelhos, exclamando:
— Perdão! perdão!... sou um assassino! um assassino!...

Levantámo-nos, instintivamente, com o propósito de socorrê-lo, mas tocado de longe pela nossa influência magnética, qual se fora alcançado por um raio, o enfermeiro projectou-se para fora.

— Infortunado amigo! — falou o Ministro, contristado.
Sofre muito. Ajudemo-lo a soerguer-se.

Num átimo, ganhámos o domicílio de Mário, encontrando-o em pesadelo aflitivo, contido no leito à custa de poderosos anestésicos.

Com surpresa para nós, uma freira desencarnada rezava, junto dele.

Interrompeu as preces, a fim de saudar-nos, acolhendo-nos com simpatia.
— Estava certa — disse delicada e confiante — de que Nosso Senhor nos enviaria o socorro justo.

Desde algumas horas, ocupo aqui o serviço de vigilância.
A posição do nosso amigo — e indicou Mário estendido na cama — é francamente anormal e temo a intromissão de Espíritos diabólicos.

Clarêncio assumiu o aspecto de simples visitante, vulgarizando-se ao olhar da religiosa, que se sentia evidentemente encorajada com a nossa presença.

— É enfermeira? — perguntou nosso instrutor, cortês.
— Não sou própriamente do serviço de saúde replicou a interpelada —, mas colaboro no hospital onde Silva trabalha.

Fitou o moço semi-adormecido e aduziu, piedosa:
— É um cooperador devotado às crianças doentes e a cuja assiduidade e carinho muito passámos a dever.
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Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 03, 2012 8:36 pm

E, numa linguagem genuinamente católica romana, rematou:
— Muitas almas benditas têm descido do Céu para testemunhar-lhe agradecimento.
Isso tem acontecido tantas vezes que, com alguns médicos e assistentes, fez-se credor das melhores atenções de nossa Irmandade.

Usando o tato que lhe era característico, nosso orientador indagou:
— Como soube a irmã que o nosso amigo se achava assim tão conturbado?

— Não recebemos qualquer notificação directa, contudo, ele não compareceu hoje às tarefas habituais e isso foi suficiente para indicar-nos que algo de grave estava acontecendo.

Nossa superiora designou-me para verificar o que havia.
Desde então, estou presa, de vez que não supunha a existência de tantos Espíritos das trevas na vizinhança.

A palavra da freira saturava-se de tanta bondade espontânea e evidenciava uma fé pura tão encantadoramente ingénua, que a curiosidade me espicaçou o íntimo.

A tentação de pesquisar o fascinante problema daquele caridoso esforço assistencial me constrangia a interferir no assunto, mas um olhar de Clarêncio bastou para que Hilário e eu nos mantivéssemos em respeitoso silêncio.

— É comovente pensar na sublimidade de sua missão, depois de ausentar-se do corpo terrestre — falou o Ministro, bondoso, talvez provocando alguma elucidação directa, capaz de satisfazer-nos.

— Sim, trabalhamos sob a direcção de Madre Paula — informou a interlocutora, sincera —‘ que nos explica ser a enfermagem nas casas públicas de tratamento uma forma de purgatório benigno, até que possamos merecer novas bênçãos de Deus.

— Mas, irmã, vê-se de pronto que o seu coração está comungando a paz do Senhor.

Ela baixou humildemente os olhos e ponderou:
— Não penso assim. Sou uma pobre religiosa, em trabalho para resgatar os próprios pecados.

No leito, Mário gemia inquieto.
O Ministro pareceu despreocupar-se da palestra de ordem pessoal e passou a afagar a fronte do enfermo, dando-nos a ideia de que só ele devia atrair-nos o interesse.

A freira acercou-se respeitosamente de nosso instrutor e disse, calma:
— Irmão, Madre Paula costuma dizer-nos que os ouvidos de Deus vivem no coração das grandes almas.

Estou certa de que escutastes minhas rogativas.
Tenho-vos por emissários da Corte Celeste.
Acredito que, desse modo, me compete a obrigação de confiar-vos nosso doente.

Clarêncio agradeceu o carinho que transparecia daquelas palavras e expôs que a nossa passagem por ali era rápida, o bastante para ministrar o socorro preciso.

A interlocutora encareceu a necessidade de comunicar-se com o hospital, quanto ao cooperador em agitada prostração, e, prometendo voltar em breves minutos, ausentou-se à pressa.

A sós connosco, o orientador, embora de atenção ligada ao enfermeiro, explicou, atenciosamente:
— Nossa irmã pertence à organização espiritual de servidores católicos, dedicados à caridade evangélica.
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Série André Luiz - ENTRE A TERRA E O CÉU - Página 5 Empty Re: Série André Luiz - ENTRE A TERRA E O CÉU

Mensagem  Ave sem Ninho Ter Abr 03, 2012 8:36 pm

Temos diversas instituições dessa natureza, em cujos quadros de serviço inúmeras entidades se preparam gradualmente para o conhecimento superior.

— Sob a direcção de autoridades ainda ligadas à Igreja Católica? — perguntou Hilário, admirado.

— Como não?
Todas as escolas religiosas dispõem de grandes valores na vida espiritual.
Como acontece à personalidade humana, as crenças possuem uma região clara e luminosa e uma outra ainda obscura.

Em nossa alma, a zona lúcida vive alimentada pelos nossos melhores sentimentos, enquanto que, no mundo sombrio de nossas experiências inferiores, habitam as inclinações e os impulsos que ainda nos encadeiam à animalidade.

Nas religiões, o campo da sublimação está povoado pelos espíritos generosos e liberais, conscientes de nossa suprema destinação para o bem, ao passo que, nas linhas escuras da ignorância, ainda enxameiam as almas pesadas de ódio e egoísmo.

E, sorrindo, o Ministro acentuou:
— Achamo-nos em evolução e cada um de nós respira no degrau em que se colocou.
— Ela, porém, terá penetrado a verdade com que fomos surpreendidos, depois da morte? — perguntei, intrigado.

— Cada Inteligência — respondeu o orientador, enigmático — só recebe da verdade a porção que pode reter.
Silva, no leito, dava inequívocos sinais de enorme angústia.

Não ignorava que o meu dever de assisti-lo era trabalho inadiável, todavia, o encanto espiritual da religiosa singularmente arraigada aos hábitos terrestres me excitava de tal maneira a curiosidade que não pude conter a indagação espontânea.

— Mas essa freira sabe que deixou o mundo, sabe que desencarnou e prossegue, assim mesmo, como se via antes?
— Sim — confirmou o instrutor imperturbável.

— E estará informada de que a vida se estende a outras esferas, a outros domínios e a outros mundos?
Perceberá que o céu ou o inferno começam de nós mesmos?

O orientador meneou a cabeça, dando mostras de negativa e acrescentou:
— Isso não.
Ela não oferece a impressão de quem se libertou do círculo das próprias ideias para caminhar ao encontro das surpresas de que o Universo transborda.

Mentalmente, revela-se adstrita às concepções que elegeu na Terra, como sendo as mais convenientes à própria felicidade.

— E ninguém a incomoda aqui por viver assim distante do conhecimento real do caminho?

O orientador assumiu feição mais carinhosamente paternal para comigo e ajuntou:
— Antes de tudo, deve nossa irmã merecer-nos a maior veneração pelo bem que pratica e, quanto ao modo de interpretar a vida, não podemos esquecer que Deus é Nosso Pai.

Com a mesma tolerância, dentro da qual Ele tem esperado por nossa mais elevada compreensão, aguardará um melhor entendimento de nossa amiga.

Cada Espírito tem uma senda diversa a percorrer, assim como cada mundo tem a rota que lhe é peculiar.

E, fixando-me com particular atenção, observou:
— A maior lição aqui, André, é a da sementeira que produz, inevitável.
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Série André Luiz - ENTRE A TERRA E O CÉU - Página 5 Empty Re: Série André Luiz - ENTRE A TERRA E O CÉU

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 04, 2012 8:32 pm

Mário Silva, na posição de enfermeiro, não obstante a ruinosa impulsividade em que se caracteriza, tem sido prestimoso e humano, tornando-se credor do carinho alheio.

Segundo vemos, não é um homem devotado às lides religiosas.
É irritável e agressivo.
De ontem para hoje, chega a sentir-se criminoso...

Entretanto, é correcto cumpridor dos deveres que abraçou na vida e sabe ser paciente e caridoso, no desempenho das próprias obrigações.

Com isso, granjeou a simpatia de muitos e encontramo-lo fraternalmente guardado por uma freira reconhecida...

O ensinamento era efectivamente comovedor.
Dispunha-me a prosseguir no comentário, contudo, Silva começou a gemer e o Ministro, inclinando-se para ele, demorou-se longo tempo a auscultá-lo.

Em seguida, Clarêncio reergueu-se e falou:
— Pobre amigo!
Permanece impressionado com a morte de Júlio, conservando aflitivo complexo de culpa.
Tem o pensamento ligado ao pequenino morto, à maneira de imagem fixada na chapa fotográfica.

Passou o dia acamado, sob extrema perturbação.
Observo que não foi a casa de Antonina, conforme previa.
Sentiu-se vencido, envergonhado...

Entretanto, somente nossa irmã possui para ele o remédio indispensável...

Depois de pausa ligeira, indagámos se não nos seria possível socorrê-lo, de modo mais positivo, através de passes, ao que Clarêncio respondeu, seguro de si:
— O auxílio dessa natureza ampara-lhe as forças, mas não resolve o problema.

Silva deve ser atingido na mente, a fim de melhorar-se.
Requisita ideias renovadoras e, no momento, Antonina é a única pessoa capaz de reerguê-lo com mais segurança.

Recordei instintivamente o drama que se desenrolara ao tempo da Guerra do Paraguai, parecendo-me ouvir, de novo, a narração do velho Leonardo Pires.

Assinalando-me o pensamento, o Ministro ponderou:
— Tudo na vida tem a sua razão de ser.

Noutra época, Silva, na personalidade de Esteves, aliou-se a Antonina, então na experiência de Lola Ibarruri, para se afogarem no prazer pecaminoso com esquecimento das melhores obrigações da vida.

Actualmente, estarão reunidos na recuperação justa.
Os que se associam na leviandade, à frente da Lei, acabam esposando enormes compromissos para o reajustamento necessário.

Ninguém confunde os princípios que regem a existência.

Decidia-me a desfechar novas interrogações, mas Clarêncio, pousando afectuosamente o indicador sobre os meus lábios, recomendou:
— Cessa a curiosidade, André!

Quando passamos a explanar sobre a Lei, nossa conversação adquire o sabor de eternidade, e a imposição de serviço nos condiciona ao minuto que passa.
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Série André Luiz - ENTRE A TERRA E O CÉU - Página 5 Empty Re: Série André Luiz - ENTRE A TERRA E O CÉU

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 04, 2012 8:32 pm

E, indicando o enfermeiro excitado, anunciou:
— Na tarde de amanhã, voltaremos para conduzi-lo à residência de nossa irmã.

Por intermédio de Antonina, habilitar-se-á para o indispensável reerguimento.
Por agora, não podemos fazer mais.

Decorridos alguns instantes, a freira regressou à nossa presença, assistida por outra irmã, que nos cumprimentou com atenciosa reserva.

Ambas haviam sido designadas para a tarefa de auxílio ao cooperador doente.

A congregação encarregar-se-ia de todos os trabalhos de vigilância e enfermagem espiritual, enquanto Silva assim permanecesse.

Depois de breve diálogo, saudámo-las com respeitosa cordialidade e nos retirámos, com a promessa de voltar no dia seguinte.
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Série André Luiz - ENTRE A TERRA E O CÉU - Página 5 Empty Re: Série André Luiz - ENTRE A TERRA E O CÉU

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 04, 2012 8:32 pm

35 - Reerguimento moral

Consoante o programa traçado, regressámos, no dia imediato, estagiando primeiramente no lar de Zulmira, cuja posição orgânica era mais aflitiva.

A pobre senhora mostrava-se mais pálida, mais abatida.
O médico cercara-a de drogas valiosas, entretanto, a infortunada criatura demorava-se em profunda exaustão.

Amaro e Evelina desvelavam-se, preocupados, todavia, a torturada mãezinha deixava-se morrer.

Diante da nossa apreensão manifesta, o Ministro apenas afirmou:
— Aguardemos. Numa equipe, quase sempre a melhora de um companheiro pode auxiliar a melhora de outro.

A recuperação de Silva, ao que me parece, influenciará nossa amiga, na defesa contra a morte.

Não se delongou por muito tempo na intervenção magnética.
Sem detença, procurámos o domicilio do enfermeiro, encontrando-o superexcitado quanto na véspera, mas abnegadamente assistido pelas freiras que persistiam, dedicadas, na oração.

As religiosas desencarnadas acolheram-nos com carinho, comunicando que o doente prosseguia em desespero.
Clarêncio, contudo, assegurou-lhes optimista que Mário passaria connosco e, após entreter-se, voltaria melhor.

Em seguida, abeirou-se do enfermo e, tocando-lhe a fronte com a destra, orou sem alarde.
Qual se recebesse preciosa transfusão de forças fluídicas, Silva aquietou-se como por encanto.

Revelou-se mais calmo, não obstante entristecido.
A expressão facial que lhe denunciava a sublevação interior transformou-se-lhe no semblante em dolorosa serenidade.

Nosso orientador desenvolveu alguns passes de auxílio e notificou:
— Silva experimenta enorme necessidade de ouvir a palavra de Antonina, contudo, está hesitante.

Afirma-se intimamente envergonhado.
Crê-se responsável pela morte da criança e teme o contacto com a nobreza espiritual de nossa irmã, apesar de sentir-se arrastado para ela - Buscaremos, porém, auxiliar-lhes a reaproximação.

Acariciou a fronte do moço atormentado e acentuou:
— O desabafo descarregar-lhe-á a atmosfera mental, favorecendo-lhe o alívio e a recepção de elementos renovadores.

Em seguida, o instrutor abraçou-o, envolvendo-o em amorosa solicitude - Aquele amplexo afectuoso e longo figurou-se-nos um apelo às energias recônditas do rapaz que, de imediato, levantou-se e vestiu-se.

Ignorando como explicar a si mesmo a súbita resolução que o movia, desceu para a rua, seguido de perto por nosso cuidado, e tomou o carro que o transportaria até à residência da simpática família que o acolhera carinhosamente na antevéspera.

Antonina e os filhos abriram-lhe os braços, alegremente.
A pequena Lisbela, encantada, dependurou-se-lhe ao pescoço, depois de um beijo comovente.

Achava-se ainda acamada, mas refeita e feliz.
Qual se convivesse com Mário, de longo tempo, a dona da casa fitou-o, apreensiva.

Preocupada, anotou-lhe o abatimento, enquanto o hóspede parecia esmolar-lhe, em silêncio, ajuda e compreensão.

Percebendo-lhe a angústia oculta, a jovem viúva induziu-o à conversação particular, em singelo recanto da sala, onde atendia com os filhinhos ao culto da oração.
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Série André Luiz - ENTRE A TERRA E O CÉU - Página 5 Empty Re: Série André Luiz - ENTRE A TERRA E O CÉU

Mensagem  Ave sem Ninho Qua Abr 04, 2012 8:33 pm

O enfermeiro pediu-lhe desculpas por tratar de assunto pessoal e, começando por justificar a sua ausência na véspera, de frase a frase entrou na faixa dolorosa do próprio coração, desabafando...

Lembrou que ali, junto dela, recebera ensinamentos da mais elevada significação para ele e, por esse motivo, não vacilava em descerrar-lhe o espírito desolado, implorando compaixão e socorro.

Tentando confortá-lo, a interlocutora escutou-lhe a narrativa até ao fim.

Mário reportou-se à juventude, comentou os problemas psíquicos de que se via rodeado, desde a infância, descreveu-lhe o amor que nutrira pela moça que o abandonara em pleno sonho, relacionou as provas que lhe haviam castigado o brio de rapaz, salientou o esforço que despendera para recuperar-se e, por fim, extremamente conturbado, explanou sobre o reencontro com a ex-noiva e com o ex-rival, junto do pequenino agonizante...

Referiu-se ao ódio inexplicável que sentira pelo anjinho moribundo, encareceu os benefícios do culto evangélico em sua alma incendiada de revolta e amargura, expondo-lhe a convicção de haver contribuído para à morte da criancinha que detestara, à primeira vista..

Guardava a impressão de haver descido a tormentoso inferno moral.
Antonina sentiu por ele a piedade amorosa com que as mães se dispõem ao soerguimento espiritual dos filhos sofredores e rogou-lhe serenidade.

Silva, contudo, em pranto convulsivo, era um doente que reclamava mais ampla intervenção.

Atraída irresistivelmente para ele, a nobre amiga deixou de sublinhar o tratamento com a palavra “senhor” e, fazendo-se mais Íntima, obtemperou, carinhosa:
— Mário, quando caímos é preciso que nos levantemos, a fim de que o carro da vida, em seu movimento incessante, não nos esmague.

Conhecemo-nos há dois dias, no entanto, sinto que profundos laços de fraternidade nos reúnem.

Não acredito estejamos aqui juntos, obedecendo a simples acaso.
Decerto, as forças que nos dirigem a existência impelem-nos aos testemunhos afectivos desta hora.

Enxugue as lágrimas para que possamos ver o caminho...
Compreendo o seu drama de homem rudemente provado na forja da vida, entretanto, se posso pedir-lhe alguma coisa, rogar-lhe-ia bom ânimo.

Fixando-o com mais doçura no olhar, prosseguiu, depois de leve pausa:
— Também eu tenho lutado muito.
Lutado e sofrido.

Casei-me por amor e vi-me espoliada em minhas melhores esperanças.
Meu marido, antes de encontrar a morte, relegou-nos a dolorosa penúria.

Quando mais intensa era a nossa agonia doméstica, vi um filhinho morrer ao toque das aflitivas provações que nos flagelavam a casa...

Graças a Deus, todavia, reconheço que seríamos tão-somente ignorância e miséria sem o auxílio da dor.
O sofrimento é uma espécie de fogo invisível, plasmando-nos o carácter.

Não se deixe abater, assim.
Você está moço e as suas realizações no mundo podem ser as mais elevadas...

— Mas estou certo de que sou um assassino!... — soluçou o rapaz, descoroçoado.
— Quem poderia confirmá-lo? — exclamou Antonina, com mais ternura na voz.
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